É uma ironia que um tratado de 75
páginas sobre linguagem, tenha começado com dois
equívocos linguísticos.1 O
primeiro resulta da pobre tradução, crucial na comunicação do pensamento entre
nações ou indivíduos linguisticamente distintos: o autor dominava mal o inglês;
o tradutor era um teenager que
dominava mal o alemão. O segundo resulta de uma Introdução ou Prefácio escrita
por alguém (Bertrand Russell) que, nas palavras do próprio autor, não tinha
compreendido o sentido do livro.2 A introdução de Russell resultou
como imposição para a publicação do livro – na verdade espelhando o tipo de
“negócios” ou “compromissos” que infectam as universidades modernas. Não é portanto
surpreendente que Wittgenstein, tal como outros filósofos alemães, veja a sua
obra analisada de forma muito distinta conforme os olhos de quem a analisa,
ironicamente refletindo o objecto do seu trabalho: os equívocos da linguagem, a
linguagem como meio público de comunicação do que é privado, a linguagem como
parte do mundo.3 Sem compreender a mentalidade e a praxis do próprio escritor, é possível
que seja inevitável o equívoco, sobretudo provocado pela introdução de Russell,
uma vez que o leitor não é uma tábua rasa e tende a interpretar a obra de
acordo com os seus próprios valores, como afirmava o próprio autor.
A linha que norteia o livro é o de
utilizar os pressupostos da lógica positivista, da ciência, e aplicá-los ao uso
da linguagem. Como consequência, traçar uma linha ou limite entre o que pode
ser afirmado com certeza, deixando fora dessa linha tudo o resto (religião,
ética, estética). Note-se que Wittgenstein não está a afirmar o mesmo que
Hegel, quando afirma que o puro acredidato não é conhecimento ou que o
intangível (o que não pode ser colocado em palavras) não existe. O que
Wittgenstein afirma é que sempre se pode pensar de ambos os lados de um limite,
mas, aplicando a lógica positivista, os limites do mundo são definidos por
aquilo que se pode afirmar ou provar, ficando tudo o resto fora dos limites da
linguagem. As consequências são claras no âmbito da religião: nem um cristão
pode afirmar a Encarnação de Deus neste mundo, nem um ateu pode afirmar que o
conteúdo religioso é falso:
"Sobre aquilo de que não podemos
falar, o melhor é remetermo-nos ao silêncio".
1 - O mundo é a única coisa que
importa. O mundo é constituído por factos, não por coisas.
Nota:
De acordo com a abordagem da física, o
universo/mundo é a única fonte de factos. Facto aqui é tomado no sentido
lógico, não no sentido espaço-tempo; por conseguinte, objectos não são factos. Encontram-se
excluídos a religião, a ética e a estética.
2 – O que importa é o facto. O facto é
constituído por unidades de facto.
Nota:
O mundo é a totalidade dos factos e não
de coisas. O mundo é determinado pelos factos. A totalidade dos factos
determina o que importa e o que não importa. O mundo é constituído por objectos
que se encaixam uns nos outros para formar os “estados de coisas” que nos
fornecem significado – por exemplo, “leão” e “sala” podem permitir o estado de coisas “o leão encontra-se na
sala”. A realidade é espelhada ou pintada pela existência ou não existência
destes estados de coisas, o que é
determinado pela veracidade lógica (que se explica abaixo). A ciência trabalha com o significado e a linguagem precisa e estuda a existência ou não existência
dos estados de coisas. A lógica
apenas elimina contradições (este ser é um cão e não é um cão) e afirma
tautologias (ou está sol ou não está sol). A primeira é sempre falsa; a segunda é
sempre verdadeira, embora nada nos diga sobre a realidade – essa é a função da
ciência e do senso comum. As contradições e as tautologias não são verdadeiras
proposições porque não dizem nada, mas informam-nos sobre a verdadeira natureza
da lógica.
3 – O pensamento é a pintura lógica dos
factos.
Nota:
Wittgenstein usa a analogia entre uma
pintura e a comunicação de uma mensagem, do pensamento à linguagem. A linguagem
funciona em comunicação despertando imagens na mente. É um mecanismo semelhante
à reconstituição de um crime. As proposições originam imagens de factos.
4 – O pensamento é a proposição
significante.
Notas:
Um pensamento é uma proposição com um
sentido. A totalidade das proposições é a linguagem. A linguagem é um
pensamento disfarçado. No entanto, o pensamento e a linguagem devem possuir a
mesma forma lógica ou a mesma pintura lógica. O que é uma “forma lógica”?
Suponhamos o som ao vivo de uma sinfonia, o seu registo num gramofone ou o seu
registo digital – como o seu resultado é o mesmo, partilham a mesma forma
lógica que, no entanto, não pode ser representada; por outras palavras, um
pensamento pode ser expresso por proposições, mas não pode ser mostrado. Do
mesmo modo, uma pintura lógica informa-nos como as coisas são, porque partilha a
forma lógica com a realidade.
Numa proposição, um pensamento encontra
uma expressão que pode ser percebida pelos sentidos.4
Numa proposição, um nome é
representativo de um objecto. Os objectos só podem ser nomeados.
Por outras palavras: a mente encontra-se presa neste mundo pelos sentidos, que são a sua fonte primária de conhecimento.
Por outras palavras: a mente encontra-se presa neste mundo pelos sentidos, que são a sua fonte primária de conhecimento.
5 – As proposições são funções
veritativas das suas proposições elementares.
Nota: Não podemos pensar em nenhum
objecto sem considerar a sua ligação com outros ou com a sua finalidade. Este “estar
ligado” a um estado de coisas é condição necessária a que um objecto possa ser
pensado. Com as palavras acontece o
mesmo (o nome é representativo de um objecto). As palavras adquirem o seu
significado quando inseridas numa frase (proposição) e somente as frases podem
ser consideradas verdadeiras ou falsas. Por exemplo, “cadeira” pode ter
significados diferentes conforme a frase; pode significar um objecto onde nos
sentamos, uma disciplina ou uma cátedra. Mas nada podemos dizer sobre a sua
veracidade ou falsidade. Mas se dissermos, “está uma cadeira na casa de banho”,
essa proposição pode ser verdadeira ou falsa.
Deste modo, existe uma correspondência
entre o mundo real, o pensamento e a linguagem.
O que determina a veracidade ou
falsidade das proposições é se a conexão das palavras na proposição é igual à
conexão entre os objectos no mundo. Deve existir uma identidade entre a
estrutura das coisas e a estrutura do pensamento. O que permite que a linguagem
possa corresponder ao mundo (figure o mundo) é ambos possuirem a mesma forma
lógica.5
No entanto tal não pode ser
demonstrado, apenas mostrado. Algo que Chesterton também referiu sobre razão e
fé: “Sabíamos que ao colocar a fé em questão acabaríamos por deitar a razão
abaixo do seu trono. Ambas são processos demonstrativos que não podem ser
demonstrados.”6
“Quando falamos sobre o mundo já
estamos dentro da lógica. Para demonstrar a forma lógica, deveríamos poder-nos
instalar com a proposição fora da lógica, i.e., fora do mundo. Teríamos que
colocar-nos, como afirmavam os medievais, no ponto de vista de Deus, algo que é
igualmente impossível, a menos que o próprio Deus no-lo revelasse.”1
6 – A fórmula geral de uma proposição
veritativa é: [ p ¯ , ξ ¯ , N ( ξ ¯ ) ]. Esta é a forma geral de uma
proposição.
Notas:
Um conectivo lógico é veritativo
funcionalmente se o período final for uma função do valor veritativo das suas
fases elementares. Por exemplo, consideremos o período: “A camélia é uma flor e
a batata é um tubérculo.” A primeira frase é verdadeira porque a camélia é uma
flor; a segunda frase é verdadeira porque a batata é um tubérculo. Portanto o
período é uma proposição veritativa.
Contudo, nem sempre assim acontece em
linguagem. Suponhamos que alguém diz: “O João diz que a Terra é plana, mas não
acredita que ande um homem na Lua com um fardo às costas.” Então a primeira
frase, “a Terra é plana”, é falsa; a segunda frase, “anda um homem na Lua com
um fardo às costas”, também é falsa. No entanto, a introdução dos prefixos
“João diz que” ou “não acredita”, altera o valor lógico do período resultante
das duas frases, dando-lhe o valor de verdadeiro, mesmo que formado por duas
frases de valor lógico falso. Neste caso, o conectivo lógico não é
funcionalmente veritativo.
Daqui se deduz que uma proposição que
comece como opinião de alguém é geralmente falsa. Este postulado junta mais
exclusões à religião, à ética e à estética: a psicanálise, grande parte das
teorias das chamadas ciências sociais e a especulação filosófica em geral. Foi
por isso mesmo que Wittgenstein afirmou no final do Tractatus ter resolvido
todos os problemas da filosofia.
7- Wovon man
nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen. "Sobre
aquilo de que não podemos falar, o melhor é remetermo-nos ao silêncio".
Notas:
Fora das proposições da ciência
natural, devemos manter-nos em silêncio. Ou seja, a filosofia apenas pode
expressar proposições da ciência – é a expressão factual lógica das
proposições. “A filosofia nada pode dizer sobre a forma lógica, porque a forma
lógica não pode ser explicada, mas mostrada; e o que pode mostrado não pode ser
dito.”
A totalidade do mundo e da linguagem é
assunto do místico; à filosofia basta esclarecer a linguagem e ajudar à
formulação de proposições claras.
O sentido ético tem que estar fora do
mundo, porque tudo o que importa é acidental: o mundo não tem ordem, nem
Ordenador; o mundo é acidental ou estocástico (novamente um postulado moderno).
O que não é acidental, não pode estar dentro do mundo – as proposições da ética
estão fora do mundo.
Os limites da minha linguagem são os
limites do meu mundo. O mundo e a vida são um.
Eu sou o meu mundo. Não existe tal
coisa como o sujeito que pensa ou desenvolve ideias. Não existe "Eu". Não existe "Eu", porque eu não me posso pensar; a minha
mente não pode ser o meu objecto.
Suponhamos que eu me olho ao espelho. “Eu” posso ver os meus olhos, mas posso ver o “Eu” que vê os meus olhos?
Suponhamos que eu digo: “Eu” vejo a minha mulher, mas posso ver o “Eu” que vê a minha mulher?
Posso separar um pensamento do “eu” pensante, sem ter que recorrer a um outro pensamento?
Portanto, não existe um “eu” que viva isolado no mundo, que veja e pense e confira sentido ao que vê e pensa – aqui a crítica ao método cartesiano de Descartes atinge o seu zénite. Pelo contrário, existe uma linguagem do pensamento que se inicia com “Eu”. Esse “eu” possui muitas experiências no mundo; é a minha experiência (a única verdade do solipsismo), mas isto não significa que esteja em minha posse, uma vez que não existe esse sujeito que a possua. Eu e o mundo coincidimos, no sentido em que o meu mundo, o mundo das minhas experiências é único.
Suponhamos que eu me olho ao espelho. “Eu” posso ver os meus olhos, mas posso ver o “Eu” que vê os meus olhos?
Suponhamos que eu digo: “Eu” vejo a minha mulher, mas posso ver o “Eu” que vê a minha mulher?
Posso separar um pensamento do “eu” pensante, sem ter que recorrer a um outro pensamento?
Portanto, não existe um “eu” que viva isolado no mundo, que veja e pense e confira sentido ao que vê e pensa – aqui a crítica ao método cartesiano de Descartes atinge o seu zénite. Pelo contrário, existe uma linguagem do pensamento que se inicia com “Eu”. Esse “eu” possui muitas experiências no mundo; é a minha experiência (a única verdade do solipsismo), mas isto não significa que esteja em minha posse, uma vez que não existe esse sujeito que a possua. Eu e o mundo coincidimos, no sentido em que o meu mundo, o mundo das minhas experiências é único.
Todas as proposições têm igual valor (e
aqui o caminho da filosofia que segue a metodologia da ciência chega ao
relativismo).
Com esta introdução ao Tractatus,
abre-se um mundo novo na forma como vemos a linguagem. Por um lado, a linguagem
não é algo que esteja fora do mundo, denominando-o apenas. A linguagem
identifica-se com o mundo humano, na medida em que é expressão do próprio
pensamento e não existe homem sem pensamento. A consciência de si e do mundo
identifica-se com a linguagem. Deste modo, apenas considerando a existência
humana, no princípio era o verbo. No
entanto, encontra-se implícita uma outra noção: o universo é acidental e
estocástico, se lhe aplicarmos a lógica positivista; não podemos afirmar ou
negar a existência de um Ordenador ou Criador, porque tal está fora dos limites
da linguagem e do mundo. Mas atenção, caso existisse um tal Ordenador, a sua
vontade ou pensamento seria expresso pela linguagem. Deste modo, entende-se em
linguagem religiosa (assunto para as Investigações
Filosóficas, Blue Book e Culture and Value) a afirmação de São João: Ἐν ἀρχῇ
ἦν ὁ Λόγος, καὶ ὁ Λόγος ἦν πρὸς τὸν Θεόν, καὶ Θεός ἦν ὁ Λόγος, In principio erat Verbum et Verbum erat apud
Deum et Deus erat Verbum.
Por outro lado, ficam expostos vários
abusos de linguagem, sobretudo vindo daqueles que defendem a própria lógica positivista
aplicada por Wittgenstein, mas não vislumbram as suas consequências e as descartam.
Como exemplos, contam-se o uso da linguagem para se pronunciar contra a
existência de Deus, a utilização de teorias não baseadas no método científico
como linguagem científica, o que acontece muito no âmbito da psicologia e das ciências
sociais, a utilização desmedida de “opinião”.
Como consequência da aplicação estrita dessa lógica positivista contam-se a exclusão de
proposições éticas e estéticas e a inexistência do “eu”. Se a primeira mostra a
insuficiência do método, uma vez que todo o homem faz juízos (razão por que o
segundo Wittgenstein voltou à filosofia em 1929), a segunda é uma incisiva
crítica a Descartes e ao seu racionalismo. Não é apenas a observação de que não
existe um “eu” isolado pensante, mas também as afirmações de que os objectos só
podem ser nomeados e a de que numa proposição o pensamento encontra uma
expressão que pode ser percebida pelos sentidos. Os sentidos são a medida do
mundo e são o próprio sujeito, não são instrumentos como o microscópio e o
telescópio.
Se se pode admitir que o Wittgenstein
que conheceu Russell em Cambridge acreditava no valor em si deste método, é
mais difícil de conceber que o místico Wittgenstein que regressou da guerra
antes da publicação da obra tivesse a mesma convicção. Talvez por isso mesmo
ele dissesse que o livro não era tanto um conteúdo, era mais uma escada para
ajudar a pensar ou que a maioria das proposições nele descritas eram puro
disparate. Parece óbvio tratar-se de uma clara demonstração do caminho onde
leva a aplicação da lógica positivista e uma tentativa de separação das águas
entre o que o lógico pode dizer e aquilo que deve calar.
A conjunção das suas duas proposições,
a primeira, “O mundo é tudo o que importa”, com a última, "Daquilo de que
não podemos falar, o melhor é remetermo-nos ao silêncio”, marca o desafio para
pensar. A última proposição aponta para um mundo factual, mas a primeira, “o
mundo é”, joga com o inefável e é uma premissa – aparentemente encontra-se aqui
descrita a dualidade entre o que pode ser dito e o que apenas pode ser
mostrado.
“Quanto mais o prego tiver entrado na
cabeça, maior terá sido a sua utilidade; mas o que realmente importa é aquilo do
qual só podemos permanecer em silêncio.”2 Wittgenstein calou-se pelo
menos dez anos. Depois falou com mestria e deixou-nos a sua obra-prima.
António Campos
1 Tractatus Logico-Philosophicus, Kegan Paul, Trench, Trubner & CO.,
LTD., London, 1922. https://www.gutenberg.org/files/5740/5740-pdf.pdf.
2 John Heaton and Judy Groves. Wittgenstein
for Beginners. Penguin Books, London. ISBN 1 874166 17 X.
3 Biletzki, Anat and Matar, Anat,
"Ludwig Wittgenstein", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall
2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL =
<https://plato.stanford.edu/archives/fall2016/entries/wittgenstein/>.
4 Tom Martin (University of Nebraska), American
Chesterton Society, 24th G. K. Chesterton Conference, A Century of
Heretics, St. Thomas University, St. Paul, Minnesota, 2005. Disponível no site da ACS.
5 Josué Cândido da
Silva, Pedagogia & Comunicação, wittgenstein-e-a-figuracao-do-mundo.
6 Chesterton, Ortodoxia. Chesterton, Catholic Church and Conversion.
Notas finais sobre as alíneas 5 e 6 por
David Pansera:
A filosofia deste "primeiro
Wittgenstein", busca determinar a natureza em si da representação e
daquilo que é representado, o mundo. Ele faz isso estabelecendo a "essência"
da proposição. Ele identifica vários tipos de proposições que se diferenciam
quanto à sua forma lógica. Entretanto, tais formas possíveis possuem algo em
comum que é determinado a priori. Dada uma linguagem, as regras da sintaxe
lógica dessa linguagem permitem que, ao juntarmos palavras, formemos
proposições. A forma proposicional geral é a essência da proposição, isto é, as
condições necessárias e suficientes para que algo seja uma proposição em
qualquer linguagem, qualquer notação.
A alínea 5 diz respeito a certos
"axiomas"; as proposições elementares de uma linguagem. Uma
proposição elementar é um proposição de verdade de si mesma. Isso é a tese da
extensionalidade de Wittgenstein.
Na alínea 6, Wittgenstein equaciona a
forma proposicional usando a tese da extensionalidade. Na fórmula simplificada
[a, x, N(x)], está especificada uma série de proposições. "a" é uma
proposição inicial, x é um conjunto de proposições e N(x) é a negação de todas
as proposições. Wittgenstein, dessa forma, admite o que é chamado de
construtivismo lógico. Só é possível uma lógica que possa ser construída a
partir de iterações de processos elementares. Isso entra em conflito com a
existência de vários objetos da matemática moderna, uma vez que não podem ser
obtidos através de métodos construtivistas.
O segundo Wittgenstein, em Investigações Filosóficas, negou a tese
da extensionalidade, dizendo que ela caracteriza o cálculo proposicional e não
a linguagem comum. Com a autocrítica que Wittgenstein faz ao Tratactus, é possível demonstrar que o Tratactus está, de uma forma confusa,
dizendo que uma proposição é qualquer coisa que seja verdadeira ou falsa.