"Na minha opinião, não há nenhum aspecto da realidade fora do alcance da mente humana.”
A tese de que o socialismo é uma
religião mítica assenta na definição de mito: mythos, conto, uma
elaboração imaginativa da mente que ilustra e tenta explicar a realidade. O homem encontra por si, uma criação artística, imaginativa, que justifique a realidade que constata. Esta elaboração não assenta em prova testemunhal nem em documentos históricos; é uma construção da mente.
elaboração imaginativa da mente que ilustra e tenta explicar a realidade. O homem encontra por si, uma criação artística, imaginativa, que justifique a realidade que constata. Esta elaboração não assenta em prova testemunhal nem em documentos históricos; é uma construção da mente.
Os meus teóricos favoritos do marxismo
são Feürbach e Ernst Blöch. Embora ideias tenham consequências, existe um
aspecto positivo no ateísmo marxista: o reconhecimento da necessidade de uma
moral e a chamada dos crentes a uma vida mais consentânea com a sua crença. O
ateísmo impede a queda na superstição e obriga o intelecto simultaneamente a
uma disciplina e a um despojamento material. É uma ironia. Feürbach continua e
aprofunda o conceito de alienação e consciência infeliz de Hegel. Mas a mestria
de Feuerbach inclui a reapropriação como epílogo da alienação: “Quanto mais
Deus é subjectivo, mais o homem se aliena dessa subjectividade.”1
Se não existe nenhuma realidade fora do
alcance da mente humana, como surgiu Deus? O homem fabrica inconscientemente Deus
e depois quer que ele seja familiar. A razão faz o homem ver a natureza
imanente da religião; a religião faz o homem ver necessidades insuspeitas pela
razão – “O coração da humanidade é a religião.” Religião e coração seriam
sinónimos. É um antropocentrismo; uma religião centrada no homem. Para Feuerbach
o erro do cristianismo é o Deus-pessoa, o triunfo da subjectividade. Em seu
lugar deveria interpretar-se a infinidade da encarnação do logos. Feuerbach não
acreditava na encarnação num único indivíduo porque tal “deveria tornar
invisíveis todas as luzes da História, todos os luminares da Igreja, como o sol
torna invisíveis as estrelas.” Deus é tão avassalador que comparado com ele
nada vale.
Não é em Cristo mas em cada indivíduo
que se encarna o infinito no finito. A lei provoca uma cisão interior no homem
pecador: “A lei que me exorta ao que devo ser lança-me cruamente na face exactamente
aquilo que não sou.” Como diria Blöch mais tarde, o mistério do Deus absconditus
resume-se ao homem que se esconde atrás de Deus – o absconditus est homo.
“De que modo o homem se resgata da pena
da consciência do pecado, do tormento do sentido de nulidade? De que modo arranca
ao pecado o seu aguilhão mortal?”1
A resposta de Feuerbach é kantiana:
Cristo é a lei humana superior, a encarnação simbólica da suma moralidade. Mas
para Feuerbach Cristo não representa o ideal moral encarnado da razão humana;
ele representa o amor ideal que anula a lei. O homem com a “construção” de
Cristo pretende dar à sua natureza uma consolação maior do que aquela
proporcionada pela simples razão. Cristo personifica o mais intenso desejo humano:
o de ver Deus. Nele, Deus torna-se homem e o homem Deus. É a união entre o
finito e o infinito. Mas esta união não é sustentada pela razão, mas pela
imaginação e pelo coração. Cristo corresponde não à vontade consciente, mas ao
desejo inconsciente, é a tomada da consciência de si por parte da humanidade.
Encontra-se subjacente a ideia de que Cristo foi inventado por uma comunidade que não teve consciência dessa operação:
Encontra-se subjacente a ideia de que Cristo foi inventado por uma comunidade que não teve consciência dessa operação:
“Deus é esse livre desabafo do coração,
essa dor de uma alma alienada, esse segredo expresso.” A oração expressa esse
desejo humano de que Deus não seja indiferente ao homem. A concretude da
encarnação requere-a o homem e todo o ardor iconoclasta se opõe à essência da
encarnação e da religião.
Em Hegel, tudo volta a ser espírito
após a materialização (não o Espírito Santo, Heiliger Geist, mas apenas Geist, a mente colectiva, a alma da colmeia, essa coisa pagã - nunca cometer este erro decisivo ao interpretar Hegel); em Feürbach tudo nunca deixou de ser
humano.
A importância conferida a Cristo como
Deus-homem exprime o desejo de que as propriedades divinas sejam atribuídas aos
homens. Os predicados de Deus tornam-se mais significativos do que Deus – a
essência da religião é a imagem.
O sofrimento de Cristo é uma imagem e o seu
choro uma ostentação – uma espécie de actor a desempenhar um papel.
Os cristãos teriam assim elaborado uma repugnante religião do sofrimento. Feürbach
ignora a teologia da cruz e o protesto existencialista de Job.
"Cristo é
apóstolo e não origem do amor, o seu objectivo é a união da natureza
humana. A razão tem compaixão de tudo, abraça tudo, é o amor do universo por si mesmo" - neste ponto a natureza mítica da construção de Feürbach é muito aparente; Cristo não se apresentou a si próprio como uma espécie de hippie: "Eu não vim trazer a paz, mas a espada". Se Cristo é, como disse de Si, a Verdade, a verdade só pode dividir aqueles que possuem livre arbítrio.
A fé, fazendo apelo a Cristo e fazendo
distinção entre homens, seria então egoísta – “a fé é o contrário do amor.” A
consciência do limite humano, a sensibilidade individual e o sentimento de
culpa tinham exigido uma relação pessoal, mas Feuerbach termina em tons
kantianos: a exaltação da razão e a busca da virtude pela virtude. Feuerbach
funda uma crença religiosa baseada ela própria na acusação que aponta ao cristianismo:
o antropocentrismo e a mitologia. Chega a uma teologia antropomórfica; teologia é antropologia.
Deus é o reflexo da essência humana
projectada para fora e Cristo é a reapropriação dessa essência alienada.
A encarnação representa a superação da alteridade de Deus. Deus e o homem
são um só. Existe uma beleza perversa nesta elaboração; Feuerbach, como
Nietzsche ou Kafka, é um saltimbanco da escrita. Aliás, como Chesterton, num sentido diverso.
Marx, num trocadilho sobre o significado em alemão do nome feuerbach, diria que alguém que quisesse fazer filosofia consistente primeiro teria que passar pelo regato ardente do pensamento de Feürbach.
Marx, num trocadilho sobre o significado em alemão do nome feuerbach, diria que alguém que quisesse fazer filosofia consistente primeiro teria que passar pelo regato ardente do pensamento de Feürbach.
O que Feürbach não explica são os
motivos: Porque o homem se projecta em Deus? Por necessidade ou por doença?
Cristo limitou-se a espelhar o que já sabíamos ou levou-nos para outros
patamares? Outra dificuldade seria uma certa necessidade patológica do homem
projectar de si um sofrimento extremo…qual a necessidade disto? Afinal o homem
não aspira ao prazer e ao conforto? Que sentido faz um ideal de sofrimento?
Sobretudo quando o próprio indica que esse sofrimento nada tem que ver com a
justiça política ou social. Não é precisamente esta ânsia de justiça política e
social que tem acompanhado o homem durante a sua caminhada pela História e que
é o suporte existencial do marxismo?
Não basta explicar o “como”; é necessário explicar o “porquê”! Que sentido faz um Deus que por um momento vacila e parece ateu? Como pode uma projecção defeituosa proteger o homem dos seus defeitos? Pelo contrário, parece fixá-los para a posteridade. Como encarar o Deus que não racha a cana fendida, que não quer a revolução social – não é o espírito de revolta parte do homem? E como pôde o povo judeu projectar de si mesmo uma imagem ideal que é herética e insultuosa? Um arquétipo que incita ao canibalismo e à libação do sangue, cuja genealogia inclui mulheres, algumas delas prostitutas…Que exalta os mais desprezíveis na Antiguidade, as mulheres e as crianças! Que inclui marginais e gentios…O socialismo é uma mitologia, mas uma mitologia elaborada a partir de um ambiente já cristão – é uma mitologia que é uma heresia. Haeresis, escolha. Bela como as mitologias; desequilibrada como as heresias.
Não basta explicar o “como”; é necessário explicar o “porquê”! Que sentido faz um Deus que por um momento vacila e parece ateu? Como pode uma projecção defeituosa proteger o homem dos seus defeitos? Pelo contrário, parece fixá-los para a posteridade. Como encarar o Deus que não racha a cana fendida, que não quer a revolução social – não é o espírito de revolta parte do homem? E como pôde o povo judeu projectar de si mesmo uma imagem ideal que é herética e insultuosa? Um arquétipo que incita ao canibalismo e à libação do sangue, cuja genealogia inclui mulheres, algumas delas prostitutas…Que exalta os mais desprezíveis na Antiguidade, as mulheres e as crianças! Que inclui marginais e gentios…O socialismo é uma mitologia, mas uma mitologia elaborada a partir de um ambiente já cristão – é uma mitologia que é uma heresia. Haeresis, escolha. Bela como as mitologias; desequilibrada como as heresias.
Marx
Se Feuerbach fez uma psicologia da
religião cristã, uma análise psicológica
a posteriori, ao estilo que esse fantástico (e desgraçado) saltimbanco da
escrita, Nietzsche, faria de Jesus Cristo, ora identificando-se ora
alienando-se, de uma suposta figura de O
Idiota de Dostoiévski, é Marx quem adopta para o seu socialismo não o
conteúdo, mas a forma do cristianismo. O socialismo beneficia do antropocentrismo
mítico de Feürbach para construir a sua religião prometaica com Marx.
A posição dos marxistas perante Cristo
e o cristianismo divide-se em duas correntes principais:2
- a
corrente racionalista ou cientificista, que oscila entre o silêncio, o
escárnio ou a crítica radical. É a mesma posição daqueles que hostilizaram
Cristo na Paixão.
- a
corrente especulativa ou utópica, em que Cristo é interpretado como um
líder revolucionário, a cristologia como um movimento prometaico, a verdade
testemunhal e histórica é ignorada ou desacreditada. Tudo se resume a um
simbolismo – é uma gnose. Erich Frömm, mas especialmente a genialidade de Ernst
Blöch são os seus expoentes.
Em Marx podemos ver uma cristologia explícita nas primeiras
obras (Questão Judaica, Introdução Para a Crítica da Filosofia do
Direito de Hegel, Manuscritos
Económico-filosóficos), em que Cristo é apontado como um ideal ou como um
modelo moral, sempre despido da sua realidade histórica ou testemunhal e
deidade:
“”A própria religião nos ensina que o
Ideal ao qual todos aspiram se sacrificou pela humanidade.” (…) “…o nosso
coração, a nossa razão, a história e a palavra de Cristo gritam-nos, pois, com
uma voz alta e persuasiva que a união com ele é necessária e incondicionada,
que sem ele não poderíamos atingir o nosso fim, seríamos rejeitados por Deus e
só ele pode remir-nos.” (…) “Os povos que não conheceram o ensinamento de
Cristo têm uma inquietude interior, um temor da ira dos seus deuses, a
persuasão íntima da reprovação, esperando em vão expiar as próprias culpas
através dos sacrifícios.” (…) “Só na união com Cristo podemos amar a Deus que
antes nos parecia um patrão irado e agora nos parece um pai misericordioso.”
Este Cristo mediador entre o homem e o
ideal do homem, entre o coração corrupto e o desejo pelo bem, entre a voz
enganadora do pecado e a admiração da virtude, entre o poder adulador da
mentira e o desejo pela verdade, desaparece a partir dos Manuscritos Económico-filosóficos e da Ideologia Alemã, “porque para o homem socialista toda a chamada
história universal mais não é do que a geração do homem a partir do trabalho
humano, o devir da natureza pelo homem; assim ele tem a prova evidente,
irresistível, do seu nascimento em-si mesmo, do seu processo de origem. Resulta
praticamente impossível a questão de um ente estranho, de um ente acima da
natureza e do homem; questão que implica a inessencialidade da natureza e do
homem.”
Esta ideia corresponde milimetricamente à ideia expressa por Kant e marcaria definitivamente a filosofia alemã, como veremos. É uma negação, um protesto. Na Ideologia Alemã, Sagrada Família, Teses Sobre Feürbach e Manifesto, a religião é abertamente criticada como ideologia. Nesta Weltanschauung marxista mais amadurecida deixa de haver lugar para um mediador na medida em que a consciência de si depende da tríade natureza-homem-trabalho.
Esta ideia corresponde milimetricamente à ideia expressa por Kant e marcaria definitivamente a filosofia alemã, como veremos. É uma negação, um protesto. Na Ideologia Alemã, Sagrada Família, Teses Sobre Feürbach e Manifesto, a religião é abertamente criticada como ideologia. Nesta Weltanschauung marxista mais amadurecida deixa de haver lugar para um mediador na medida em que a consciência de si depende da tríade natureza-homem-trabalho.
Esta segunda fase marca a mais
interessante cristologia implícita e
autonomiza o socialismo como uma religião. A estrutura do pensamento marxista é
religioso – sujeito revolucionário e libertador figurado no
proletariado; a alienação ou separação da sociedade, figurada
na economia capitalista. O modelo epistemológico é uma projecção do cristianismo,
sempre subentendido. A função alienante e a função libertadora. É a estrutura e
não o conteúdo – é um formalismo cristão:
“O amor humano universal é tido por
muitos como a realização do comunismo. No princípio a coisa pode caminhar. Mas
quando a experiência ensina que este amor não se tornou eficaz em 1800 anos,
que ele não pode mudar os relacionamentos sociais nem fundar o seu reino, segue
manifestamente que este amor que não pôde vencer o ódio não tem a força
necessária para as reformas sociais. Este amor enfraquece o homem.” (…) “Os
princípios sociais do cristianismo pregam a vileza, o desprezo por si mesmo, a
humilhação, a humildade, todas as qualidades da gentalha. O proletariado não
quer deixar tratar-se por gentalha, tem mais necessidade da sua consciência
de si, do seu orgulho, do que de pão.” - É uma primeira referência à teoria
do quanto pior melhor que, como veremos, é uma soteriologia.
Para Marx, o cristianismo era a
religião do capitalismo, das suas condições de miséria e de opressão: “ O
cristianismo é a religião específica do capital. Em ambas não vale senão o
homem. Para um, tudo depende se ele tem fé; para outro, se ele tem crédito. O
cristianismo com o culto do homem abstracto, especialmente no desenvolvimento
burguês, deísmo, etc., divide-se em sistema monetário essencialmente católico e
em sistema creditício essencialmente protestante.”
Claro que Marx, oriundo do mundo judaico, recém aderido ao protestantismo não valoriza, ou não lhe convém valorizar, a perspectiva católica das obras acima da fé.
Claro que Marx, oriundo do mundo judaico, recém aderido ao protestantismo não valoriza, ou não lhe convém valorizar, a perspectiva católica das obras acima da fé.
A função medianeira
de salvação persiste no esquema de Marx; apenas é transferida de Cristo para o
proletariado, de Deus para o Estado.
“O Estado é o mediador entre o homem e
a liberdade do homem. Como Cristo é o mediador ao qual o homem atribui toda a
própria divindade, assim o Estado é o mediador em que o homem transfere a
própria negação do divino, toda a própria liberdade humana de preconceitos.”3
O dinheiro é o intermediário do homem
no sistema capitalista, tornando-se, de meio em fim, no verdadeiro deus. A
escravatura do homem torna-se máxima, ao constatar no dinheiro um poder
independente. Existe então um paralelismo entre Cristo e o dinheiro, num ciclo
de alienação-reapropriação dialética. Cristo representa sucessivamente, o homem
perante Deus; Deus perante o homem; o homem perante o homem. O dinheiro
representa o proletariado perante a propriedade privada; a propriedade privada
perante o proletariado; o proletariado perante o proletariado – existe um
paralelo mediação cristológica e mediação económica num processo de
identificação dialético.
A soteriologia – o Cristo implícito
O proletariado não é apenas o
mediador para a salvação do homem e da sociedade; ele é a vítima
sacrificial sem a qual não existe processo de identificação. É decalque do Servo de Javé de Isaías.4 O
proletariado representa o homem em sofrimento; é de uma total nulidade social,
não tem títulos, não tem história. Padece um sofrimento universal. Vive numa
alienação social radical, económica, política e humana. Este sofrimento deve
ser profundo e autêntico, porque dele depende a tomada de consciência do
proletariado da sua situação (a consciência de si) e a sua predisposição para a
revolta social. Não deve haver qualquer negociação com o capitalismo para a
melhoria das condições dos trabalhadores, porque o sofrimento é o bilhete para
o resgate e para a vitória final. A alienação radical do proletariado é a conditio sine qua non para a revolução e
a emancipação social do homem – é a doutrina do quanto pior melhor.
Escatologia e teodiceia
A teoria marxista da História forma a base da teodiceia: tudo se tornará pleno, bom, perfeito, na utopia pós-revolucionária, o comunismo. O domingo que ainda não foi criado como dizia Santo Agostinho. Mas como poderá o homem ser feliz se a morte persiste? O marxismo traz pouco conforto, mesmo no futuro, a um homem que vê o seu filho sofrer de cancro incurável. Que interesse pode ter um mundo futuro que não se encontra cheio de surpresas? Uma das razões por que a História é tão apaixonante é porque ela é cheia de surpresas. Como evitarão os homens do futuro o tédio se não existe nenhuma dialética de conflito por causa da absoluta igualdade? Estas foram as questões enfrentadas mais tarde, mas não resolvidas, por Ernst Blöch.
Escatologia e teodiceia
A teoria marxista da História forma a base da teodiceia: tudo se tornará pleno, bom, perfeito, na utopia pós-revolucionária, o comunismo. O domingo que ainda não foi criado como dizia Santo Agostinho. Mas como poderá o homem ser feliz se a morte persiste? O marxismo traz pouco conforto, mesmo no futuro, a um homem que vê o seu filho sofrer de cancro incurável. Que interesse pode ter um mundo futuro que não se encontra cheio de surpresas? Uma das razões por que a História é tão apaixonante é porque ela é cheia de surpresas. Como evitarão os homens do futuro o tédio se não existe nenhuma dialética de conflito por causa da absoluta igualdade? Estas foram as questões enfrentadas mais tarde, mas não resolvidas, por Ernst Blöch.
A natureza mítica
Existe nesta soteriologia um elemento
espiritual ou filosófico de natureza mítica retirada dos clássicos:
“Prometeu é o maior santo e mártir do calendário filosófico.”5
“A filosofia, enquanto uma gota de
sangue ainda pulsar no seu coração absolutamente livre, dominador do universo,
gritará sempre aos adversários com Epicuro: «Ímpio não é quem nega os deuses do
vulgo, mas quem aplica aos deuses as opiniões do vulgo».”6
O socialismo assume com Marx uma
dimensão verdadeiramente mitológica, de natureza prometaica, em que o Prometeu
acorrentado de Ésquilo mantém, pela coragem do martírio, o seu orgulho,
rebelião e blasfémia contra os deuses: “A declaração de Prometeu «eu
francamente odeio todos os deuses» é a sua própria sentença contra todos os
deuses celestes que não reconhecem como divindade suprema a autoconsciência
humana.”7
Esse Prometeu acorrentado torna-se
então o Prometeu “criador” dos homens e “construtor” do mundo. O Protágoras de
Platão é assim a visão prenunciadora do marxismo como sujeito criador da
História:
Este Prometeu oscila entre a dialética
do Prometeu acorrentado de Ésquilo, em revolta contra os deuses e o Prometeu
construtor do mundo do Protágoras – ambos figuração do proletariado sofredor
que toma consciência de si pelo sofrimento extremo, se revolta e funda um mundo
novo, uma utopia. É uma dialética hegeliana: sofrimento/alienação – revolta –
retorno a si. Este esquema é uma kenosis
bíblica apenas formal, na medida em que o sujeito não possui a liberdade de
escolha – nenhum proletariado escolheria o pior para si mesmo e para os seus,
tal como a evidência histórica demonstrou.
Na verdade o marxismo é uma imagem mais
clara da filosofia alemã moderna: uma espécie de cristianismo formal, despido
de conteúdo e de liberdade individual, que ficou eternamente preso na
sexta-feira especulativa, nesse momento do tempo e da eternidade em que Cristo
desceu aos infernos. A força humana não consegue mais.
Nele ecoa a recusa hebraica e a recusa
muçulmana: “Jesus não é mais do que o filho de Maria, homem entre os homens.”
Tal como a comuna, também o sionismo laico e a Umma se encontram paradas na
sexta-feira especulativa.8
“Uma coisa como a Igreja Católica tem
um sistema; isto é, uma coisa equilibra a outra. Um homem como Maomé ou Marx,
ou do seu modo, Calvino, pensa que esse sistema é muito complexo e simplifica-o
a uma única ideia…assim constrói um sistema muito desequilibrado com a sua
ideia fixa.”9
António Campos
1 A
Essência do Cristianismo, 1841.
2
Silvano Zucal, Cristo na Filosofia Contemporânea, vol. 1, Ed. Paulus, 2003.
3
A Questão Hebraica.
4
Is 52, 13-15 e Is 53, 1-12:
“Reparem: o meu servo prosperará; será
exaltado! Tal como muitos ficaram pasmados ao vê-lo, sim, até as nações mais distantes
e os seus governantes ficarão como que emudecidos na sua presença!
Porque verão aquilo que não lhes tinha
sido dito anteriormente e compreenderão o que não lhes fora anunciado. Verão o
meu servo tão desfigurado que dificilmente se perceberá que se trata de uma
figura humana ali presente. Mas é assim que ele limpará muitas nações.”
5 Prefácio
à sua tese de doutoramento, “A Diferença entre a Filosofia da Natureza de
Demócrito e de Epicuro”, de 1841.
6 Cadernos
dos Trabalhos Preparatórios para uma História da Filosofia Epicurista, Estóica
e Céptica.
7 op. cit.
8 «…Os mortos todos gritam-lhe: "Cristo, não há Deus?" Ele respondeu: "Não,
não há Deus." A sombra de cada morto estremeceu, e umas a seguir às
outras desconjuntaram-se. E Cristo continuou, anunciando o que aconteceu no
instante da sua própria morte: "Atravessei os mundos, subi até aos sóis,
voei com as galáxias através dos desertos do céu; e não há Deus. Desci até onde
o ser estende as suas sombras, e olhei para o abismo, gritando: Pai, onde
estás? Mas apenas ouvi a tormenta eterna, que ninguém rege (...)." Quando, no espaço incomensurável, procurou o olhar divino, não o encontrou;
apenas o cosmos infindo o fixou petrificado com uma órbita ocular vazia e
sem fundo, e a eternidade jazia sobre o caos e roía-o e ruminava-se. O
coração estalou de dor, quando as crianças sepultadas no cemitério, se lançaram
para Cristo, perguntando: "Jesus, não temos Pai?" E ele, debulhado em lágrimas,
respondeu: "Somos todos órfãos, eu e vós, não temos Pai." (...) Nada
imóvel, petrificado e mudo! Necessidade fria e eterna! Acaso louco e absurdo! (...)
Como estamos todos tão sós na tumba ilimitada do universo! Eu estou apenas
junto de mim. O Pai, ó Pai! Onde está o teu peito infinito, para descansar
nele? Ah! Se cada eu é o seu próprio criador e pai, porque é que não há-de
poder ser também o seu próprio anjo exterminador?»
(Jean Paul, Discurso do Cristo
Morto, Desde o Cume do Mundo, Sobre a Não Existência de Deus, 1796).
9 Chesterton, On The Open Conspiracy, Come to Think of It.