Numa entrevista para admitir um
candidato a um determinado lugar ou função, existem
maneirismos, tons de voz
nas respostas, pequenas hesitações e determinados comportamentos do olhar que
influem na decisão de quem avalia. Quando procuramos avaliar uma pessoa pelo
olhar, não nos portamos como um oftalmologista. Não procuramos saber o estado
da cornea ou do cristalino, do nervo ótico ou da retina. Essa é a atitude do
cientista. A atitude de avaliar uma pessoa pelo olhar é muito menos precisa e
difícil de definir. É a “expressão do olhar”, o modo como fita os nossos olhos,
o modo como desvia o olhar face a uma pergunta. Por isso mesmo se diz, com uma
certa verdade, que os olhos são o “espelho da alma”. O uso de
óculos escuros não é apenas uma moda, também é uma ocultação ou barreira. Ao
avaliar uma pessoa, nós avaliamos “conexões”, como afirmavam Newman, Chesterton
e Wittgenstein.
Grande parte da confusão do espírito moderno
resulta de um certo “cientismo do eu” e “cientismo da moral”: o cartesianismo, a
psicanálise e o utilitarismo. A crítica ao cartesianismo por Wittgenstein, pela
sua importância, será abordada em detalhe, separadamente.
O cientismo é um “jogo de linguagem” –
lida com o poder sobre uma sociedade. Quem tem o poder de impor esse “jogo de
linguagem” reduz todos os outros a um papel marginal de minoria cognitiva. O
cientismo reduz a ética à sua formulação utilitarista; ou seja, usa fórmulas
matemáticas para resolver dilemas éticos – o balanço entre o maior prazer e a
menor dor. Por outro lado, a ciência, de onde o cientismo vai reclamar a sua
legitimidade, não é um “jogo de linguagem”; é observação e dedução – estuda a
existência ou não existência dos “estados de coisas”. Finalmente, a matemática
não é uma ciência; é uma linguagem.
A psicanálise ilustra bem em que ponto
uma construção mental, um edifício imaginativo ou mitológico, reivindicando a
exactidão e evidência da ciência, falha por não cumprir os seus requisitos.
Funciona ao modo do cientismo: por extrapolação a partir de premissas que não
são indiscutíveis, a partir de um fundo de verdade. Praticamente todas as
religiões afirmam que o homem possui o bem e o mal dentro de si, que é um ser
manchado, um criminoso ou um anjo em potência. Mas nenhuma afirma que no
processo de separação da mãe, a criança do sexo masculino deseje assassinar o
pai. Imputar a uma criança o horror do incesto, que é, na verdade, património
de uma civilização, é um erro clamoroso. As normas não reprimem o homem nem lhe
provocam neuroses; pelo contrário, é a existência de regras que torna os homens
livres. A sua preocupação, em geral, é com o outro, o bem comum, e não com o
eu. É difícil aceitar o fraccionamento da personalidade, uma vez que qualquer
edifício jurídico necessita de imputar ao homem toda a responsabilidade moral.
O labirinto é uma das imagens
recorrentes na mitologia grega. Ele não representa apenas algo material; ele
representa também um estado psicológico. Um rato é perfeitamente livre dentro
de um labirinto; no entanto, a impossibilidade de encontrar uma saída clara
demonstra o paradoxo: estando livre, o animal encontra-se preso. Se não
encontrar a porta de saída e um caminho certo, claro e definido para ela, ele
ficará enredado. Este também é um estado mental; se não encontrarmos clareza,
não encontraremos uma porta de saída.
Para Wittgenstein, à filosofia caberia
a crítica da linguagem com sentido – a clareza intelectual. Os cientistas
necessitam de filósofos, numa relação semelhante à que existe entre os insectos
e os entomologistas.
Em On Certainty: “De cada vez que uso
palavras no meu encontro com o mundo, eu desenho os limites dentro dos quais a
veracidade do que afirmo pode ser determinada. Mas estes limites dos jogos de
linguagem têm buracos; ou seja, existe um certo tipo de conhecimento, como o
científico por exemplo, em que as coisas podem ser de outro modo totalmente
diferente. Sempre que eu digo, "chove", existe a possibilidade aberta
de que "não esteja de facto a chover" ou que "eu pensei que
estava a chover". A essas possibilidades poderemos chamar graus de
incerteza.”
Nas palavras de Chesterton:
A verdade é que aqueles que andam
sempre a falar de factos não entenderam o maior de todos os factos, que é em si
um paradoxo:
Os factos só por si não criam o
espírito da realidade, porque a realidade é um espírito. Os factos só por si
podem por vezes alimentar a fogueira da loucura, porque a sanidade é um
espírito.1
Lógica, Ciência e Senso Comum
A lógica ocupa-se de avaliar se uma
proposição é verdadeira ou falsa no sentido do seu significado existencial, mas
nada nos diz sobre a realidade. É a ciência e o senso comum que nos informam
sobre os “estados de coisas”, isto é, sobre a realidade. Exemplifiquemos. Se eu
disser: “um melro está a voar sobre a minha casa”, esse é um pensamento com
sentido, lógico, que pode ser ou não ser verdadeiro. A lógica avalia se algo
tem sentido, se é. Por exemplo seria ilógico afirmar “uma baleia está a voar
sobre a minha casa”.
O que nos diz se uma determinada coisa
é real é a ciência e o senso comum, que nos informam sobre “os estados de
coisas”, sobre o que está no mundo. Por exemplo, se eu observar um pássaro
negro de bico amarelo a voar sobre a minha casa, posso dizer que é verdade um
melro estar a voar sobre a minha casa. No entanto, suponhamos que é noite. O
senso comum informa-me que os melros não voam à noite e que portanto a minha
observação deve ser falsa. Dito de outro modo: suponhamos que é meia-noite e eu
me encontro numa casa junto a uma estrada e venho ao jardim. Ouço a 2
Km um tropel de uma manada de cavalos que se aproxima a grande velocidade. O
espaço lógico e o espaço empírico dizem-me que a minha “observação” é, e que é
um “estado de coisas”. É o senso comum que me informa que essa “observação” não
é real, esse “estado de coisas” não pode existir por ser absurdo; as manadas de
cavalos não correm à meia-noite em ambiente urbano.
Como se pode então aprender esse tipo
de sensibilidade, esse sentir comum dos homens, essa iluminação do sentir comum
que rejeita o absurdo, o que não é natural, esse processo interno dependente de
fatores externos? Nunca pela mão de psicólogos ou de outros “cientistas
sociais”, mas pelos trabalhos de grandes artistas, músicos e romancistas:
“Hoje em dia, as pessoas pensam que os
cientistas os instruem e que os poetas, músicos, etc., lhes dão prazer. A ideia
de que estes últimos têm algo para lhes ensinar, não lhes parece ocorrer.”2 É o conceito “daquilo em
que toda a gente concorda” que “requere um esforço extraordinário” e que “não é
o princípio, mas sim o fim da filosofia”, por forma a evitar a “confusão”, que
é um problema existencial e que nos impede de ver os factos:3 “O indivíduo
filosoficamente confuso é uma vítima da sua cultura, pervertida pela
linguagem.” Só pelo esforço de atingir esta clareza “conseguiremos ver as
coisas mais importantes que se encontram para nós dissimuladas, devido à sua
simplicidade e familiaridade.”4
O Uso da Linguagem
Na famosa discussão com Russell sobre
se era verdade ou não a existência de um hipopótamo na sala de aula, entende-se
como funciona a lógica para Wittgenstein.
Assim, verdade significa se uma
proposição é logicamente verdadeira (espaço lógico); realidade significa se
existe um determinado “estado de coisas” (espaço-tempo), que basicamente
descreve o encadeamento de objectos para formar um contexto. Por conseguinte, o
hipopótamo está (ou é) é uma proposição verdadeira porque os hipopótamos
existem; enquanto que o estado de coisas “o hipopótamo está agora na sala de
aula”, não é real.
Como se adquire e aprende a linguagem?
Pelo uso! Uma criança aprende a usar a linguagem antes de aprender as suas
regras lógicas, a gramática. É pelo modo como combinamos os objectos (nomes)
para representar estados de coisas e pelas respostas que as pessoas dão, por
entender esse uso da linguagem, que nós aprendemos o uso da linguagem.
Lembremos as afirmações de Wittgenstein: “Os objectos só podem ser nomeados”,
“um pensamento só pode ser expresso por uma proposição” e “numa proposição um
pensamento encontra uma expressão que pode ser percebida pelos sentidos”.
Portanto, da combinação objecto/nome – pensamento/proposição – percepção
sensorial, resulta a minha linguagem e o meu mundo.
Em Wittgenstein, os sentidos adquirem
um papel de topo no processo de conferir sentido às coisas. O seu anti-cartesianismo
é manifesto.
“É pela sua utilização em
"contextos" que a linguagem adquire para nós sentido, antes mesmo de
a estudarmos.
É uma coisa viva.
A proposição em uso é como a primeira
pessoa usando a experiência prévia da terceira pessoa. É íntima com o que a
rodeia; o seu significado como conhecimento só se nota em retrospectiva. É a
palavra ontológica sobre a palavra epistemológica, contribuindo em primeiro
lugar não para o conhecimento, mas sim para ser, para viver.”4
Wittgenstein compartilha do ponto de
vista de Santo Agostinho, que representa a linguagem como um processo em que o
sentido se adquire por comparação entre conceitos internos e objectos externos
numa dependência histórica.
Nós aprendemos a usar a linguagem antes
de aprendermos a linguagem. O sentido e a compreensão ocorrem na esfera pública
e não na privada, pelos chamados "jogos da linguagem" ou contextos de
uso.
O que é, então, a gramática?
A Gramática
“A gramática relaciona-se com as regras
implícitas da linguagem, que determinam os limites do seu uso com sentido.”
Essas regras não são meramente descritivas, são normativas. Portanto, uma
proposição que expresse uma regra é uma “proposição gramatical”, enquanto que
uma proposição empírica não é. Logo, “um hipopótamo está (ou é)” é uma proposição
gramatical, enquanto que “um hipopótamo está na sala” não é; é empírica.
Afirmar que o hipopótamo esteja na sala é falso, mas é algo inteiramente
inteligível; negar que o hipopótamo exista e que, portanto, em certas
circunstâncias pudesse estar na sala, não é inteligível, do ponto de vista de
Wittgenstein. Negar que um hipopótamo pudesse estar na sala seria como negar
que as pedras sejam objectos materiais; negar que um hipopótamo esteja na sala agora
seria como negar que não existem pedras no leito dos rios – algo que é falso
mas inteligível, poderia perfeitamente acontecer. Sabemos que as pedras são
objectos materiais pelo próprio uso da palavra pedra; sabemos que o hipopótamo
é, pelo uso da palavra hipopótamo. Foi isto que Russell não compreendeu…ou não
aceitou.
Então, as regras gramaticais seriam
como as regras de um jogo. Dizer que num jogo de damas, uma peça encavalitada
noutra é uma rainha, é dar expressão às regras do jogo. Dizer que a rainha nas
damas se move em quadrados vermelhos em vez de pretos é falso mas é um erro
empírico; dizer que duas peças encavalitadas não formam uma rainha, mas uma
peça como as outras, não é cometer um erro empírico – é ir contra as regras do
próprio jogo! 5
Para Wittgenstein, uma teoria
metafísica como o idealismo de Berkeley funciona como um erro gramatical. É
exatamente o que Berkeley faz ao dizer que uma pedra não é um objecto material
mas uma colecção de percepções. Deste modo, o estudo das regras constitutivas
da linguagem, a gramática, podem ajudar-nos a expor teorias metafísicas
erradas. Elisabeth Anscombe tinha razão ao afirmar que Wittgenstein se situa na
tradição de Platão, por conectar o desenvolvimento da metafísica com a
gramática. Wittgenstein afirma que a “essência é expressa pela gramática” e “a
gramática diz-nos que tipo de objecto uma coisa é”.4
Pode pensar-se que a gamática exprime a
realidade de uma forma realista, como a realidade “realmente é” ou, por outro
lado, que exprime a realidade de forma contingente, em que a
linguagem/gramática (o seu esquema conceptual) e a realidade se colocam a par,
correspondendo ou não uma à outra (o conceito númeno-fenoménico de Kant). No
entanto, Wittgenstein descarta este modo kantiano de entender a correspondência
entre realidade e linguagem, apelidando-a de “confusão gramatical”. No nosso modus vivendis, no uso comum da
linguagem, a questão da sua correspondência com a realidade não se coloca: “Uma
pintura ou quadro lógico mostra como as coisas são porque partilha uma forma
homóloga com a realidade.”6 Ou
seja, por analogia, um pensamento não pode ser mostrado, mas ao partilhar o meu
quadro lógico com uma proposição, ele encontra-se expresso na proposição.
Embora a especulação metafísica possa
oscilar entre o realismo e o anti-realismo, a crítica à metafísica que
Wittgenstein faz, não é destinada à metafísica como a concebemos classicamente,
mas a esta nova metafísica saída da especulação filosófica moderna
anti-realista.
O que Wittgenstein afirma ao criticar a
metafísica pela gramática, é criticar o cartesianismo e tudo o que dele
derivou: o empiricismo, o kantianismo, o idealismo. Para Wittgenstein,
metafísica é toda a especulação filosófica que se inicia e termina em
conceitos, recusando confiar nos sentidos:
“Eu criei-me a mim próprio: o meu ser
pelo meu pensamento, o meu pensamento pelo próprio pensamento”, como dizia
Fichte.7
“Há um cético mais terrível ainda do
que aquele que acredita que tudo começou na matéria. É possível encontrar o
cético que acredita que tudo começou em si mesmo. Este é o que duvida, não da
existência de anjos ou de demónios, mas da existência dos homens e das vacas.
Para ele, os próprios amigos não passam de uma mitologia que a sua mente
arquitetou: foi ele quem criou o próprio pai e a própria mãe.”8
Ora, lembremos o Wittgenstein do
Tractatus: “Numa proposição, um pensamento encontra uma expressão, que pode
ser percebida pelos sentidos. Numa proposição, um nome é representativo
de um objecto. Os objectos só podem ser nomeados. Um pensamento é uma
proposição com um sentido. No mundo tudo está como está e tudo acontece como
acontece. Nele não existem valores.“
Por outras palavras, a mente está presa
pelo que é percebido acidentalmente pelos sentidos.
“Constatei, surpreendido, que filósofos
que aprendi a admirar, afinal tinham todos cometido erros grosseiros de
raciocínio.” (…) “Não existe
eu!”9
António Campos
1 - G. K. Chesterton, ILN Agosto 1929.
2 – Wittgenstein. Culture and Value, cadernos de notas
de Wittgenstein publicado por G. H. von Wright em 1977, Ludwig Wittgenstein,
"Ethics, Life and Faith," The Wittgenstein Reader, ed. Anthony Kenny
(Oxford, Blackwell Press 1994).
3 – Frederick Stoutland Review of Duncan Richter,
Wittgenstein at His Word. Notre Dame Philosophical Reviews, 2005.
4 – Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas. Fundação Calouste Gulbenkian 2015. ISBN978-972-31-0383-0.
http://www.psicanaliseefilosofia.com.br/textos/InvestigacoesFilosoficas-Original.pdf
5 – Edward Feser. Goodill on Scholastic Metaphysics
and Wittgenstein, 2015.
6 - John Heaton and Judy Groves. Wittgenstein for
Beginners. Penguin Books, London. ISBN 1 874166 17 X.
7 – Daniel Breazeale. Thinking Through the
Wissenschaftslehre, Themes from Fichte's Early Philosophy. Oxford 2013. ISBN
9780199233632.
8 - Chesterton, Ortodoxia.
9 - Tractatus Logico-Philosophicus, Kegan Paul,
Trench, Trubner & CO., LTD., London, 1922. https://www.gutenberg.org/files/5740/5740-pdf.pdf
e
https://marcosfabionuva.files.wordpress.com/2011/08/tractatus-logico-philosophicus.pdf.
Breve nota sobre a afirmação “o nexo
causal é superstição!”
1 – É superstição dizer que a cadeia
causal se aplica a toda a natureza e não apenas à ciência, uma vez que o nexo
causal faz parte do “jogo de linguagem” da ciência.
2 – É superstição afirmar que a cadeia
causal é um achado da ciência. O nexo causal é um silogismo lógico.
3 – É superstição inferir o futuro por
meio do nexo causal, uma vez que existem múltiplas possibilidades para o
futuro.
4 – É superstição deduzir um passado
não disponível por nexo causal, como acontece em teorias científicas, ao
considerá-las e ensiná-las abusivamente como leis.