A nossa época é em grande medida
kantiana, hegeliana e marxista, no sentido em que
predomina o cepticismo, a suspeita ou hostilidade para com o homem comum, o egocentrismo, a construção de sistemas para encaixe da realidade e finalmente a negação da possibilidade de alcançar a verdade. O que caracteriza os filósofos da moda é o materialismo e o anti-cristianismo. No entanto, o cristianismo aparece sempre em pano de fundo; estas filosofias parecem sempre construídas em relação a e em negação. Mas o facto de a discussão entre ateus e crentes continuar, tantos anos após o iluminismo, parece provar que acreditar em milagres não é próprio de uma mente menor (como afirmava Arnold Bennett) e que nenhum homem suporta morrer fora da verdade. Se tudo acaba na morte para quê discutir se existe vida para além da morte? Nenhum homem suporta morrer no erro. A ânsia pela verdade está profundamente inscrita em toda a alma humana. A verdade tem uma natureza tal, que quando um homem não segue apenas guiado pela vaidade da sua mente e do seu ego, desligado da experiência do viver quotidiano, em comunhão com os outros homens, ela acaba por se tornar evidente ao seu espírito. Terminamos a crítica à dialética de Hegel, incidindo sobre a natureza da realidade.
predomina o cepticismo, a suspeita ou hostilidade para com o homem comum, o egocentrismo, a construção de sistemas para encaixe da realidade e finalmente a negação da possibilidade de alcançar a verdade. O que caracteriza os filósofos da moda é o materialismo e o anti-cristianismo. No entanto, o cristianismo aparece sempre em pano de fundo; estas filosofias parecem sempre construídas em relação a e em negação. Mas o facto de a discussão entre ateus e crentes continuar, tantos anos após o iluminismo, parece provar que acreditar em milagres não é próprio de uma mente menor (como afirmava Arnold Bennett) e que nenhum homem suporta morrer fora da verdade. Se tudo acaba na morte para quê discutir se existe vida para além da morte? Nenhum homem suporta morrer no erro. A ânsia pela verdade está profundamente inscrita em toda a alma humana. A verdade tem uma natureza tal, que quando um homem não segue apenas guiado pela vaidade da sua mente e do seu ego, desligado da experiência do viver quotidiano, em comunhão com os outros homens, ela acaba por se tornar evidente ao seu espírito. Terminamos a crítica à dialética de Hegel, incidindo sobre a natureza da realidade.
Realidade Multiforme em viagem:
determinismo, probabilidade, mistério4
– Determinismo e Probabilidade
O universo matemático independe do
tempo. Os teoremas de Euclides e de Pitágoras já existiam antes destes
matemáticos os terem formulado porque eles são reais, encontram-se por todo o
lado no universo. E continuarão a existir depois de nós. Todo o universo se
desenrola sobre o tapete da matemática. A ordem matemática racional precedeu o Big Bang. A origem do Universo não é de natureza física, é matemática. A matemática está fora do tempo5.
No universo físico a correspondência
não é tão exacta como na matemática, na medida em que as substâncias sofrem
transformação. No entanto, nunca alguma coisa surge do nada, tudo se conserva e
transforma. O universo físico sofre a influência do tempo, mas mantém um elevado
grau de determinismo. À medida que nos aproximamos da sua natureza mais
fundamental, como a ultra-estrutura e a natureza da radiação, a obtenção de
graus de certeza têm apenas natureza probabilística, como o demonstram a teoria
quântica e a teoria da relatividade.
No universo biológico o grau de incerteza
é muito superior. Não só os descendentes herdam apenas um dos pares do ADN dos
progenitores, como podem existir fenómenos de crossing-over, de inactivação génica, ou toda a variabilidade que a
epigenética pode conferir.
No universo psicológico, acentua-se a
incerteza e o subjectivismo, o que expõe a sua interpretação ao espírito da
época. Primeiro acreditava-se que tudo era aprendido por educação: Rousseau e
Bernard Shaw. Basta ver qual o assunto de fundo da obra de Shaw, Pigmalion ou My Fair Lady ou de O Emílio
de J.J. Rousseau. Depois passou a acreditar-se que eram os traumas da infância
que determinavam o comportamento adulto ou um misterioso id incognoscível, irracional, aético, submerso no interior do ser,
a que se opôs o behaviorismo ou comportamentalismo. Seguiu-se que tudo era
genético. Agora pensa-se que existe um componente genético e um componente
ambiental. Enfim, neste universo o grau de incerteza aumentou.
Dizia Bernard Shaw sobre o seu pessimismo: “Eu não tenho culpa, caro leitor, que o meu estilo seja a expressão de uma certa perversidade moral e intelectual, mais do que um sentido de beleza. Passei a maior parte da minha vida em cidades modernas, onde o meu sentido de beleza definhou e o meu intelecto se afundou em problemas como o das favelas.” G B Shaw, The Bodley Head Bernard Shaw. Chesterton poderia dizer algo semelhante e somar umas quantas desgraças pessoais e familiares; porém não optou pelo mesmo tom.
Dizia Bernard Shaw sobre o seu pessimismo: “Eu não tenho culpa, caro leitor, que o meu estilo seja a expressão de uma certa perversidade moral e intelectual, mais do que um sentido de beleza. Passei a maior parte da minha vida em cidades modernas, onde o meu sentido de beleza definhou e o meu intelecto se afundou em problemas como o das favelas.” G B Shaw, The Bodley Head Bernard Shaw. Chesterton poderia dizer algo semelhante e somar umas quantas desgraças pessoais e familiares; porém não optou pelo mesmo tom.
O universo moral é ainda mais complexo:
porque perdoamos, porque protegemos os fracos, porque tratamos dos doentes e
dos velhos, porque temos sentido de culpa, porque temos um ordenamento moral e
jurídico? Porque nos causa angústia a errónea avaliação dos fracos e dos
feios?
No universo religioso o grau de previsibilidade
é ainda menor. Na altura em que o homem somava deuses e mitos, deu-se a
inversão monoteísta e a alegoria. Na altura em que se fazia a apologia dos
fortes e do auto-fortalecimento, deu-se a religião do “outro” e dos fracos. Na
altura dos demónios implacáveis, veio o Deus que chora, que vacila e que reza.
À medida que o nosso universo versa
sobre uma realidade mais complexa, o seu determinismo diminui e o grau de
previsibilidade também. Como dizia Heisenberg, o universo foi concebido de tal
forma a que o improvável seja concebível. A armadilha para os lógicos é que
embora o universo pareça inteiramente lógico por se desenrolar sobre o pano de
fundo da matemática, foi nele introduzido um pequeno grau de imperfeição, de
incompletude, de variabilidade, que o tornam sempre maravilhosamente novo e
inesperado, sem deixar ser familiar.
Uma Realidade apreensível mas não na
sua totalidade
Por a realidade não ser disponível em
sua totalidade, tal não significa que não seja apreensível pelo ser humano. Por
uma realidade ser multiforme, sendo apenas apreensível por uma miríade de
olhos, tal não significa que dois olhos não apreendam uma das múltiplas faces
constitutivas da realidade poliédrica. Ninguém pode dominar simultaneamente a
matemática, a medicina, a arquitectura, a física, a música, etc. Tal não
significa que não conheçamos aquilo que conhecemos. Por nem da natureza humana
sermos senhores, isso não faz de nós menos humanos.
Por eu ser analfabeto musical não
significa que eu não guardo capacidade de avaliação de uma peça musical ou de
uma melodia. Por eu ignorar conceitos matemáticos como o de números imaginários
não significa que eu não sou confiável no uso da aritmética. Por eu ser um zero
em pintura não significa que não posso apreciar um quadro. Será que Mozart não
era músico por não conhecer a música rock? Ou será que Münch não era pintor por
não pintar como Delacroix?
A realidade incomunicável também é
conhecimento
Hegel afirmava que o que é incomunicável
não é conhecimento, é o mero acreditado. Mas sem ir para o campo da metafísica,
não é difícil de provar que existe algo na realidade de incomunicável e intangível
que é conhecimento. Por exemplo quando tentamos traduzir uma língua
estrangeira, existe algo do saber comum de um outro povo que não conseguimos
colocar por completo na nossa tradução, mesmo que compreendamos do que se
trata, pela falta de equivalentes precisos. Há algo nos conselhos que nos dão
que não os torna completamente credíveis, porque eles não passaram pelo fogo da
nossa própria experiência. Há algo naquilo que os nossos pais fizeram por nós
que, por mais que o tenhamos admirado, nunca valorizamos completamente; é, por
sua vez, quando, nos tornamos pais que compreendemos melhor a acção dos nossos
próprios pais, as suas angústias, ânsias e alegrias. É quando tentamos
descrever fisicamente uma pessoa que compreendemos que falta algo na linguagem
que só a arte pode melhor expressar. Hegel foi traído pelo seu anti-empirismo
radical. A realidade é apreensível mas tem uma dimensão intangível.
A posse esgota o desejo; é a liberdade
que o mantém
Hegel dizia que o desejo se esgotava
com a posse do objecto e que a posse era essencial ao homem no processo de
identificação. Todos temos a experiência do brinquedo abandonado ao fim de uns
dias de uso quando éramos crianças; ou, em adultos, do automóvel que perdeu
aquele brilho que possuía quando chegou à garagem pela primeira vez. No
entanto, se amamos uma pessoa, ela nunca é o objecto que se possui, o desejo
nunca se esfuma; é na sua liberdade que se funda o nosso desejo. Como não
conseguimos englobar toda a realidade cognoscível – matemática, ciência, arte,
etc. – o nosso desejo de conhecer não se esgota. Também a desproporção que
existe entre o intelecto criado e o Criador não cessa o desejo: “Tal como a
corça suspira pelas torrentes de água, assim eu anseio por Vós, ó meu Deus.”
O que é real é a particularidade
Os testes de ADN, as impressões
digitais, o número de poros/cm2, a leitura da íris, todos nos
indicam uma realidade e unicidade no que é individual. Até por características
tão triviais como o som que se faz ao caminhar, se pode reconhecer uma pessoa
próxima. E o que dizer da especificidade do olfacto dos cães que seguem um
rasto de uma pessoa específica às vezes com sete dias de intervalo? É
exactamente ao ”tudo” que falta consistência e concordância. É mais fácil
descrever as características objectivas de uma pessoa determinada do que as
características do povo a que pertence, sobre o qual haverá sempre opiniões
contraditórias. O próprio Deus indicou essa realidade ao comunicar sempre por
meio de indivíduos concretos.
O Tempo como desenvolvimento de uma
realidade incompleta
O tempo determina todo o pensamento da
lógica hegeliana. No sentido em que o processo em si é a realidade enquanto que
as coisas são apenas estados, meras ilusões. Mas devido à incompletude da vida,
à sua natureza particular e única em cada coisa, parece que o tempo é apenas
uma etapa para a necessária interacção entre as pessoas, os seres e as coisas,
e para a sua completude. Como se a presença de realidades concretas tão
dissemelhantes servissem para limar arestas e fazer realçar vícios e virtudes.
As coisas serão assim as realidades e o tempo um processo, em que elas se
revelam e se transformam, como acontecimentos numa fita de cinema.
O Progresso como Retorno
Os ciclos que são presentes em toda a
biologia são meios para se chegar a qualquer lado. O ciclo de Krebs, o ciclo da
ureia, o ciclo da água, são como as rotundas do trânsito, soluções práticas
para escoar coisas. Aceitarei imediatamente que o ciclo é a finalidade em si
mesmo quando alguém me disser que o objectivo de uma rotunda é circular
continuamente à volta dela, em vez de escoar o trânsito com uma determinada
ordem e finalidade. Aceitarei que a viagem é mais importante do que a chegada a
um determinado local, quando alguém me disser que o melhor de uma viagem a
Londres é a estadia no avião.
Se a dialética se fecha apenas em
tese-antítese-síntese, é possível como princípio de acção política, ao desejar
uma determinada síntese, agir de forma inversa e preparar as respectivas tese e
antítese. Este mecanicismo ou esquematismo é encerrado em si mesmo, e ignora o
quanto a acção histórica e a própria vida decorre a partir de acontecimentos e
personagens inteiramente inesperados e imprevisíveis.
Se o progresso é uma finalidade, então
nunca existe ponto de partida nem ponto de chegada, existe sempre o processo e
não as coisas, existe apenas fluxo. Como diz Chesterton, não existindo objecto
sobre o qual pensar, não existe pensamento (porque não existe alteridade). A
lógica de Hegel inicia-se com um ataque à fé e termina com um ataque à razão.
Desse ponto de vista é a estrada da crença moderna, da moderna filosofia. C’ést la folie!
Mas…”Eu renovo todas as coisas.”6!
António Campos
Notas 4 e 5 retiradas de Olavo de Carvalho
Notas 4 e 5 retiradas de Olavo de Carvalho
4
Não existe uma correspondência exacta entre o edifício matemático e a ordem da
natureza. Existe um elo, mas não tão firme quanto o da fundamentação lógica,
porque na relação causa-efeito foi introduzida a dimensão do espaço e do tempo.
É uma correspondência real, mas aproximada (hiato). Não existe a mesma nitidez
nem inexorabilidade, não existe uma correspondência perfeita. A realidade
matemática não depende do universo físico, mas o universo físico obedece, com
esse hiato, à ordem lógico-matemática. Ela é algo, ela não é um nada.
Aristóteles tinha razão.
5
Conceito - diferença entre os conceitos matemáticos e os de qualquer outra
coisa. Um conceito matemático é sempre fechado em si mesmo e imutável
(imutabilidade do objecto: 2, 3, etc.). O significado esgota-se completamente
no conceito – é a estabilidade dos entes matemáticos de Platão. Este facto nem
é dado pela ordem externa nem é invenção da mente humana. Formas independentes
da realidade física existente mas que não são inexistentes. Não são inventadas
porque são acessíveis a qualquer homem, são universais. Estas entidades ideais
estruturam-se coerentemente no edifício da aritmética. Existe relação lógica
entre a premissa (o fundamento) e a conclusão (o fundamentado) numa dedução
matemática. A aritmética é inteiramente dedutível.
6
Ap., 21, 5-6.