Sempre me fascinou o tempo e o silêncio.
Eu gostaria de pensar em três ideias menos inquietantes: paciência, memória e esperança.
As pessoas precisam de tempo: tempo para se desenvolverem, tempo para se encontrarem. Desse modo deveremos ser, como diz o Novo Testamento, lentos a julgar.
Quanto à esperança, não me refiro aqui à esperança que o tempo traz para os crentes. Prefiro falar do tempo como curativo. Por um lado, da forma como sara as nossas feridas, como problemas que nos pareceram gigantescos se resolvem e se esfumam; por outro, da possibilidade que o tempo dá para o perdão. Como pode evitar que reviver uma dor do passado no presente seja fazer outra dor e sofrer novamente, como dizia Shakespeare. Dessa forma, pacifica e sara.
Relativamente à memória, não seríamos o que somos se não fôssemos passageiros no comboio da História. Se não integrássemos o ontem, estaríamos sempre entre desconhecidos e sem casa.
Natal de 1999, Kowloon. Algures entre
Tsim Sha Tsui e Yau Ma Tei. A minha mente é assaltada pela miríade de caracteres
chineses suspensos e sobrepostos como reclamos luminosos. Esse ruído gráfico e
a estranha ausência pública do presépio, despertam-me para o valor da paz e
do silêncio. Encontro em Macau a fachada da Catedral de São Paulo, réplica da Sé Nova de Coimbra, construída pelos jesuítas. Uma igreja sem corpo, apenas face, numa cidade que se chama A Cidade do Santo Nome de Deus de Macau.
Silêncio, silens, estar sossegado, em repouso. O silêncio não é um nada; é um
encontro. Se falas constantemente, não pensas; se sempre rebates um argumento,
alimentas uma discussão sem fim. A um argumento pode sempre opor-se outro
argumento, dizia Dostoiévski. Como pesam as palavras daqueles que as
usam com parcimónia!
O silêncio não é um nada, é um
encontro: connosco e com o intangível. Com aquilo que nos fala da mesma forma
que a luz do sol; que ilumina a nossa vida com a marca da bondade. Um rosto,
uma ruga, um olhar, um gesto, deixam a marca de um botão de rosa. Mas se o
silêncio é um encontro com a externalidade intangível, o silêncio também é um encontro com o intangível em si próprio. Eu acordei na minha circunstância e
possuo facetas que não domino nem conheço. Diz Jeremias e o salmista (139), que
“antes mesmo de te formar no ventre materno Eu te escolhi”. Não escolhi a minha
família, o meu nome, o meu país, o meu corpo, não foi minha decisão nascer como
testemunha o meu cordão umbilical. Todas as tentativas de me conhecer, são
aproximações narcísicas, que o silêncio delimita e reconcilia.
Não é verdade que eu vejo o argueiro no olho do outro mas não vejo a trave no meu próprio olho? Ou como dizia Chesterton, "(Senhor) Dai-me olhos miraculosos para ver os meus olhos, esses espelhos que rolam vivos em mim..."
Não é verdade que eu vejo o argueiro no olho do outro mas não vejo a trave no meu próprio olho? Ou como dizia Chesterton, "(Senhor) Dai-me olhos miraculosos para ver os meus olhos, esses espelhos que rolam vivos em mim..."
Existe um personagem que integra em si mesmo o tempo e o silêncio, a eternidade e a ausência de réplica, o perdão e a paz. Esse personagem arrebatador, de silêncios desconcertantes, anunciado por todos os profetas, é o único sobrevivente de ecos semelhantes na História. Sobre ele construiu-se uma poderosa civilização e cultura. Ele que acalmou o vento, possui uma singular integração nas estações do ano. Com elas marcha, como numa peregrinação. Nascido no Natal, eis o Sacerdote da Primavera:
"O sol apareceu e o ar amainou no Domingo de Páscoa. Trata-se de uma claridade intrigante que traz um fôlego não apenas de novidade, mas também de revolução. Existem dois grandes exércitos do intelecto humano que se degladiarão até ao fim em torno de uma questão vital:
"O sol apareceu e o ar amainou no Domingo de Páscoa. Trata-se de uma claridade intrigante que traz um fôlego não apenas de novidade, mas também de revolução. Existem dois grandes exércitos do intelecto humano que se degladiarão até ao fim em torno de uma questão vital:
Deve enaltecer-se a Páscoa por ela se
encaixar na Primavera ou deve enaltecer-se a Primavera por ela se encaixar na
Páscoa?
Na verdade, as únicas duas coisas que
satisfazem a alma humana são uma pessoa e uma história; e mesmo a história tem
que ser acerca de uma pessoa.
Existem na realidade apetites bastante
voluptuosos e divertimento nas meras abstracções - como a matemática, a lógica
ou o xadrez. Mas estes prazeres da mente são como os prazeres do corpo: são
meros prazeres, embora possam ser intensos, nunca, por uma mera gradação de si
próprios, poderão conduzir à felicidade.
Um homem que está para ser enforcado
pode apreciar o pequeno-almoço, sobretudo se for o seu pequeno-almoço favorito;
do mesmo modo, pode apreciar discutir com o confessor um dado argumento
herético, sobretudo se constar da sua heresia favorita. Mas o modo como ele
aprecia cada um deles não depende intrinsecamente deles; pelo contrário,
depende da sua atitude perante um acontecimento subsequente.
E é esse evento que é realmente
interessante para a alma; porque é o fim de uma história e, como alguns
defendem, o fim de uma pessoa.
Esta verdade é tão simples que está,
como outras, vedada aos nossos cientistas. É aqui que eles se enganam
redondamente, não apenas sobre a religião verdadeira, mas também sobre as
falsas religiões. A sua concepção da mitologia é mais mitológica que o próprio
mito.
Existe um tipo de idiotia que encanta o
discurso das pessoas modernas, mesmo quando estão acordadas e que me irrita
profundamente. Derivou da ciência do século XIX, especialmente no que concerne
ao estudo de mitos e religiões. O fragmento de conversa da treta a que me
refiro flui do seguinte modo: "Este deus realmente simboliza o sol" ou "Apolo matar a pitão significa que o sol acaba com o inverno" ou
"Um rei moribundo numa batalha a ocidente é um símbolo do sol que se põe a
oeste.”
Um deus nunca foi um hieróglifo ou
símbolo do sol! Era o sol que era um hieróglifo a representar o deus. Nenhum
ser humano foi realmente tão contra-natura que adorasse a natureza.
Nós, seres humanos, nunca adorámos a
Natureza, por uma razão muito simples. Porque nós somos seres sobrenaturais. Nós
imprimimos a nossa imagem na natureza, tal como Deus imprimiu a Sua imagem
sobre nós. Nós ordenámos ao sol enorme que permanecesse quieto e imprimimo-lo
nos nossos escudos, tratando uma estrela do céu como se fosse uma estrela do mar. E,
quando existiam poderes na natureza que não conseguíamos controlar, concebemos
enormes seres antropomórficos que os controlassem. Júpiter não significa a trovoada. A
trovoada significa a marcha e a vitória de Júpiter. Neptuno não significa o
mar; pelo contrário, o mar é sua propriedade, foi ele que o fez.
Reafirmo que ninguém pode compreender
qualquer mito, até encontrar um que não seja um mito. Nabos fantasmagóricos nada
significam, se não existirem fantasmas. Notas de banco falsas nada significam,
a menos que existam notas verdadeiras.
Deuses pagãos nada significam e nada
podem significar para aqueles de nós que negam o Deus cristão. Sempre que se
conceba um deus, mesmo que um deus falso, o Universo encontra o seu verdadeiro
lugar, i. e., o segundo lugar. Quando se trata do verdadeiro Deus, o Universo
ajoelha-se, oferecendo flores na primavera e fogueiras no inverno. "O meu
amor é como uma rosa vermelha, uma rubra rosa" não significa que o poeta
esteja a galantear as rosas usando alegoricamente a imagem de uma jovem
senhora. "O meu amor é um medronho” não significa que o autor é um
botânico tão deliciado com um medronheiro que se sinta compelido a dizer que o
ama. "Aquele que fez a lua e governa o meu céu" não significa que Julieta
tenha insinuado que Romeu é o responsável por a lua ser redonda. "Cristo é
o sol da Páscoa" não significa que o orante se esteja a dirigir ao sol sob
a simbologia de Cristo. Uma deusa ou um deus podem vestir-se de primavera ou de
verão; mas o corpo é mais do que roupas.
A religião toma quase com ligeireza o vestido da natureza; e, na verdade, a Cristandade deu-se tão bem com as neves
(snow) do Natal como com as campaínhas--de-inverno da primavera (flores do
género Galanthus, em inglês snow-drops).
E quando olho para os campos banhados
de sol, sinto no âmago dos meus ossos que a minha alegria não reside apenas na
primavera, porque a primavera, estando sempre condenada a retornar, seria
sempre triste. Existe algo ou alguém que lá caminha, para ser coroado de
flores: e o meu deleite reside numa promessa anunciada e na ressurreição dos
mortos."
(Entre aspas, The Priest of Spring de G. K. Chesterton).
(Entre aspas, The Priest of Spring de G. K. Chesterton).
António Campos