domingo, 30 de agosto de 2015

Aplanando o Caminho Para a Nova Religião





Ao encerrar a tese do socialismo1 como religião determinista vamos incidir em dois aspectos
fundamentais: a família e a teologia.
O socialismo tem natureza prometaica, logo mitológica, e para se impor teria que romper com o padrão religioso onde nasceu: o cristianismo. Como dizia Chesterton, um novo profeta tem sempre que criticar a religião vigente. A família é a própria definição de Deus e a filiação é a própria relação com o homem. A família encerra assim os dois sentidos fulcrais de toda a relação: o horizontal e o vertical.



A Família


Marx e Engels viram que jamais se poderia constituir uma sociedade sem classes se a família fosse a célula fundamental da sociedade. A família “burguesa” está então no cerne da negação. Não existe qualquer interesse em distinguir a família burguesa da Inglaterra vitoriana (muito parecida com a família actual no ocidente) da família católica – nos países de raiz católica a propriedade encontrava-se muito mais distribuída do que em Inglaterra.


“O núcleo, a primeira forma de propriedade reside na família, em que a mulher e os filhos são escravos do marido. Esta forma de escravatura na família é a primeira forma de propriedade…”2


A discussão sobre a condição do homem começa então com…a mulher.3
A mulher e o homem têm uma relação dialética em que a mulher representa o proletariado e o homem a burguesia.


“A mudança de uma época histórica pode ser sempre determinada pelo progresso da mulher para a liberdade, porque na relação homem-mulher, do forte para o fraco, a vitória da natureza humana sobre a brutalidade é evidente. O grau de emancipação da mulher é a medida natural de toda a emancipação.”4


Mas é Engels, o aristocrata vitoriano das caçadas à raposa, que tem o mais acutilante insight ao dizer que a colocação da mulher no mercado de trabalho favorece a promiscuidade sexual, o eclodir de filhos ilegítimos e a inversão de papéis, quando a mulher trabalhadora tem o marido em casa, desempregado, a cuidar dos filhos. Mas tal só acontece porque se segue a mesma lógica dialética de dominador-dominado.6


Como equilibrar esta dialética? Onde está a síntese?


Marx afirma que com a abolição da propriedade privada a abolição da família se torna evidente:

“A Revolução não derrubou todas as tiranias; os males que existam no poder despótico continuam a existir na família. Aqui residem todas as causas que levam à revolução.”7
Se a história avança dialética e deterministicamente em direcção ao futuro, também a família se deve modificar.
“A relação entre os sexos será assunto privado e não mais familiar. Tal ocorrerá na sociedade comunista porque ao abolir a propriedade privada e ao retirar as crianças aos progenitores, educando-as numa base comunitária, removem-se as bases do casamento tradicional: a dependência, baseada na propriedade privada, da mulher para o homem e das crianças para os pais.”8




A família do futuro não terá mais conflito, uma vez que deixa de existir:

“Com a passagem dos meios de produção para o colectivismo, a família deixa de ser a célula económica da sociedade. A lide doméstica é transformada em indústria social. O cuidado e a educação das crianças torna-se um assunto público. A sociedade toma conta de todas as crianças por igual. Então, a preocupação com as consequências morais e económicas, o mais importante factor que impede uma mulher de se entregar completamente a um homem que aprecie, desaparecem. Será isto o início de um aumento do mais desregrado contacto sexual e, com ele, um enfraquecimento da consideração pública pelo valor da virgindade e da vergonha da mulher? Será que a prostituição pode desaparecer deste modo sem arrastar consigo a monogamia para o abismo?”9


“A indissolubilidade do matrimónio resulta das condições económicas exageradas pela religião. (…) A duração do amor sexual entre dois indivíduos varia muito de indivíduo para indivíduo, sobretudo entre os homens. O cessar do afecto ou o seu deslocamento para uma terceira pessoa, torna o divórcio uma bênção.”10


Engels possuía aquela visão vitoriana burguesa, evolucionista, da família, que também se encontra presente no livro de Wells, Um Perfil da História: no início a família seria matriarcal, constituída por uma espécie de amazonas que escolhiam o macho a seu belo prazer – um misto de abelha mestra com viúva negra. Seguidamente a família seria uma amálgama promíscua, depois a amálgama proibiria o incesto apenas para reduzir as doenças decorrentes da consanguinidade. A monogamia seria então o resultado da agricultura e da religião e representaria a dominação do homem pela mulher.9




A evidência histórica já tratou de desmentir esta visão fantasiosa de Engels. Aliás qual é o homem que no seu íntimo mais pérfido não sonha viver numa sociedade de amazonas onde ele é um objecto de prazer? Não é esta a pura essência do egoísmo?


A poligamia e não a poliandria é expressão de algumas sociedades primitivas e de algumas sociedades já civilizadas. Não foi precisamente a sociedade judaica e depois a cristã a restringirem esse “direito” dos homens? E não foi essa “liberdade” conferida a reis e a burgueses da época moderna? Não foi o islamismo a recusa de tal restrição dentro das confissões monoteístas? E como se pode comparar a condição da mulher no mundo judaico e cristão com a do mundo islâmico?


A monogamia não restringe a mulher; ela força o homem ao compromisso. Pela monogamia o homem tem que se relacionar com um outro ser humano em toda a sua dimensão; o casamento não se pode reduzir a sexo grátis e existe o compromisso perante a educação dos filhos. Era precisamente o adultério e a duplicidade vitorianos a expressão mais pura da desumanização de tal relação.


Engels, o bon vivant vitoriano das caçadas à raposa, não encontrou até ao dia da sua morte por cancro da laringe, uma solução final para a família. Antes deixou a porta aberta para que outros libertários completassem a obra, desde Freud a Simone de Beauvoir, passando pela Escola de Frankfurt e culminando em António Gramsci. Ninguém como Gramsci entendeu que a opressão dos trabalhadores cristãos jamais os lançaria na rota do comunismo; pelo contrário, fortaleceria o papel da mulher na família e a sua devoção a Cristo. Para construir uma nova sociedade e uma nova crença antropocêntrica, havia primeiro que derrubar o cristianismo antes que o capitalismo.
Gramsci deu o seu princípio: “os marxistas devem começar por influenciar a cultura conquistando os intelectuais, os professores, ocupando a imprensa e os media, as editoras – o modelo seria o da reacção dos jesuítas à Reforma. Os marxistas deveriam criar “uma cultura capilar” atractiva que infiltrasse o meio universitário formador da classe económica e política, sobretudo no meio das ciências sociais.


Explica-se assim a questão da dissociação entre o fracasso económico do marxismo e o seu aparente sucesso na desintegração da família. A sociedade capitalista anglo-americana aplicou toda a força e determinação para combater o comunismo como modelo económico, mas usou as suas ideias para combater a família. O exemplo é a revolução sexual de Kinsey, financiada pela fundação Rockefeller.11

 “…Houve um grande progresso no último congresso dos sindicatos da América, onde as mulheres trabalhadoras foram colocadas em perfeita igualdade. Os ingleses e ainda mais os franceses estão dependentes de um espírito de provincianismo. Qualquer pessoa que saiba um pouco de História sabe que as grandes mudanças sociais se tornam impossíveis sem o fermento feminino.”12

Portanto, o liberalismo concorre com o socialismo na desapropriação da família como célula da sociedade, em nome da liberdade do homem.




Recentemente uma das críticas mais populares à família cristã prende-se com a definição de Paulo na Carta aos Efésios 5, 22-25, sobre como as mulheres devem ser submissas aos seus maridos. Ouve-se esta citação repetidamente. Dir-se-ia que foi construída por Paulo propositadamente para fazer a felicidade dos cépticos. Porém, sugere-se aos amantes da verdade a continuação da leitura. Revela-se então que o homem deve amar a sua mulher como Cristo se entregou pela Igreja. Cristo serviu até ao fim, rezando, chorando, vacilando, morrendo…se o homem servir a sua mulher deste modo, dificilmente se poderá considerar que a mulher seja sua escrava.


Podem construir-se todos os modelos possíveis de família, colocar qualquer minoria no palco sob holofotes, fazer experiências sociais e pseudo-científicas teses de doutoramento sobre como reinventar a família. No final, encontraremos os velhos homens e mulheres, a mesma face feminina que enche todo o intelecto do rapaz e lhe rouba o sono, os mesmos ensaios de declaração frente ao espelho e os mesmos sucessos e fracassos, o mesmo arrebatamento e a mesma sensação de felicidade e completude, porque “eles foram feitos um para o outro”, literalmente “uma feita do outro”, e portanto serão sempre uma só carne, seja qual for a utopia social do momento. E quando a encontrarmos a ela, sempre nos ocorrerá a figura dele…E os poemas dos nossos pais ainda serão lidos e apreciados no futuro, enquanto que os nossos secarão no calor do próximo Verão.





António Campos



1 Deve distinguir-se o socialismo como construção filosófica daquilo a que se chama no mundo ocidental socialismo democrático. Contrariamente ao socialismo, o socialismo democrático é uma construção intelectualmente pobre, de natureza e origem essencialmente capitalista, combinando o liberalismo moral (quase um utilitarismo) e o relativismo, com um Estado filantrópico. A sua origem é anglo-americana e tem dois objectivos ou, pelo menos, um objectivo e uma consequência: deter o avanço do socialismo na Europa, de leste para oeste, e esvaziar de conteúdo e significado a democracia cristã e a doutrina social da Igreja. Não nos ocuparemos dele.



2 A Ideologia Alemã.

3 Op. Cit.

4 Trabalhos de Marx e Engels: A Sagrada Família, 1844.

6 Engels, O Estadio da Classe Trabalhadora na Inglaterra.

7 Trabalhos de Marx e Engels: A Produção Total.

8 Engels, Princípios do Comunismo, O Manifesto.

9 Engels, A Origem da Família, Propriedade Privada e Estado, 1884.

10 Op. Cit.

11 Agostino Nobile, Governados Pela Mentira.


12 Marx, Cartas ao Dr. Kugelmann, 1868.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Socialismo, Uma Religião Determinista II





A tese de que o socialismo é uma religião deverá agora incidir sobre dois aspectos particulares que
caracterizam uma religião – a legitimação e o exercício do poder: o sacerdócio e a realeza. Nenhuma religião deixa de cuidar da realidade deste mundo apesar de apontar a uma outra realidade, metafísica ou utópica. O que caracteriza o socialismo é naturalmente o materialismo, logo a legitimação resultará da construção utópica e o exercício do poder do modo como é organizado e concebido o Estado.

O socialismo é realista no sentido em que há categorias ou agrupamentos (forças de produção material, Estado, humanidade, classe social), embora não sejam universais no sentido platónico (características comuns partilhadas por objectos concretos). Por oposição aos clássicos universais (homem, verde, cadeira), estas categorias não têm uma ligação clara à experiência empírica; são construções abstractas. A sede dos universais não seria metafísica mas sim na mente humana – é um conceptualismo. Este realismo socialista é hegeliano na convicção de que o mundo tende mecanicamente para um fim determinado; nós não podemos mudar o mundo, apenas descobri-lo. Esta visão fornece o determinismo: nós não podemos votar para que π não seja 3,14+; π é o que é.

Maximo Gorki proclamaria o realismo socialista. Um realismo amputado, no sentido em que nega o ser das coisas, realçando apenas a sua transformação contínua. Nesse sentido, o futuro seria mais real do que o presente. Chesterton afirmaria: “Para se ser um revolucionário é necessário ser primeiro um revelador. É necessário acreditar na suficiência de uma teoria sobre o Universo ou sobre o Estado.”22

Estaline afirmaria: “A produção de almas é mais importante do que a produção de tanques e portanto eu brindo a vós escritores, os engenheiros da alma humana.”23


O socialismo é nominalista no sentido em que os universais são construções sociais. Não existem princípios eternos e nós podemos decidir o que é justo. O mundo é uma construção social e o que cada indivíduo pensa não tem interesse. Um indivíduo não tem o direito de ter uma opinião própria, o que interessa é o que a maioria das pessoas pensa. O direito de pensar diferente depende de uma concessão do poder. Desta conjunção realismo socialista – nominalismo moral e social, resulta o desprezo pela unicidade e diversidade, como em Hegel. É um nominalismo amputado, uma vez que não admite a importância do indivíduo particular e nega o conceito de Abelardo de que as palavras exprimem um significado que lhes é anterior e que é universal.

O mundo somos nós, muda dialecticamente, temos que o organizar racionalmente porque as leis da História são as leis da nossa razão. O Estado é um todo organizado, racional, que não pode admitir a liberdade do indivíduo. O livre-arbítrio é um absurdo e o indivíduo será livre quando tiver consciência do Estado como forma suprema de organização da racionalidade humana, infalível, porque intérprete do desenrolar da História – este é o determinismo histórico hegeliano que tanto influenciaria Marx.


Resumidamente, desta Weltanschauung de Hegel resultam as ideias de Marx:

1- A realidade é um processo histórico.

2 – O modo como esse processo se desenrola é dialético.

3 – Existe uma meta específica.

4 – Essa meta é uma sociedade sem conflitos (uma paz universal).

5 – Enquanto não alcançarmos essa meta estamos num estado de alienação.

6 – O Estado é a forma superior de organização racional; somos livres quando obedecemos ao Estado assim organizado. O estadista é o intérprete da História; lê a História.


A principal contribuição de Marx é a concepção materialista da História: o desenvolvimento não se processa primariamente na mente, como dizia Hegel, mas sim nas forças de produção material, que regem o desenvolvimento histórico e condicionam o desenvolvimento mental. Daí a diabolização do passado: só seremos livres quando nos libertarmos das estruturas económicas do passado. Só após a mudança dessas forças económicas (que fazem parte de nós próprios e cuja expressão foi a tradição e a religião) é que chegaremos à noção de “somos livres”.





Estado


O Estado consiste então em homens racionais, i.e., libertos da crença em religiões, firmemente convictos de que existe um caminho fixo na História a percorrer, chamado progresso, rumo a uma sociedade sem classes, onde cessará o conflito. O Estado detém a autoridade e a moralidade:

“Lenin disse que a religião é o ópio do povo. Mas é por acreditar em Deus que podemos criticar o Estado. Uma vez abolido Deus, o Estado torna-se o deus. (...) A verdade é que o ateísmo é o ópio do povo. Sempre que as pessoas não acreditarem em algo para além do mundo, passam a adorar o mundo.”24


O indivíduo torna-se livre quando aceita o Estado como entidade última e lhe obedece. O Estado em vez de servir o povo, serve-se do povo. O povo é controlado a partir da modulação da opinião pública pelos meios de comunicação social, pelos intelectuais das universidades, pela propaganda. O acesso a esses centros de opinião só é permitido a "homens racionais livres". Incentivos económicos massivos são fornecidos a indivíduos sem ocupação para manter uma corte de fiéis, um suporte social e político. Tudo isto é alimentado pelo trabalho dos homens do povo, alienando-os de parte do seu rendimento legítimo. Tudo isto se funda numa desigualdade dissimulada e violenta. O poder absoluto corrompe absolutamente:

“O socialismo é um sistema que tem o colectivismo como responsável por todos os processos económicos, todos os que envolvem o essencial à vida. Se algo importante é vendido foi o governo o responsável; se algo importante for dado, foi o governo que deu; se algo puder ser tolerado só o governo o poderá dizer. Isto é o exacto reverso da anarquia; é o entusiasmo extremo pela autoridade. De certo modo é um triunfo da mente; é a aceitação colectiva de uma responsabilidade não partilhada…Um governo socialista, por natureza, não tolera nenhuma oposição, porque se é certo que do governo depende tudo, é absurdo exigir ao governo que crie uma autêntica oposição.

A oposição depende da liberdade e da propriedade…O crítico do Estado só pode existir quando um sentido religioso da justiça salvaguarda as suas ideias, quer se traduzam no uso do arco e da flecha ou pelo menos, no uso da sua caneta ou da imprensa escrita. É absurdo supor que ele possa pedir emprestada a caneta do rei para promover o regicídio, como é absurdo que ele possa usar a imprensa do governo para expor a corrupção no seio desse mesmo governo. No entanto, é da própria natureza do socialismo, que a menos que toda a imprensa seja do governo, os jornalistas devam ser perseguidos. Tudo se reduz à justiça do Estado; é colocar todos os ovos no mesmo cesto. Muitos deles serão podres, mas ainda assim jamais se poderão usar num processo eleitoral. ”21




Razão e Coração



Precisamente porque os sistemas sociais e políticos, como o socialismo, são baseados em abstracções (raça, classe social), o intelectual socialista apresenta aquela característica de uma certa frieza para com o homem comum (a chegada dos operários ao socialismo é tardia; a dos camponeses improvável). Um intelecto não formatado pela alegria e pelo senso comum do homem; uma mente que perdeu o contacto com a realidade na busca da última sabedoria.

“É essa coisa que confunde o intelecto e silencia o coração.”25

A única realidade que o intelecto concebe é a uniformidade, não concebe a unidade na diversidade. No cerne da sua filosofia reside a convicção de que a realidade, por ser um processo em desenvolvimento, não pode ser apreendida logicamente, mas sim dialeticamente. Esta filosofia é aceite como um dogma. Para Chesterton, um movimento revolucionário para ter sucesso deve fundar-se em exaltar os direitos do homem e não em realçar os seus defeitos, i.e., deve ser positiva para conferir esperança e não negativa porque origina inveja e medo.

"A razão, isoladamente, encerra em si alguma analogia com a força bruta; aqueles que apelam à cabeça em vez de apelarem ao coração, por mais finos e polidos que sejam, são necessariamente homens de violência. Fala-se de "tocar o coração" de uma pessoa, mas não se pode fazer nada à cabeça, excepto "bater com ela na parede".
As necessidades do homem foram sempre certas, os seus argumentos foram sempre errados."26


Para o socialista só existem duas opções para o homem comum: cooperar na construção do socialismo ou ser eliminado. Não existe possibilidade de reversão à construção utópica, uma vez que o indivíduo particular não tem qualquer importância e o curso da História se encontra pré-determinado. Como dizia o socialista George Orwell: “O tempo em que decidimos o que é desejável ainda não chegou; o nosso dever actual é desejá-lo.”27


A alegria envolve a ideia de liberdade, simplicidade e humildade. Numa sociedade onde não existe liberdade não existe a espontaneidade e leveza da alegria.

“Os inimigos da religião consideram-na a coisa mais sombria do mundo. Mas para as pessoas religiosas, com igual sinceridade, é o ateísmo a coisa mais deprimente do mundo. Nas palavras de Shakespeare «encontra-se suspenso do céu envolto em trevas; e o progresso torna-se um cortejo fúnebre que acaba numa cova aberta». Uma fria inumanidade é a acusação que os socialistas usam contra a sociedade burguesa; mas essa é também a acusação mais comum contra o socialismo.”28

“Tendo repugnância por todos os soldados, por todos os padres, pelos mercadores, reis e príncipes, pelos legisladores, sentindo irritação pela gente do povo, desdenhando da classe média, tendo sido sempre ensinados que os camponeses são imobilistas e supersticiosos, estando aptos a aceitar que os operários não servem como material adequado ao verdadeiro Estado Científico ou Utopia dos Intelectuais – tendo rejeitado todas as tradições humanas para cada uma das suas versões do progresso, são deixados com uma humanidade que apenas pode amar o abstracto mas dificilmente o concreto.
Não sobra muito de humanidade quando se eliminam todas as pessoas tidas como obstáculo ao progresso da humanidade. O esboço que eles traçam de um mundo sem guerra é curiosamente um esboço difícil e em branco. Eles podem fazer mapas e diagramas sobre como evitar a morte, mas não conseguem pintar quadros; isto é, quadros de pessoas alegres que desfrutam a vida.”29



Patriotismo ou Imperialismo 



Contrariamente ao patriotismo, que reconhece o valor de uma nação entre iguais (uma entre pares), o socialismo encontraria duas respostas que são simultaneamente duas abstracções do intelecto e dois imperialismos: o socialismo nacionalista em que a comunidade é uma suposta raça e o socialismo internacionalista em que a comunidade é uma classe social. Em ambas existe o mesmo sentido do super-homem e em ambas não se olha a meios. Em ambas existe a mesma crença determinista e em ambas não existe, por isso mesmo, nenhum impulso para a acção moral. Nenhuma delas tem uma base científica: Marx nunca definiu classe social e a origem ariana não é uma raça – a raça seria caucasiana, à qual pertencem igualmente os semitas. Mas é muito improvável que os judeus assassinados pelos socialistas na Alemanha fossem todos semitas, a maioria seriam arianos asquenaze. Tal como eram arianos a maior parte dos milhões de católicos assassinados. Daí o argumento de Chesterton:

"Há relatos de judeus que são perseguidos na Europa e na Rússia e, embora não faça muita diferença para aqueles que são perseguidos, chamou-se-lhe «a perseguição de uma raça» e não a «perseguição de uma religião».
Ironicamente, não são os antigos sistemas que estão a perseguir os judeus, mas sim os novos sistemas (na Alemanha e na Rússia). Duvido muito que esses sistemas políticos pratiquem mais a perseguição de uma raça do que a perseguição de uma religião. Mas isso não faz deles menos perseguidores; faz mais.
O ponto mais importante da última teoria política é o de que se devem abolir os diferentes programas partidários e os diferentes partidos; que a imprensa da oposição se deva calar, e que um único partido seja autorizado…Ora aqui está um problema mais profundo que os progressistas nunca quiseram focar.
Mas ele mede o exacto sentido em que a humanidade muda: certas coisas devem desaparecer no séc. XIX para reaparecerem no séc. XX.”30



Este homem novo tem uma ânsia da Internacional proletária, outra abstracção, odiando as diferentes nações e as diferentes classes ocupacionais, com as suas diferentes idiossincrasias, pela mesma razão que odeia a família - o desprezo pelo homem comum e a ânsia pela uniformidade.

“Os modernos intelectuais não defendem o patriotismo. É por isso que uma estranha frieza e falsidade pende sobre eles quando se considera o seu amor pelo homem. Se se lhes pergunta se amam a humanidade responderão de pronto, inequivocamente, que sim. Mas se se lhes pergunta uma opinião sobre as classes que compõem essa mesma humanidade, constatar-se-á de pronto que as odeiam a todas: Odeiam reis, odeiam padres, odeiam a classe média, não convivem com soldados, marinheiros e trabalhadores; desconfiam dos homens de ciência e, no entanto, adoram a humanidade. Estão a deixar de ser humanos, num esforço para serem humanistas.”31


Uma das marcas do internacionalismo é o expansionismo militar, exactamente pelo mesmo motivo de todos os impérios: a rapacidade, o desprezo pelas outras nações, o sentido da superioridade e a indiferença e desconhecimento das realidade concreta de cada povo:

“Ser uma nação significa erguer-se ao nível dos seus iguais, ao passo que ser um império significa apenas pontapear os seus inferiores.”32

“Atingimos um tal estado de irrealidade pavorosa no mundo ocidental em que tudo é feito no papel. Os homens conhecem a sorte de um país nunca tendo encontrado um nativo; professam simpatia ou desprezo por pessoas que se os vissem na rua não saberiam dizer se eram polacos ou portugueses.”33

Esta atitude imperialista é mais um dos pontos de contacto entre socialismo e capitalismo, sustentando a tese de que o socialismo é uma criação do capitalismo:

“O meu país produziu sábios que podiam ter falado com Sócrates e poetas que poderiam ter falado com Dante, mas agora fala como se nunca tivesse feito algo de mais inteligente do que fundar colónias e pontapear os nativos.”34





A Realidade dialética: O Progresso




Para um socialista a realidade não é apreensível logicamente mas sim dialeticamente, uma vez que está em permanente transformação. É um hegelismo. O progresso é inevitável e é a sede da única e verdadeira realidade.

“Eu creio que até os socialistas admitiriam que se a propriedade pudesse ser melhor distribuída e assim continuar, isso seria melhor solução do que concentrar tudo nesse órgão coercivo chamado governo. O que o socialista afirma é que fomos demasiado longe na concentração da propriedade e que não existe volta atrás. Curiosamente também é isso que afirma o capitalista. Este diz que fomos muito longe no caminho do monopólio, da produção em massa e no domínio do mundo por um punhado de milionários de lado nenhum, para que possamos voltar às coisas sãs ou simples.
Pessoalmente, creio que o capitalista e o socialista são muito parecidos, sobretudo nessa grande qualidade unificadora de estarem ambos errados.
O seu maior erro é a sua conclusão final – é impossível voltar atrás. Eu penso que eles estão errados, mas uma coisa é certa: se eles estão certos, então tudo está errado. Se não existe nenhuma esperança de retorno, também não adianta continuar. Quando se chega à beira do precipício, é o amante da vida que tem a coragem de voltar atrás e só o pessimista continua a ser progressista.”35


Chesterton acusa os progressistas que idolatram o progresso mas não o norteiam por uma moral. Um progresso tecnológico não é necessariamente um progresso moral. O seu raciocínio foi corroborado pelos acontecimentos de ambas as guerras mundiais, pela corrida aos armamentos, pela eugenia expressa no racismo, no aborto e na eutanásia: “Eles falam de eficiência sem definirem que efeito pretendem” ou “ninguém tem o direito de falar de progresso sem antes falar de uma moral”.36

“Um progressista é sempre um conservador; ele conserva a direcção do progresso”.37


Curiosamente, para esta orientação do progresso, o determinismo teria que ser ajudado. É uma fé pouco confiante: os ajudantes consideram-se agentes desse mesmo determinismo apressando a história; por um lado atacando a religião que é a base da sua própria civilização e por outro lado instruindo os novos catequistas. Nas palavras de Marx, “a crítica da religião é uma pré-condição de todo o criticismo”. Feuerbach tem um vislumbre da fraqueza desta filosofia e da necessidade da acção: “o ensinamento materialista de que os homens são o produto da circunstância e da educação e de que a alteração dos seres humanos se deve à alteração das circunstâncias e da educação, não toma em conta o facto de que as circunstâncias também são alteradas pelos seres humanos; de que o educador também tem que ser educado.”38






Conclusão


Marx enganou-se na noção de valor e na noção de que o lucro representa a alienação de parte do tempo do trabalhador, omitindo o valor da propriedade, do investimento, do risco e do próprio trabalho do empresário. Precisamente porque construiu uma teoria de abolição da propriedade e da liberdade – uma igualdade no mínimo denominador comum, a miséria e o medo.

"Os socialistas não querem dividir a propriedade por igual; não querem dividir a propriedade e ponto final."39

Mas Marx enganou-se em outros pontos mais importantes:


1 – Mudadas as regras económicas, a natureza humana permanece. Quando o homem já não compete pela riqueza ainda compete pela razão e pelo desejo, como dizia Kant.

2 – Os “proletários de todo o mundo” é uma abstracção. E uma abstracção não se ergue nem poderia erguer.

“Homens que trabalham odeiam-se ou amam-se, admiram-se ou desprezam-se. Mas irem para a rua e sentirem-se internacionalmente unidos é uma sensação tão inconcebível para um trabalhador como para mim. Quando os pobres de um país pensam sobre os pobres de outro país pensam neles como «de outro país». Um homem não afirma que o problema proletário é muito grave na Polónia; ele afirma que é lamentável o modo como os trabalhadores são tratados na Polónia. Ele não afirma a vitória do proletariado sobre o governo na Prússia; ele afirma, «- aquelas salsichas alemãs afinal têm fibra!»”40

3 – A condição económica dos assalariados nos países industrializados não piorou, melhorou.

4 – O pensamento do homem é privado. Toda a acção é antes julgada moralmente por quem a pratica. A tentativa de controlar um ser humano nunca é universal ou absoluta. O reconhecimento desta impossibilidade explica o assassinato político.

“Não penses, faz. É exactamente o mesmo que dizer: não comas, digere. Tudo o que não é mecânico ou acidental envolve pensar. Tudo o que vem da vontade tem que primeiro passar pela mente.”41

5 - Na altura em que os proletários dirigissem o mundo, como bem dizia Bakunine, eles abandonariam a condição de proletários e passariam à condição de governantes; logo, os seus interesses mudariam.


“Não existe isso de uma elite sábia (o clube de pensadores); porque todos os homens são nascidos da loucura da Queda.

Considerem os mais fortes, os mais afortunados, os mais bonitos, os mais bem nascidos, os mais instruídos, os mais bem tratados homens da Terra e dêem-lhe um poder imenso durante meia hora; por serem homens eles vão começar a abusar do poder e a portar-se indecentemente..."42


6 – O homem é um ser moral e espiritual. Não vive apenas daquilo que assegura a subsistência. Existem coisas sem utilidade material que lhe são mais queridas do que a mera matéria; por outras palavras, é certo que o homem gosta de brinquedos, mas a maioria dos homens necessita mais de uma mãe do que de um brinquedo. Dizer que a comida e a bebida são o objectivo último do homem, uma vez que sem elas não consegue viver, é o mesmo que dizer que a gasolina é a finalidade última de um automóvel uma vez que sem ela não consegue andar:

“As coisas mais importantes da vida são inúteis: amor, amizade, devoção, paz – essas são coisas que apreciamos pelo que são e não pelo uso que podemos fazer delas. Nós precisamos de coisas inúteis uma vez que precisamos de aprender como encontrar valores intrínsecos. Então todo o mundo adquire um significado para nós e não apenas uma utilidade.”43





Chesterton reconhecia em The New Jerusalem a necessidade que um profeta mais recente tem de se apresentar como aquele que completa um profeta anterior. Por isso mesmo aponta que a auto-crítica é conditio sine qua non de toda a crítica, incluindo a religiosa.

Foi esta auto-crítica à aplicação prática do socialismo (à disseminação da miséria e do medo, aos crimes horrendos) que nunca foi feita, embora o socialismo (e Marx) acuse o cristianismo de tudo, por mais antigo e contraditório que seja:

“Nunca avaliaremos correctamente um movimento religioso ou moral na História a menos que olhemos para a sua teoria mas também para a sua prática.”44

A mesma ausência de uma correcta crítica acontece quando se admira um comunista que se mantém sincero e coerente nas suas convicções até ao fim:

“Nós não nos podemos contentar com a vaga frase moderna de que tudo é defensável desde que seja sincero. Um satanista sincero é um pior satanista. Existem teorias tão vis, crenças tão abomináveis, que só podemos suportar a sua existência por descrer da sua sinceridade. A sinceridade nestes casos não tem qualquer valor moral. É como dizer que um canibal é sincero quando aprecia comer um missionário. Aqueles que falam em «tolerar todas as opiniões» são fanáticos que apenas aceitam essa mesma opinião. Existem opiniões que são, quer em sentido legal quer literal, intoleráveis. Senão estamos a afirmar que alguém que agiu perfidamente está desculpado se tiver pensado perfidamente também.”45




António Campos


22 Prefácio de Creatures That Once Were Men de Maximo Gorki.

23 Arthur Golding, Isms and Ologies: 453 Difficult Doctrines You’ve Always Pretended to Understand.

24 Christendom in Dublin.

25 Middleton Murry, On The Necessity of Communism, Sobre O Deus do Credo Atanasiano.

26 Twelve Types, Charles II.

27 George Orwell, The Road to Wigan Pier, 1937.

28 On Being Old-Fashioned, Illustrated London News, 21 de Janeiro de 1911.

29 Illustrated London News, 9 de Outubro de 1926.

30 Western Science and Eastern Sorcery, The collected works of G K Chesterton, ILN, vol 36, 29 de Setembro de 1934, pág. 547; Changing Human Nature, The Collected Works of G K Chesterton, ILN, vol. 36, 29 de Setembro de 1934, pág. 488; In Defense of Sanity, About Believes, As I Was Saying, 1936, pág. 317.

31 The Defendant.

32 Tremendas Trivialidades.

33 The Patriotic Idea, England a Nation.

34 A Gap in the English Education, The Speaker, 4 de Maio de 1901.

35 Eliminating The Class Without Property, Illustrated London News, 8 de Novembro de 1924.

36 The Thing.

37 Introdução a Carlyle’s Past and Present, Oxford University Press, 1909.

38 Marx, Teses sobre Feuerbach.

39 A Maldição dos Rótulos. ILN 14.10.1911.

40 Socialism and the Nations, ILN, 07.12.1912.

41 Two Kinds of Paradox. ILN, 11.03.1911.

42 Carta a Robert Blatchford, 1904.

43 Roger Scrutton.

44 Mormonism and Theology, ILN, 13 de Maio de 1911.

45 Madness and Responsibility, ILN, 24 de Fevereiro de 1912.


domingo, 9 de agosto de 2015

Socialismo, Uma Religião Determinista - I





Devo dizer que existem características na comuna que sempre me fizeram pensar numa religião: a
exaltação nas canções, o zelo e entrega na acção, a focalização de todo o ser apenas em um sector da vida, uma embriaguez que se assemelha a uma possessão, o proselitismo, uma comunidade onde o crente se revê, uma moral, uma escatologia, uma crença (no progresso, no determinismo), o abismo da superstição, uma atitude “espiritual”. Lenine dizia mesmo que o socialismo era uma religião; Chesterton num dos seus menos conhecidos mas mais ilustrativos paradoxos afirmou uma vez na rádio que Middleton Murry, um escritor socialista, nos bradava das trevas: “Não existe Deus e Marx é o seu profeta!”1


Numa frase sem sentido para aqueles que não conhecem outro Deus que não o da teologia, trata-se de negar esse Deus da teologia e de afirmar o Deus da experiência. A necessidade de um padrão comum e de uma fonte para a acção que, contrariamente ao que dizia Kant, não pode residir em cada homem como legislador, mas numa fonte “metafísica”, mesmo que metafísica possa significar uma abstracção como “Humanidade”, “Estado”, “Partido” ou “Proletariado”.

T. S. Eliot dizia que o ethos do povo a governar determina o comportamento dos políticos, mas todos sabem que o que acontece nos países comunistas é que o único ethos que interessa é o do partido único.

Onde essa religião seria menos consistente seria na teodiceia, no seu “theos”, na escatologia e no problema da caridade. A teodiceia seria mais tarde resolvida por Sartre (“o Inferno são os outros”); acabados “os outros” chegaríamos do socialismo ao comunismo (o paraíso). O theos seria resolvido pela idolatria do Estado; o grande líder e os seus sequazes seriam os camaradas icónicos, os “grandes intérpretes” da História. A resposta à morte seria a crença de estar a ser obreiro na construção do paraíso e a deposição das cinzas (um eco da filosofia oriental e um corte com a ligação à matéria). A caridade substituída pela filantropia (do Estado). A atitude “espiritual” é a soberba, o orgulho da superioridade intelectual, artística e cognitiva, a mola na dialética da acção.

A humildade recua completamente da acção política.2

Toda a tese do socialismo como religião fundamenta-se no determinismo que o impregna. Para Chesterton, o socialismo é filho do capitalismo, que por sua vez é filho da mente calvinista, como afirmaram Max Weber e outros:3,4,5 “Aquele que é diligente nos seus negócios comparecerá perante os reis.”6,7

“O burguês que despreza o socialismo e o socialista que despreza o cristianismo não são opostos: são o mesmo tipo de pessoa. Têm ambos os mesmos erros: orgulho e vã-glória, cegueira e coração de pedra.”8

“A minha objecção fundamental ao comunismo é que ele aceita ser o herdeiro do capitalismo. O seu infeliz determinismo estreita os horizontes da política. Contenta-se em dizer que tudo se reduz a Um Homem, que está inchado e dorido por todo o lado. Todos estamos amarrados pelo pescoço e pelos tornozelos de modo que compomos uma figura grotesca de um ogre gigantesco. Mas eu não gosto de ogres; eu quero seccionar o ogre. Eu sou mais revolucionário que o Sr. Middleton Murry. Não creio que este monstro aberrante cause menos dor apenas por se autodenominar comunista. Eu sou mais céptico que o Sr. Murry. Eu recuso essa aberração de Um Homem e quero fragmentá-lo de volta em muitos homens."9


“O mesmo individualismo industrial, urbano e cosmopolita que não possui outro pensamento que não a propriedade privada produziu um novo mundo em que não se pensa em propriedade privada, ou pelo menos, nunca primariamente como privada.”10


Ligada a esta ética calvinista e puritana encontra-se um tipo de caridade institucional, chamada filantropia (etimologicamente, amor pela humanidade). No evangelho da riqueza encontra-se a ideia da predestinação ligada ao sucesso económico e financeiro. Efectuar dádivas públicas seria assim demonstrar publicamente que se é um predestinado e por outro lado exercer a única ostentação de riqueza permitida pelos rigorosos puritanos. No entanto, desrespeita as palavras de Cristo: “não saiba a tua mão esquerda o que dá a tua direita";11 aliás todo o capítulo 6 de Mateus é muito explícito quanto à filantropia. O socialismo seria assim a suprema filantropia, a filantropia de Estado.


Em ambos os sistemas, capitalista e comunista, existe uma repercussão na propriedade e consequências na liberdade individual, mais dramáticas no sistema socialista: “Eu discordo do comunismo porque creio que ele envolve o sacrifício da Liberdade. E curiosamente homens como Middleton Murry também o admitem. Estamos de acordo. Claro que ele adiciona o paradoxo místico de perder a liberdade de forma a ser livre, mas isso é algo que cabe a ele explicar.”12







Caridade e Liberdade



Só a caridade produz liberdade, ao dar independência àquele que recebe a dádiva. Por outro lado, a caridade assenta em pressupostos: todos os homens são irmãos, existe uma filiação comum, existe uma lei universal de caridade (se um homem te pede um pão não lhe dás uma pedra). Assim, caridade não se reduz a esmola; ela supõe ajudar alguém que não está em condições de retribuir (salvar um homem que se afoga, dar uma informação na rua, ensinar um desempenho) – deste modo o homem faz o gesto de Deus. A caridade baseia-se no Outro, na complementaridade e na diferença.


“É suposto que a caridade torne um homem dependente, embora na realidade o torne independente, comparativamente com a triste dependência produzida pela Organização. A caridade confere propriedade e, portanto, liberdade. Existe mais emancipação em dar dinheiro a um mendigo do que em encarregar um funcionário de lho gastar por ele.”13


“Dar, apenas pode ser considerado errado pelos economistas. (…) Toda esta filosofia duvidosa sobre ser errado dar ajuda pronta e pessoal a alguém que necessita, surgiu há quase um século quando as pessoas acreditavam na “ciência” e nas chaves da ciência para a vida social. (…) Por que razão deve um homem doar cinco xelins para a secretária de uma sociedade, em vez de os doar a um pai de família que pede ajuda? Ele vê o pobre; ele nunca viu a secretária.”14


Pelo contrário, a filantropia consiste não em ser bom mas em praticar o bem. Significa dar um pouco daquilo que sobra; dar e não dar-se. Nas palavras do Papa, "desconfio muito da esmola que não dói." Ela tem uma base filosófica e uma base religiosa. A base religiosa como vimos é um misto de calvinismo e puritanismo. A base filosófica tem raiz em Kant (“a acção em si não tem toda a força de um modelo e de um impulso para a imitação”), que por sua vez tem origem religiosa na Reforma (desvalorização do valor das obras) e em Hegel para quem tudo o que é particular é uma abstracção, uma aparência fugaz e transitória do “espírito”. A sua base filosófica é tratar a humanidade como um organismo (uma abstracção do intelecto), é construir um sistema racional e não emocional, em ser uma organização para a qual resolver os problemas de uma única pessoa não tem qualquer valor. Este tipo de misoginia foi personificado por Dostoiévski em “Os Irmãos Karamazov” e por Dickens em “Conto de Uma Noite de Natal”.



É uma atitude semelhante a quem faz acções humanitárias para as usar para se auto-publicitar, para reduzir os impostos a pagar ou para colocar no curriculum e assim superar os colegas na carreira profissional. A filantropia alimenta os funcionários da organização e coloca sempre o necessitado na dependência da organização e entregue ao seu arbítrio.



“Os bolchevistas dizem que querem eliminar a burguesia; eu pelo contrário quero eliminar o proletariado. O que está errado não é existir uma classe proprietária; o que é errado é existir uma classe sem propriedade. O que é errado é que uma classe dependa inteiramente de ter que ser contratada para sobreviver. Ou seja, que seja proletária. O ideal é que fosse eliminada. A aproximação ao ideal é que seja eliminada tanto quanto for possível. O que tem que ser eliminado não é a propriedade, é o proletariado.”15


“Cristo não amava a humanidade. Ele nunca disse que amava a humanidade. Ele amava os homens. Ninguém pode amar a humanidade, pois seria como amar uma gigantesca centopeia.”16


“No materialismo político dos nossos dias, existe a convicção de que podemos fazer o bem a alguém desconhecendo completamente a sua circunstância ou as suas virtudes. Sem conhecer o mérito e a circunstância de um homem, nem sequer o conseguimos magoar.”17


 “A democracia não é filantropia; nem sequer é altruísmo ou reforma social. A democracia não radica em ter pena do homem comum; a democracia radica na reverência para com o homem comum. Não exalta o homem por ser muito miserável mas por ser sublime.”18






A Família e o Estado



O socialismo como um sistema que é uma construção intelectual, uma abstracção, que assenta a sua base numa pretensão de igualdade com o sacrifício da liberdade, dificilmente deixaria de provocar repercussões na organização humana celular básica, onde essencialmente reside a diferença e onde o homem primeiro forma a sua consciência política: a família. Aqui, o homem molda e é moldado pela diferença omnipresente no exercício da liberdade e do dever. O socialismo como colectivismo tem muita dificuldade em separar a esfera pública da esfera privada. A família é vista com o olhar de Platão em A República, em que as mulheres deviam desempenhar o mesmo papel dos homens e as crianças criadas em creches institucionais. 

O valor da igualdade é basicamente uma heresia do valor cristão de filiação comum. Perdida a paternidade universal, resta a visão de orfanato – a humanidade é um organismo. O sociólogo na ânsia de reformar, em nome da família torna-se o seu assassino.


“Quando se fala da relação entre o homem e a mulher, as palavras são cuidadosamente escolhidas para sugerir que a relação não possui alma. Em vez de se falar de amor e paixão, fala-se de propósito e desejo. Falam das relações entre sexos como se eles se relacionassem mecanicamente, como uma cadeira e uma mesa.”19


Os sociólogos opõem-se à família exactamente pela sua diversidade, pelo modo como desafia a uniformidade. O homem e a mulher são iguais precisamente porque são inteiramente diferentes na sua função e propósito:

“O nosso Deus fez dois amantes num jardim,
Dois polos separados e libertados
Os seus dois pares de olhos sedentos de deslumbramento de ira e de perdão,
E os seus beijos trovejam, como se fossem lábios de areia e de mar;
Num êxtase infindável perante o outro,
Dois universos cintilantes de incógnitos deuses em batalha…”20


“Estas mentes básicas, intelectuais e burguesas, nunca compreenderão a diferença entre a separação criativa de Adão e Eva e a separação destrutiva de Caim e Abel.”21




O homem e a mulher são, por conseguinte, dois mundos diferentes, habitando na mesma casa, combinando distância e intimidade. No socialismo, tal como no capitalismo, existe a convicção de que a competição e não a complementaridade é que conduz a sociedade “rumo ao melhor”. O sexo seria assim dialético e o amor uma abstracção. 

“Nenhum tirano pretende agradar aos seus escravos e poucos escravos amam quem os tiraniza. Por isso mesmo, a relação entre um homem e uma mulher não é uma relação senhor-escravo. (…) O casamento não é um martelo mas um íman. A família não se baseia em força, mas em atração entre a diferença. As atitudes mais antigas entre os sexos são convenientes: não impostas por um dos lados, mas igualmente desejadas por ambos. Por exemplo a beleza do corpo da mulher e a força física do homem. Nunca foram impostas; são antigas e inteiramente livres.”8





A diferença de mentalidade e comportamento teria sido aprendido por influência do passado. Curiosamente, neste sentido, as diferenças de comportamento sexual entre os animais já não teriam interesse para o homem…A aprendizagem social teria que ser eliminada, os instintos tratados e colocados à solta pela eliminação da culpa, “esse conceito judaico-cristão”. Bentham e Marx, a fábrica e a comuna, a sociedade exclusivamente económica, teriam obrigatoriamente que conduzir a Freud e Jung, o sexo exclusivamente subconsciente. Por isso mesmo, Chesterton afirma que o sexo na actualidade não está a ser sobrestimado mas subestimado, toda a sua complexidade amarrotada num pequeno compartimento.


“Não tornem isto apenas sexo, este outro lado das coisas*
Essa coisa menos profunda** do que a ânsia do mundo*.
Ele tem a cor do pôr-do-sol,
Grita-nos ao longe pelo compromisso, e que chama
Caída para além do sol, impossível de procurar,
Deixemos que nos separe pelo nosso futuro;
Como um sinal longínquo da nossa linguagem secreta
Para pendurarmos o altivo horizonte na nossa casa.”

(NT: *amor e **sexo)





António Campos



1https://books.google.pt/books?id=oaaOxxF4XFcC&pg=PA148&lpg=PA148&dq=chesterton+middleton+murry+there+is+no+God+and+Marx+is+his+prophet&source=bl&ots=AFv_XEmSt-&sig=Ma-kiN-oEYXk3AVfNxnCswUUXbk&hl=pt-PT&sa=X&ved=0CB0Q6AEwAGoVChMIvIfJjuP5xgIVwbsUCh2Eig6L#v=onepage&q=chesterton%20middleton%20murry%20there%20is%20no%20God%20and%20Marx%20is%20his%20prophet&f=false


2 Chesterton, A Defense of Humility, The Speaker, 13 de Abril de 1901.

3 Max Weber, A ética protestante e o "espírito" do capitalismo, 1904-1905.

4 Ellen Meiksins Wood, The Origin of Capitalism, 1999.

6 Prov 22:29.

8 The Naming of Children, Illustrated London News, 29 de Abril de 1911.

9 On Necessity  and Miracles in History, Illustrated London News, 4 de Junho de 1932.

10 On Education, All I Survey.

11 Mt 6:3.

12 The Dangers of Extreme Thinking, Illustrated London News, 20 de Janeiro de 1912.

13 Irish Impressions, 1919.

14 What is a beggar? Illustrated London News, 25 de Fevereiro de 1911.

15 Eliminar a Classe Sem Propriedade, Illustrating London News, 8 de Novembro de 1924.

16 Doze Tipos.

17 (op cit.).

18 Hereges.

19 O Socialismo e as Nações. Illustrated London News, 7 de Dezembro de 1912.

20 Wedding in War-time, Collected Poems.


21 The Outline of Sanity.