sábado, 15 de dezembro de 2018

Wittgenstein e Chesterton contra Descartes e Russell




Para a maioria dos filósofos, a linguagem seria um mero código de denominar objectos.
Para Russell, a função da linguagem seria a de afirmar ou negar factos. A linguagem deveria possuir um nome para cada simples – um designador rígido. Se a linguagem tiver um símbolo para cada objecto, exclui a analogia e a metáfora. Lógicos como Russell esquecem que a linguagem depende da natureza humana, que envolve muitos fatores não linguísticos. Por exemplo, contar uma anedota requere que se tenha sentido de humor e uma certa familiaridade com quem ouve. Outro exemplo é a linguagem que se usa perante a morte. Se essa linguagem não dependesse de valores morais, se a morte de um ser humano não nos afetasse mais do que a morte de uma mosca, seria impossível compreender os rituais e a linguagem do luto.


Filósofos como Russell subentendem que nós podemos estar fora da linguagem, apontando os objectos e nomeando-os. A realidade estaria de um lado e a linguagem do outro e nós estaríamos fora de ambos, a apontar. Aprender a linguagem seria equivalente a aprender diversos nomes para diferentes entidades existenciais, do mesmo modo que se aprende os rudimentos de uma língua estrangeira. Apontar, seria a forma fundamental de explicação da ligação entre a linguagem e o mundo. Isto é…aquilo é. 

No entanto, para W., apontar, as palavras “isto” e “aquilo” e o objecto apontado, fazem todos parte do jogo da linguagem que explica o significado. As palavras e os gestos não estão fora da linguagem e, portanto, não podem explicar essa ligação entre a linguagem e a realidade. Se virmos uma estátua de um cavaleiro que segura uma espada numa mão e aponta com a outra mão, não nos ocorre procurar para que coisa ele está a apontar. A razão é o significado. O significado insere-se num jogo de linguagem diferente daquela em que um português aponta para certos objetos na tentativa de ensinar o nome deles a um estrangeiro. Apontar não liga a linguagem ao mundo por fixar o significado; os gestos da mão são órgãos da linguagem. 

As pessoas, os corpos e as mentes habitam a linguagem. É falsa a ideia de “conexão” entre linguagem e realidade. Não podemos saltar para fora da linguagem; estamos mergulhados na linguagem porque somos seres que vivem de significantes e de sentido. Nós apenas imaginamos que podemos apontar e ligar a realidade à linguagem, mas realidade e linguagem são a paisagem na qual caminhamos. Existem muitos determinantes da linguagem que a tornam muito mais complexa do que o simples nomear de objectos.




Wittgenstein, tal como Chesterton, combate a noção de que cada palavra tenha apenas um significado e de que o significado da palavra seja apenas o objecto que a palavra designa: “(…) é interessante comparar a multiplicidade das ferramentas da linguagem e dos seus modos de aplicação, a multiplicidade das espécies verbais e proposicionais, com o que os lógicos têm dito acerca da estrutura da linguagem (e também o autor do Tractatus Logico-Philosophicus)”.1b
“Quando um lógico analisa a poesia ele sente-se confundido e algo furioso ao constatar que as palavras que costuma utilizar adquirem um significado completamente diferente.
Pensa entender a palavra "visível" e vem Milton aplicá-la à escuridão, onde nada é visível.
Pensa entender a palavra "esconder" e vem Shelley falar de um poeta escondido na luz.
Pensa entender a palavra "suspenso" e vem Shakespeare falar de ondas do mar suspensas de nuvens escorregadias. É por isto que o lógico comum prefere a música à poesia. As palavras são o seu instrumento aritmético; irrita-o que possam ser o instrumento musical de outrem
.”2


Mente não é o nome de uma coisa ou de um lugar. É um objecto gramatical. “Mente” pode usar-se em diferentes contextos: a minha mente está parva como tu arrumaste o quarto hoje! Mente aberta, mente preparada, sem mente, ele mente, demente. Parte da confusão associada a esta palavra resulta da sua não compreensão. A aparente profundidade da filosofia moderna é apenas uma piada gramatical, um jogo de palavras. No entanto, a compreensão desta situação encontra-se vedado a pessoas que entendem a linguagem como um conjunto de palavras que denominam um conjunto de objectos, numa correspodência directa. Wittgenstein diz a O. K. Bouwsma: “tratar uma confusão filosófica é como se fora curar uma doença de insensatez.”3


Chesterton (com Russell em mente): “A verdade é que aqueles que andam sempre a falar de factos não entenderam o maior de todos os factos, que é em si um paradoxo: Os factos só por si não criam o espírito da realidade, porque a realidade é um espírito. Os factos só por si podem por vezes alimentar a fogueira da loucura, porque a sanidade é um espírito.
Considerem os inúmeros detalhes acumulados por homens que têm um passatempo maluco de que Heródoto escreveu Homero ou de que a Grande Pirâmide é uma profecia da Grande Guerra. Considerem as circunstâncias detalhadas e longas descrições que são fornecidas por homens que se julgam perseguidos ou deserdados, ou de serem o legítimo rei de Inglaterra.
Estes homens enlouqueceram por factos materiais; são lunáticos, não pelas suas manias, mas por terem apreendido demasiados factos. O que lhes falta é proporção: uma coisa tão invisível como a beleza, tão inescrutável como Deus.
O que a cultura faz, ou deve fazer, é fornecer uma saúde à mente que seja paralela à saúde do corpo.” 4


A realidade é um espírito, porque ela não usa só o “jogo de linguagem” da ciência, mas também o da lógica, do senso comum, da arte, da filosofia e da religião.


Descartes tenta provar a existência de Deus com base na filosofia racional, nos dados da ciência (Meditações) e não em teologia. O método que utiliza é a dúvida metódica, i. e., a tentativa de alcançar a verdade por meio da dúvida:
1 – Duvidar de tudo o que se pode duvidar a partir dos dados dos sentidos: “tudo o que aprendi foi por meio dos sentidos. Sei por experiência que os sentidos me enganam, logo não posso confiar nos sentidos.” Separou-se do mundo. Atacou, não cada uma das coisas que conhecia, mas sim o próprio método de conhecimento.

2 – Não aceitar nada do passado como verdade, a menos que se possa estabelecer com certeza absoluta.5
Em O Discurso do Método, começa com uma condenação ao conhecimento adquirido pela leitura de livros, como um obstáculo ao verdadeiro conhecimento: “Logo que a idade me permitiu sair do controlo dos meus perceptores, abandonei completamente o estudo das letras e resolvi não procurar outra ciência que não o conhecimento de mim próprio ou do grande livro do mundo.” 


Porque os livros são depositários de imbecilidade:
“Quando olho com olhar de filósofo para as viagens e pesquisas da humanidade em geral, não consigo encontrar uma que não pareça vã ou sem qualquer utilidade.”
Compara a aprendizagem literária com a experiência de uma viagem e conclui que ambas consistem em penetrar no mundo dos costumes e da opinião e, portanto, consistem numa perda de tempo. Prefere então encerrar-se num quarto numa fria noite de inverno e começa a investigar aquilo que consegue conhecer apenas pelo cético exame da sua experiência empírica da realidade. Conclui que existe, porque sabe que pensa – uma conclusão que dispensa o contributo de livros ou da cultura, mas apenas daquilo que se encontra na sua mente, isolado de qualquer influência empírica externa.6


Chesterton não deixou passar o ensimesmamento e solipsismo de Descartes: “este homem, não acreditando em mais nada nem em ninguém, passa a ver-se sozinho num grande lema solipsista; assim as estrelas, tal como descreve o nosso autor, são vistas apenas como pontos na escuridão de seu cérebro; o rosto de sua mãe é apenas o esboço de seu próprio pincel insano nas paredes de sua cela; mas sobre ela está escrito uma assustadora verdade: «Ele acredita em si mesmo».7
Descartes acabou no papel de Deus: Eu penso, logo existo. Estou no papel de Deus. A sua posição é aqui e agora – é a essência do relativismo. Aquilo que eu penso, aqui e agora.




W. critica essa maneira de conceber o conhecimento como aqui e agora. Sem passado e sem futuro. 
Por outro lado, ao dizer que os seus olhos o enganam, está a personificá-los: “ambos os meus olhos me enganam…”. Ao descrever, ao modo da ciência, ele não relata verdadeiramente como as coisas acontecem, mas utiliza um jogo de linguagem desajustado ao contexto, como quem jogasse damas com peças de xadrez. 

Os meus olhos adquirem, como se fossem instrumentos, uma imagem de uma vaca que transmitem à minha mente. Repare-se que os meus olhos e a minha mente são algo diferente de mim. O modo correcto de afirmar seria, “eu vejo uma vaca”. Na verdade eu estou a usar conhecimentos da ciência para descrever o que me está a acontecer, mas eu não estou a ver as coisas a entrar dos olhos para a mente como diz a ciência – eu simplesmente estou a ver. Como via, exactamente o mesmo, antes de saber pela ciência como se processa o fenómeno visual. Os meus olhos, a minha mente e eu não são três pessoas numa – são uma única coisa, a mesma pessoa.8


É um exemplo de mau uso da gramática.


“Pode dizer-se de Descartes que é o primeiro moderno. Moderno ou modo, vem do latim e significa “agora mesmo”. Eu penso! Se perguntássemos a Descartes: “Quem é o eu?”, ele responderia: “O que pensa”. Se retorquíssemos: “O que é que pensa?”, ele retorquiria: “Eu sou”. Trata-se da essência do relativismo: alguma coisa é verdade porque eu penso ser verdade agora mesmo.”8
“Sempre vi a argumentação de Descartes como um filme. A película “agora”, sem passado nem futuro. Imaginem que só existe a película do presente. Que linguagem pode existir nessa situação? Só “isto”, nada mais! Não existe passado nem futuro, no agora não existe nada. Se eliminarmos tudo o que parece duvidoso, nada resta; nem sol nem terra, nada! Um escrupuloso Descartes nem pode dizer, “ali vai o meu cavalo!”. As suas palavras perdem todo o significado.” 8,9


Tratar a mente como uma coisa, ao modo da ciência, é uma fonte de metafísica. É uma confusão filosófica. Arranjar uma explicação de como a mente funciona, sem ver. Não sabemos e não vemos como a mente guarda a linguagem e a evoca, tal como com as imagens.


W., como Chesterton, tem noção de cada palavra.
“A filosofia é uma batalha contra o enfeitiçamento da nossa inteligência por meio da linguagem.”1b
“A linguagem é análoga aos jogos. Existe uma variedade de jogos, como existe uma variedade de linguagens: dar ordens e obedecer-lhes; descrever um objecto ou falar das suas dimensões e forma, descrever um objecto a partir de um esboço, relatar um acontecimento, contar anedotas, formular hipóteses, contar uma história, desempenhar papel de actor, adivinhar enigmas, resolver um problema aritmético, traduzir de uma língua para outra, questionar, praguejar, ler, rezar.”1b


Não existe uma língua lógica perfeita. A língua é como os jogos. A linguagem é como as peças de um jogo (por exemplo o xadrez). Cada peça tem as suas funções e movimentos. A vida do jogador e da peça encontram-se dentro do jogo. Nem a peça nem o jogador podem existir fora do jogo a que pertencem. Se pegarmos num bispo de um jogo de xadrez e o dermos a alguém que nunca viu um jogo de xadrez, a peça não terá significado para essa pessoa. Não saberá como a usar. Temos que pensar que uma palavra se comporta como uma peça num jogo. Sem termos jogado o jogo, não sabemos como a peça ou os jogadores se movem. Mas podemos aprender. 

Existe uma enorme variedade de jogos, desde os jogos de tabuleiro aos jogos de campo, passando pelas cartas e o jogo das escondidas. Tal como uma palavra tem um uso e um sentido, assim também a peça de um jogo. Agora suponhamos que pegamos numa peça como um bispo de xadrez e o usamos num jogo de damas, em substituição de uma peça que falta. Se movermos o bispo de acordo com as regras do xadrez e não com as das damas, o nosso adversário fica perplexo e não aceita o que fazemos. Lembra imediatamente: “não estamos a jogar xadrez!”8



Voltemos a Descartes, olhando cuidadosamente o modo como ele usa as palavras ao duvidar dos sentidos: “aquilo que até agora aceitei como verdadeiro foi adquirido pelos sentidos. Sei por experiência que os sentidos por vezes me enganam.”
Estas palavras estão tomadas fora do contexto do seu uso comum; o seu uso é metafísico. Os sentidos são considerados como instrumentos e não como parte da própria pessoa; os sentidos encontram-se personificados, pregando partidas à pessoa que é outra que não eles. Os olhos adquirem imagens independentemente da sua mente, que por sua vez parece independente de si próprio.

Descartes não confia nos seus olhos!
Imaginem o que é viver assim: Acordar e pensar que os nossos olhos combinaram em nos enganar e a mente não o faz por menos. Que a casa em que vivemos e as pessoas com quem partilhamos a vida, não passam de possibilidades, incluindo as partes do nosso próprio corpo…Que penso estar acordado quando na verdade posso estar a sonhar…
Agora analisemos a expressão “nem acredito no que os meus olhos vêem” e analisemos os jogos de linguagem em que ela é usada de forma comum. “Nem acredito no que os meus olhos vêem; este quarto está arrumado de forma exemplar!”; “Nem acredito no que os meus olhos vêem, és tu Pedro? Não te via desde a faculdade!”.
Significa isto que não podemos confiar nos nossos olhos?
Os meus olhos e eu…Um dia descobri que os meus olhos me têm andado a trair!


O que Descartes afirma é muito simplesmente: “Não posso confiar nos meus olhos!” De facto ele afirma: os meus olhos adquirem, vêem, uma vaca; e a minha mente adquire uma imagem que aparenta ser uma vaca”, em vez de dizer: “Eu vejo uma vaca”.8
“A nossa cupidez pela generalização, a nossa obsessão pelos métodos da ciência, reside em reduzir todas as explicações dos fenómenos naturais a um número o menor possível de leis naturais primárias. Filósofos como Descartes, sempre vislumbram os métodos da ciência perante os seus olhos, não resistem à tentação de formular questões e de as responder do mesmo modo que o faz a ciência. Esta tendência é uma fonte de metafísica e deixa os filósofos na mais absoluta escuridão.”1b
Chesterton sublinha que muitas afirmações que não são razoáveis, são na verdade erros gramaticais:
“Muitos dos desenvolvimentos idiotas do nosso mundo na linguagem derivam apenas de ignorar os componentes e os princípios da linguagem (discurso), que conhecemos desde crianças. Muitas afirmações que não são razoáveis, são na realidade erros gramaticais. A confusão gramatical de Descartes é a seguinte: não se diz “os meus olhos vêem o cavalo no campo”, mas sim “eu vejo o cavalo no campo”.10
W. sobre as confusões filosóficas: “Eu posso dizer que está a chover ou que não está a chover.
Ou digo que adquiri informação de que está a chover?
O que confere a essa informação o valor de ser considerada informação? Não é um erro afirmar que os meus olhos me deram a informação de que está ali uma cadeira? Descartes caiu numa metáfora – está a ser “científico”, descrevendo coisas a acontecer na sua mente que de facto não está a ver.
Devemos recusar as explicações e contentarmo-nos com a descrição.”1b,11
Descrever adquire o seu propósito pelos problemas que resolve.

“A nossa civilização pretende ser científica pelo modo como coloca as coisas; infelizmente nunca é científica com o uso das palavras. É difícil acreditar que pessoas que são negligentes com a linguagem possam ser responsáveis com as outras coisas. Se um astrónomo for negligente com as palavras podemos duvidar que seja responsável com as estrelas. Se um botânico for vago com as palavras, pode ser superficial com as plantas. O homem moderno vê-se como um segundo Adão. Deu a todas as criaturas nomes novos. Quando descobrimos que ele é tolo sobre os nomes, podemos pensar que ele é tolo sobre as criaturas. Imagino que em toda a história do mundo, nunca as palavras foram usadas de forma tão idiota e fora do contexto do seu real significado.”12 


“Insanidade” e “lunático” são definições atribuídas pelo jornalista Chesterton aos pensadores modernos. Isto porque o seu pensamento se caracteriza pela “combinação de um raciocínio expansivo e exaustivo com um reduzido bom senso”. Eles não conseguem alterar o seu ponto de vista, pois acreditam egocentricamente em si mesmos e na sua filosofia. Negam os primeiros princípios e colocam a lógica como primazia do pensamento. Começam por tentar tornar tudo mais claro, mas culminam numa compreensão duvidosa sobre a realidade. Negando a douta ignorância perante o contacto com a realidade, não se abrirão à admiração nem à filosofia.5,7
Um homem costumava ter dúvida sobre si próprio mas não sobre a verdade. O louco só não perdeu a razão. Para um lógico como Russell, a imaginação é vista como perigosa e supérflua; os poetas como não confiáveis e pouco activos. A história contradiz isto: os poetas são muitas vezes muito activos (por exemplo, Shakespeare e Camões).

“É pela sua utilização em "contextos" que a linguagem adquire para nós sentido, antes mesmo de a estudarmos. É uma coisa viva. A proposição em uso é como a primeira pessoa usando a experiência prévia da terceira pessoa. É íntima com o que a rodeia; o seu significado como conhecimento só se nota em retrospectiva. É a palavra ontológica sobre a palavra epistemológica, contribuindo em primeiro lugar não para o conhecimento, mas sim para ser, para viver.”1b


“Lutamos e andamos enredados numa linguagem decaída, como homens enrolados nas pregas do pano de uma tenda colapsada. O homem que não acredita nos sentidos e o que só acredita nos seus sentidos estão ambos loucos. O erro não é do argumento, mas da sua forma de vida. Peço desculpa mas eu não sou um filósofo profissional; sou mais parecido com um charlatão, porque não perco o meu tempo em abstrações. Conheci em tempos um filósofo em Oxford que estava tão fascinado com a sonoridade da palavra quá, que resolveu escrever um livro chamado Quá, quá, quá.”13
“Toda a minha vida expliquei que o meu compromisso foi para com as pessoas normais na sua vida normal. Não sou um pedante. Sem as pessoas normais (normal significa comum ou, matematicamente, norma, o valor que mais se repete), todo o mundo moderno colapsaria; tornar-se-ia um asilo psiquiátrico. As pessoas comuns encontram-se numa posição de transição (entre os intelectuais e a realidade).”14



W.: “Andamos numa guerra com a linguagem. Estamos numa época em que o espírito da linguagem que alimenta a vida necessita de uma reverência moral; o espírito da linguagem carece de uma referência a Deus que não deixe o homem apenas no mundo dos sentidos.
Somos como um arco-íris aprisionado; como se os regatos de água fresca das montanhas fossem todos transformados em charcos dentro de quintas, dentro dos quais circulamos como peixes-gato que tentam encontrar o seu caminho dirigindo-se para o fundo. Dantes víamos claramente; agora só vemos sombras, devido à areia e lodo nos nossos olhos.
Um filósofo é um homem que tem que curar muitas doenças intelectuais em si próprio até que chegue ao senso comum. Se na vida nos encontramos rodeados de morte, também na nossa vida intelectual nos encontramos rodeados de loucura. Trabalhar em filosofia é muito o trabalhar em si próprio, na sua interpretação, no seu ego, no seu modo de ver as coisas.”15

“Eu e tu temos, espero, esta enorme vantagem sobre esses novos filósofos muito espertos: é que não somos loucos. Todos acreditamos na Catedral de S. Paulo; muitos de nós acreditam em S. Paulo. Mas deixem-me alertar para o facto de que nós também acreditamos num sem-número de coisas que são parte da nossa existência, mas que não podem ser demonstradas. Deixemos a religião de fora desta questão. Todos os homens sãos acreditam de forma firme e constante num determinado número de coisas que não estão provadas nem podem ser provadas. Vamos enumerar algumas:
(1)    Todo o homem são acredita que o mundo e as pessoas à sua volta são reais, e não um sonho ou uma ilusão. Nenhum homem incendeia Londres na convicção de que o seu criado o acorda a seguir para tomar o pequeno-almoço. Mas o facto de que eu não sou um sonho não pode ser indiscutivelmente provado. Que tudo não exista excepto eu próprio não se consegue provar.
(2)    Todo o homem são acredita que este mundo não só existe como importa. Todo o homem são acredita que nos devemos interessar pelo panorama da vida. Ninguém pensa ser correcto alguém dizer: aquela senhora está a ser assassinada no andar de baixo, mas eu vou dormir e não me interessa que apanhem o criminoso. Que exista este dever de cidadania não é susceptível de prova.
(3)    Todo o homem são sabe que existe algo a que se chama ego e que é contínuo. Nada do que aconteceu comigo há dez anos deixa de fazer parte de mim. Embora a matéria do meu cérebro não seja a mesma de há dez anos atrás, se eu salvei um homem numa batalha sinto-me orgulhoso, se eu fugi e o abandonei sinto vergonha. Isto não só não se consegue provar, como é negado por muitos metafísicos.
(4)    Por último, a maioria dos homens sãos acreditam, e na prática assumem, que têm o poder de livre escolha e a decorrente responsabilidade nas acções que tomam…
(5)    Talvez seja bom enumerar estes pontos aos cépticos para sabermos com que podemos contar. E se à juventude do futuro não se puder ensinar nenhuma religião, ao menos que se ensine de forma firme e inequívoca estas três ou quatro coisas sensatas e certezas do livre pensamento humano.”16


António Campos


1 – Ludwig Wittgenstein. aTratado Lógico-Filosófico (1922) e bInvestigações Filosóficas (1953, 1958, 2001). Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2015. Tradução e prefácio de M. S. Lourenço.
2 - Chesterton. The Critic, George Bernard Shaw.
3 - Ian Ground, F.A. Flowers III. Portraits of Wittgenstein (2015). Wittgenstein: Conversations 1949-1951, O. K. Bouwsma. Bloomsbury, ISBN 9781474260190.
4 - Chesterton, On The Classics, ILN Agosto 1929 e Come to Think of It.
5 - Elias Claudino Sales Filho. A Concepção de Realismo segundo a obra Ortodoxia de G. K. Chesterton, Tese (2012). Faculdade Católica de Fortaleza, Fortaleza, Brasil.
6 - https://www.firstthings.com/article/2013/01/against-great-books.
7 - Chesterton. Ortodoxia e Introdução ao Livro de Job.
8 - Tom Martin (University of Nebraska). Chesterton and Wittgenstein (2005). American Chesterton Society, 24th G. K. Chesterton Conference, A Century of Heretics, St. Thomas University, St. Paul, Minnesota. Disponível no site da ACS.
9 - Wittgenstein para O. K. Bouwsma sobre Descartes, em 1949 na Cornell. Ian Ground, F.A. Flowers III. Portraits of Wittgenstein (2015). Wittgenstein: Conversations 1949-1951, O. K. Bouwsma. Bloomsbury, ISBN 9781474260190.
10 - Chesterton, ILN 16, Out 1904.
11 - John Heaton and Judy Groves. Wittgenstein for Beginners. Penguin Books, London. ISBN 1 874166 17 X.
12 - Chesterton. São Tomás de Aquino.
13 - Chesterton, Palestra na Sociedade Britânica de Filosofia, 1923.
14 - G K Chesterton ILN, 1926 (extrato de uma conferência de Chesterton na sociedade filosófica britânica).
15 -  Ludwig Wittgenstein. O Livro Azul, 106-128. Edições 70, Lisboa, 2018.
16 - Chesterton. A Plea for a Popular Philosophy (Daily News, 22 Junho de 1907).

sábado, 1 de dezembro de 2018

Nietzsche e os Dois Caminhos




Devo dizer que não me fascina voltar a Nietzsche, mas ao ouvir as correntes encomiásticas
despejadas pela gente moderna sobre o filósofo doentio, torna-se uma espécie de imperativo. Não perderia o meu tempo se tal atitude mental fosse própria daqueles que não pertencem à minha família ou se não pagasse para que dessem a melhor educação aos meus filhos. Mas são professores de todos os níveis de ensino, são escritores, padres e até teólogos.

A moral anti-igualitária de Nietzsche é de raiz anti-cristã, anti-democrática, aristocrática, numa palavra, anti-humana, até à misantropia e à misoginia. Creio que existe algo de eticamente corrupto e deplorável no trabalho de Nietzsche, embora muitos académicos apenas sublinhem os seus aspetos positivos. Atitudes como tomar a ética de Nietzsche com ligeireza (“não seja demasiado severo com o filósofo alemão”), afirmar que nada existe de deplorável na sua ética ou de que não devemos tomar partido, bastando estudá-lo e admirá-lo como um excelente escritor ou malabarista da palavra, são frequentes.

“Abster-se da agressão mútua, da violência, da exploração do homem, equalizar a vontade de um à vontade de outro; isto poderá ser considerado um exemplo de boas maneiras entre indivíduos se estão reunidas as condições para tal (nomeadamente se a sua força e os seus valores são de facto similares e se ambos pertencem a um corpo). Logo que exista o desejo de estender este princípio, contudo, e sobretudo como princípio geral da sociedade, ele revela-se como é: uma pulsão de negar a vida, um princípio de dissolução e de decadência.”1

Mas perante qualquer malabarista da escrita, por melhor artista que seja, o seu pensamento e a história da sua vida, têm que ser levados em conta quando se estabelece um juízo.

Chesterton sempre sublinhou a fraqueza do seu pensamento, pelo pessimismo quanto ao ser humano comum, o seu ódio ao cristianismo e à democracia, a sua fé num eterno retorno, a influência oriental demonstrada na filosofia circular da roda e no sistema de castas. Foi por isso que chamou à Gaia Ciência uma triste ciência. Na casa de Nietzsche, os homens não são “os milhões das máscaras de Deus” nem existe uma fraternidade universal, uma justiça igualitária ou algo a que chamamos Direitos Humanos. O que Nietzsche na realidade pretende é minar a ideia de igualdade de todos os seres humanos do lugar central que ocupa no nosso pensamento ético.

Vivemos numa civilização fundada na tradição judaico-cristã e no legado greco-romano, onde respiramos uma moral igualitária (todo o ser humano tem o direito de ser tratado como um igual pelos outros seres humanos e tem o dever correspondente de tratar os outros como iguais). Não a defender de ataques de homens como Nietzsche não é uma mera covardia, é uma negligência grave e um assumir de responsabilidade pelas suas consequências. Temos responsabilidade como seres humanos, como seres sociais e espirituais. A nossa responsabilidade existe, pois, a vários níveis, tenhamos ou não essa percepção, uma vez que ela é objetiva. Aceitar as premissas de Nietzsche seria um erro monstruoso. No entanto, hoje em dia, as críticas de natureza ética à moral de Nietzsche são muito raras no meio académico, uma vez que a ideia de “eleitos” é muito apelativa no meio universitário; por outro lado, as críticas “externas” são combatidas com bastante agressividade pelos “especialistas” em Nietzsche que tiram o máximo partido de conhecerem exaustivamente as suas obras.

“…O que eles cantam – “direitos iguais”, “sociedade livre”, “não mais senhores nem servos” – não nos seduz. Consideramos absolutamente indesejável que um domínio de justiça e concórdia se estabeleça na terra (porque seria certamente o domínio do mais manifesto nivelamento por baixo até à mediocridade); seduzimo-nos, antes, por todos aqueles que, tal como nós, amam o perigo, a guerra e a aventura; que recusam os compromissos, ser capturados, reconciliarem-se, serem castrados; consideramo-nos conquistadores…”2



Uma definição clara de oponência torna-se imperativa, uma vez que a igualdade moral de todos os seres humanos é a ideia básica que conduz a moralidade na sociedade ocidental, a sua religião dominante, os seus edifícios jurídico e político. O julgamento de que devemos tratar os outros como iguais é o nosso julgamento fundamental, e de forma alguma exclui, antes afirma, que os seres humanos são diferentes, sendo melhores uns do que outros em certas áreas ou aspectos, e que é moralmente legítimo construir um sistema hierárquico em cada área com base no mérito relativo. No entanto, para Nietzsche, os seres huamanos deveriam dividir-se em “fracos e fortes”, “winners and loosers”, sendo os seres humanos das classes mais baixas inteiramente descartáveis.

“Toda a elevação do homem-tipo foi obra de uma sociedade aristocrática e sempre assim será: uma sociedade que acredita numa escala hierárquica e diferenças de mérito entre homens e que necessita da escravatura em qualquer sentido. Sem o pathos de distância que resulta das diferenças entre as classes sociais, com a classe dominante olhando desdenhosamente para baixo e com o seu exercício constante de comando e de exigir obediência, por meio desse olhar altivo e distanciado, nunca se poderia desenvolver um outro pathos ainda mais enigmático, esse que deseja um incremento do distanciamento dentro da própria alma, com a formação de estados mais altos, raros, remotos, amplos, precisamente pela elevação do tipo “homem” (um homem novo), pelo constante auto-aperfeiçoamento do homem.”1

Uma das razões para Nietzsche criticar a moral igualitária era a de ser uma moral negativa, de ressentimento, angústia, inveja, auto-mortificação, depressão, etc. – é a tese da moralidade dos escravos. Desta premissa resultou a sua defesa de uma atitude “altiva”, de desdém, o pathos da distância:

“O Pathos da nobreza e da distância, como já disse, o duradouro, dominante sentimento global de uma elevada estirpe senhorial, na sua relação com uma estirpe baixa, com um 'sob' - eis a origem da oposição “bom” e “mau”.3

Se perder o argumento de que a moral igualitária é uma moral negativa, cairá, por consequência, a justificação moral para tal sentido de superioridade, de casta, de distanciamento ou de desdém, esse Pathos será, na verdade, pathologikós.é.ón, patológico, doentio, errado, malévolo. Cairá por terra o argumento de que os seres humanos pertencentes a elites são superiores, como seres humanos, aos que são apenas homens comuns. 

 “Esta inversão de avaliação – esta orientação inevitável para o exterior, em vez de para o interior de si próprio – é a característica do ressentimento: para se revelar, a moralidade dos escravos deve possuir, em primeiro lugar, oponência num mundo externo. Necessita, do ponto de vista fisiológico, de estímulos externos para agir. A sua ação é, basicamente, uma reação.”3



Existem várias objeções a esta posição:

1 – Não é claro que esses mesmos sentimentos de ressentimento, negativos, não estejam presentes entre as “castas” mais altas, sejam elas na política, negócios ou universidade, onde a intriga parece ser permanente.

2 – Parece claro que alguns que pertencem a uma elite, sendo portanto aristocratas ou “hiperbóreos”, poderão “cair em desgraça”, sendo expulsos do círculo dos eleitos.

3 – Embora existam pessoas invejosas ou ressentidas que possam apelar a um igualitarismo geral, sem reconhecer as diferenças entre homens quanto ao mérito por sector de conhecimento, da arte, do trabalho ou do investimento, existe uma componente positiva ou afirmativa na moral igualitária: a conceção cristã de igual filiação, a conceção kantiana do respeito para com o ser humano (abstraindo agora da definição de ser humano como ser racional “livre”). Aliás, não é claro que a inveja ou o ressentimento não esteja presente transversalmente em todas as classes sociais, caracterizando, não “uma moral de escravos”, mas a condição humana. Existe uma moral positiva ao afirmar despudoradamente a dignidade suprema da vida humana, do seu início ao seu fim.

4 – É muito claro que tendem a ser as sociedades democráticas e não as aristocráticas aquelas onde mais florescem a arte, a ciência e o desenvolvimento geral, que são a marca do ocidente; tal como é claro que o mérito individual pode surgir de onde menos se espera. Nas palavras de Mandela: 

“Durante a minha vida dediquei-me à luta pelo povo africano. Lutei contra o domínio branco, tal como lutei contra o domínio negro. Abracei o ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas possam viver em harmonia e com iguais oportunidades. É um ideal pelo qual espero viver e que almejo alcançar. É um ideal pelo qual estou preparado para dar a vida, se for necessário.”4

5 – É bastante duvidoso que “tipos mais altos”, como Napoleão ou como Estaline, como Bentham ou como Ben Franklin, não se dediquem ao domínio e uso hedonístico de outrem em vez do “aperfeiçoamento do eu” (seja lá isso o que for). E é bastante evidente que tipos “mais altos” são muitas vezes aqueles que reclamam, não a distância, mas a proximidade com as pessoas comuns. Os exemplos são múltiplos, de Jesus Cristo e dos santos, passando por cientistas como Pasteur, a grandes escritores como Camões ou Shakespeare, Hugo ou Dostoiévski.

6 – Parece evidente que algumas proibições ou limites, afirmam os direitos de uns por apelar às restrições de outros, como lembra Paul Ricoeur:

“Não tirarás a vida, não roubarás, não torturarás. Em cada um destes casos, a moral é uma resposta à violência. Se o mandamento não pode assumir outra forma que não a de proibição, isso acontece precisamente por causa do mal: a todas as formas do mal responde a moralidade com um não. No entanto, a nível do ideal ético, ser solícito para com os outros, com a troca recíproca de cumprimentos, é completamente afirmativo. Esta afirmação, que se pode considerar como fundamental, é a alma escondida da proibição. É aquilo que, em última análise, desperta a nossa indignação, i. e., a nossa rejeição das indignidades inflingidas a outros.”5

Caída assim a crítica à moral “dos escravos” como negativa, cai também todo o argumento em defesa do pathos da distância. Nietzsche pensa que a profundidade e a grandeza da alma aumenta por olhar para baixo com desdém.

Essa alegação é completamente falsa.

É evidente que os seres humanos podem ser mais eles próprios, mais profundos, por meio do respeito mútuo e do reconhecimento. Se pensarmos no conceito de “grande”, porque razão há-de ser o desdém e não o amor, a grande mola propulsiva para criar as grandes almas?

Mas é indiscutível que o orgulho, e não a humildade, se tornou a marca da educação da juventude na nova Alemanha saída da Prússia. Nietzsche revela muito claramente princípios neo-darwinistas e, embora não simpatizasse com o partido nacional-socialista, deixou o pano de fundo para o que viria a suceder, primeiro na Rússia e depois na Alemanha:

"A vida é, essencialmente, um processo de apropriação, de ferir, de subjugar o estrangeiro e o mais fraco, oprimindo-o, sendo cruel, impondo-lhe o nosso jugo, ou, pelo menos, explorando-o. (...) Os doentes são parasitas da sociedade e os médicos devem adquirir um novo sentido de responsabilidade, de modo a que os supremos interesses da vida sejam protegidos; de uma vida superior, onde as formas de vida em degenerescência sejam abandonadas ou suprimidas de forma sumária. Deve considerar-se neste âmbito também o direito de procriar, de nascer, o direito até de viver..."



Com a sua retórica de superioridade, causa uma certa estupefação o acolhimento que o filósofo encontra junto dos intelectuais de esquerda, mas existem três tipos de explicação:

1 – Nenhum intelectual resiste ao apelo a ser “um tipo mais alto”, um “escolhido”; a marca do orgulho.

2 – O ateísmo de Nietzsche e a sua violenta retórica contra Cristo colhe.

3 – Existe na moral de Nietzsche uma coincidência com o princípio da moral formal de Aristóteles (o princípio de que os semelhantes entre si devem ser tratados de forma semelhante) e o princípio aristotélico da igualdade proporcional (devemos tratar os iguais de forma igual e os diferentes de forma diferente de acordo com a gradação das diferenças) que levou Aristóteles a defender a escravatura. De forma similar, para o intelectual de esquerda, ninguém atinge o nível de erudição, o nível de inteligência ou de moralidade, como os seus camaradas de crença ou de partido; a sua colmeia.

“O tipo nobre de homem sente-se o determinante dos valores; ele não necessita de aprovação, ele julga «o que me fere é mau em si mesmo», ele crê-se ser aquele que honra as coisas, o criador de valores. Ele honra tudo o que sente ser parte de si próprio, esta moral é uma auto-glorificação.”2

É indizível o nojo que me causam as lucubrações laudatórias sobre Nietzsche com origem em católicos. Nelas, está patente toda uma traição aos métodos de Jesus Cristo e das grandes figuras da Igreja, que sempre procuraram servir-se dos mais simples, que sempre acreditaram nos homens comuns.




Deixo algumas das citações de Chesterton, para lembrar o ponto de vista da fé católica:

“O ponto fraco de toda a teoria de Carlyle sobre a aristocracia reside na sua frase mais conhecida. Carlyle disse que a maioria dos homens são uns tolos. O cristianismo, com um realismo mais certo e reverente afirma que todos os homens são tolos. Esta teoria é muitas vezes chamada a doutrina do pecado original. Também pode ser chamada a doutrina da igualdade entre todos os homens. No entanto, o ponto fundamental é apenas este: quaisquer que sejam os perigos morais graves ou primários que possam envolver o homem, envolvem todos os homens. Todos os homens podem ser criminosos, se tentados, todos os homens podem ser heróis, se inspirados. E esta doutrina destrói a crença patética de Carlyle (ou a crença patética de qualquer um) na elite de pensadores. Não existe nenhuma elite sábia. Toda a aristocracia que tenha existido ou que exista, se porta, no essencial, como uma pequena maralha.”6

“O mundo moderno não distinguirá entre questões de opinião e questões de princípio; e acabará por tratar a ambos como meras questões de gosto.”7

“Se eu tivesse um único sermão para pregar, seria um sermão contra o Orgulho. Quanto mais conheço da vida, sobretudo da vida moderna, adquirida por experiência, tanto mais fico convencido quanto à veracidade da antiga tese teológica; a de que todo o mal se iniciou com uma atitude de superioridade. Um momento em que, podemos afirmar, os céus se estilhaçaram como um espelho, por existir um escarnecedor no Céu. A primeira conclusão a retirar sobre este assunto é bastante curiosa. Ela é uma das mais descartadas em teoria e mais aceites na prática. Os intelectuais e os homens modernos acreditam que tal conceito teológico é uma relíquia do passado; e, tomada como conceito teológico, é-lhes de facto estranho.

Mas, na verdade, está-lhes demasiado próximo para que o possam ver.

Faz-lhes tão parte da mente, da moral e dos instintos, poderia mesmo dizer dos seus corpos, que a tomam como adquirida e agem em conformidade sem sequer pensar no assunto. É na realidade a mais comum de todas as ideias morais; e no entanto, é praticamente desconhecida como ideia moral. Nenhuma verdade é tão remota como verdade e tão próxima como facto.”8



“Era uma marca da arte do passado, especialmente da arte da Renascença, o facto de que o grande homem era um homem. Era um homem extraordinário, mas apenas no facto de ser um homem comum (ordinary) com algo extra. Shakespeare e Rubens eram exatamente como o homem comum: comiam e bebiam, faziam projetos, morreram. Mas o típico artista moderno faz questão de ser uma criatura exótica e separada, que se alimenta e sente de um modo que lhe é apenas particular...existem então duas concepções antagónicas do génio: o algo mais e o algo diferente.”9



“Se um homem está genuinamente acima dos seus semelhantes, a primeira coisa em que acredita é na igualdade do homem. Isso está patente naquela passagem de estranha e inocente racionalidade em que Cristo se dirige à multidão:

- Qual é o homem que tendo perdido uma ovelha das cem que possui, não abandona as noventa e nove e se lança em busca da ovelha perdida?

- Qual é o homem que se o seu filho lhe pede um pão, lhe dá uma pedra; ou se lhe pede um peixe, lhe dá uma serpente?

Esta simplicidade, esta quase camaradagem prática é produto das grandes mentes.”10

“A cortesia não se destaca das outras virtudes; antes pelo contrário, é uma qualidade que se encontra em todas elas. Tem algo que ver com reverência, humildade e castidade. É moldada pela caridade, o molde de todas as virtudes, para a qualidade da misericórdia. É a beleza de uma vida de valor e generosa. A cortesia é, acima de tudo, reverência para com o seu semelhante. Num cavalheiro cristão, é o hábito tornado possível pela fé e pela caridade, um olhar que vê em todo o homem, grande ou pequeno, a brilhante imagem da Trindade, um irmão pelo qual morreu Cristo. O indivíduo cortês tem uma atitude de «adoração» para com o seu semelhante: por pequenas atitudes de gentileza, ele realça a sua importância, a sua dignidade, como pessoa humana. No rito do casamento, “com o meu corpo eu te adoro”, rende-se cortesia à esposa no próprio acto da consumação do amor pelo matrimónio. O cavalheirismo e o decorrente respeito são a própria essência do amor do noivo. A cortesia está intimamente ligada à humildade.”11

“Sinto uma gratidão profunda para com a Igreja Cristã histórica, com o seu catálogo de santos incógnitos e banais. Presto-lhe homenagem, porque se ergue praticamente só, entre todas as outras instituições da Terra, como uma instituição que acha ser digno gravar em mármore para sempre os nomes de homens bastante ignorantes, apenas pelo facto de eles serem bons. Penso que nos tornámos deformados, na nossa admiração desproporcionada pela mera inteligência; às vezes apenas pela cultura.”12





António Campos



Notas:

O texto é em grande medida uma sinopse do texto de James Wilson, Nietzsche and Equality.

1 – Nietzsche. Gaia Ciência.

2 – Nietzsche. Para Além do Bem e do Mal.

3 - Nietzsche. Genealogia da Moral.

4 – James Wilson. Nietzsche and Equality.

5 – Paul Ricoeur. O Si Mesmo como Outro.

6 – Chesterton. Thomas Carlyle, Twelve Types.

7 - Chesterton, The New Witness, 1919.

8 - Chesterton, If I Had Only One Sermon To Preach.

9 – Chesterton. Introduction to Famous Paintings, The Soul of Wit.

10 - Chesterton, Hereges.

11 - G. K. Chesterton, Laughter and Humility.

12 - G. K. Chesterton. The Darkness of Virtue, Daily News, 28 de Julho de1906.




domingo, 25 de novembro de 2018

Wittgenstein Para Principiantes: O “Eu privado”




O problema fundamental abordado por Chesterton sobre a filosofia moderna é a recusa dos
primeiros princípios filosóficos. Os modernos ignoraram toda a história do pensar, declarando que nada do que foi feito antes do Renascimento tem muita importância. A partir do século XVII afirma-se que este mundo não é necessariamente o primeiro objeto de reflexão, conferindo-se à lógica um caráter fundamental como princípio de conhecimento.1

Nunca devemos esquecer, no entanto, que a lógica nada nos diz sobre o mundo, uma vez que, sendo um processo mental de natureza matemática, depende das premissas. Descartes pretendeu encontrar um conhecimento seguro. No entanto, o seu método abriu espaço para que a filosofia pudesse principiar a partir da dúvida sobre a realidade. Deste modo, o processo subjacente aos sistemas filosóficos modernos não é filosofia, mas dúvida filosófica, i.e., dúvida sobre se pode haver alguma filosofia. Quando se afirma, com Descartes, que “não podemos confiar nos nossos sentidos, porque eles por vezes nos enganam”, estamos a perder a conexão com o mundo externo e a tentar encontrar a realidade dentro da mente, no mundo interno. É um ensimesmamento.

Onde se cometeu o erro que conduziu a essa deriva?

Em primeiro lugar, não podemos concluir que por “os nossos sentidos por vezes nos enganarem”, não podemos confiar neles, porque esses “enganos” não são dos sentidos, mas são de integração e interpretação a nível cerebral, a que podemos chamar percepção ou atribuição de significado.

Depois, porque nós temos, a nível da interpretação, por exemplo ao ver uma árvore mais pequena à distância, um sistema de contrapesos para julgamento e decisão, que nos é dado precisamente pela experiência e pela lógica. O facto dos objectos mais distantes serem mais pequenos tem relação com as regras da ótica, que é parte integrante da física, e com a trigonometria, um capítulo da matemática, que nos permite uma capacidade fundamental: o cálculo das distâncias.

Por outro lado, não existe nenhuma dissociação entre nós e os nossos sentidos. “Eu”, sou este corpo que vive no mundo e que constrói dele um mapa significante. Por isso mesmo, se a esse corpo faltar alguns dos sentidos, digo-me deficiente (cego, surdo, etc.). Poder-se-à também dizer que se me desconectar com a realidade externa, possuo uma forma de loucura.

Portanto, basicamente, existe verdade de correspondência neste mundo. Existe uma relação lógica espaço-temporal que assegura a continuidade do mundo externo numa sequência lógica, apesar de nos ausentarmos dele sempre que dormimos. Quando acordamos, encontramos uma continuidade no mundo que deixámos. Temos uma perceção de continuidade de uma realidade que vivemos descontinuamente. Finalmente, como explicado anteriormente, existem “formas lógicas”.

Se eu me desconectar com o método de encontrar a realidade no mundo externo e me virar para a minha mente, embora raciocinando logicamente, facilmente poderei concluir que tudo na realidade que vivo é fabricado na minha mente ou que sou apenas um espelho de uma mente superior, como uma abelha numa colmeia. No entanto, existe uma antinomia neste raciocínio: se não existe uma autoridade na realidade externa à minha mente e independente dela, como posso eu saber que a conclusão a que cheguei não é, ela própria um artifício da minha mente e, portanto, falsa? Se tudo é uma ilusão, como saber que não é ilusão a conclusão de que tudo é ilusão?

Um famoso filósofo afirmou que o homem é um legislador universal, se for um indivíduo “racionalmente livre (do sono dogmático)”. A realidade parece demonstrar que o homem é mais um decisor; alguém que julga e escolhe, com base no crédito que atribui à realidade. Desse ponto de vista, cada homem julga conforme as coisas que lhe merecem crédito, que são credíveis, e nesse julgamento existe naturalmente uma crença, uma fé no que merece crédito.



Recusando a "crença” no facto, na existência da realidade, a filosofia moderna cartesiana rompeu com a corrente aristotélico-tomista. «Cem filosofias humanas existentes na terra, do nominalismo ao Nirvana e a Maya, do evolucionismo que recusa a existência das formas, ao quietismo, todas elas vêm dessa primeira ruptura da corrente tomista: a ideia de que, como não nos satisfaz nem se explica a si mesmo, aquilo que vemos não existe». A dúvida como método é importante, mas que quando passa a ser universal torna-se não somente metódica, mas cética, porque se deixa cair sobre a própria possibilidade de conhecer.2

Existe esta tendência na modernidade de remeter a teologia para a vida privada, excluindo-a do espaço público, reservando à filosofia um espaço não teológico ou ateológico. No entanto, grande parte das dúvidas e dos sistemas filosóficos modernos estão já ilustrados na bíblia, o livro teológico e filosófico por excelência. O “se” da primeira tentação de Cristo é o “se” ou “és tu?” de Pilatos. Parece claro que, sem pretender o domínio da filosofia pela teologia, a cisão entre ambas empobrece a filosofia, na medida que a teologia, nomeadamente a bíblia, já retrata visivelmente as relações entre a ortodoxia e as diferentes heterodoxias.

“Descartes é essencialmente um homem que tentou e submeteu à experiência a ideia seguinte: O que acontecerá à metafísica se a submetermos ao método matemático? Tentou provar a existência de Deus socorrendo-se apenas da razão. No entanto, ao aplicar o seu método a toda a realidade, acaba enredado num novelo de dificuldades. Para começar, argumenta que nada pode escapar ao método matemático, sem dar uma explicação convincente para tal afirmação. Acaba por não resistir à atitude arrogante moderna de moldar a realidade às suas ideias, em vez da atitude mais humilde de adaptar as suas ideias à realidade. Acaba por recuperar as coisas apenas como conceitos, por não ter outro ponto de partida senão o puro pensamento.”3

“Um filósofo é um homem que tem que curar muitas doenças intelectuais em si próprio até que chegue ao senso comum. Se na vida nos encontramos rodeados de morte, também na nossa vida intelectual nos encontramos rodeados de loucura. Trabalhar em filosofia é muito o trabalhar em si próprio, na sua interpretação, no seu modo de ver as coisas. O senso comum é algo muito menos vaidoso do que isso.”4


Descartes desvalorizou o que é próprio da natureza humana: o ordenamento psicológico. O homem entregue ao mecanicismo experimenta um notável progresso tecnológico e económico, mas entra numa decadência ética que o poderá precipitar no abismo.5

O “interior” não se encontra inacessível, mas o tipo de linguagem que usamos ao definirmo-nos a nós próprios é de uma natureza onde a certeza se encontra excluída. O “mundo interno” não é uma realidade material que possa ser desenhada pelos psicólogos, mas uma rede de conceitos e de significado relacionando o “interno” com o “externo”, que se situa no cerne do entendimento humano. As terapias psicológicas pressupõem o conhecimento do “externo” (behaviorismo) ou do “interno” (psicanálise); no entanto, a melhor terapia para cada homem reside numa procura de sentido ou de significado, ou em tornar claro o tipo de linguagem que relaciona o “interno” com o “externo”. Nós respondemos a pessoas vivas e nunca  a uma evidência imaginada das suas vidas externas ou internas.6

“A nossa cupidez pela generalização, a nossa obsessão pelos métodos da ciência, reside em reduzir todas as explicações dos fenómenos naturais a um número o menor possível de leis naturais primárias. Filósofos como Descartes, que sempre vislumbram os métodos da ciência perante os seus olhos, não resistem à tentação de formular questões e de as responder do mesmo modo que o faz a ciência. Esta tendência é uma fonte de metafísica e deixa os filósofos na mais absoluta escuridão.”4


Em que consiste então o “conhecimento”?

O conhecimento relaciona-se com dúvida e certeza, aprender e descobrir, pressupostos e confirmação. Por conseguinte, embora a expressão “sei que tenho dor” seja lógica, ela não tem sentido, uma vez que aqui não existe qualquer lugar à dúvida. No entanto, afirmar “sei que ele tem dor” é um conhecimento, porque embora faça sentido eu concluir por certos factos e comportamentos que alguém sente dor, neste tipo de situação abre-se sempre lugar à dúvida, uma vez que se trata de uma experiência que não está a ser experienciada por mim.6

“Os limites de afirmar  a verdade sobre o que dizemos assenta na possibilidade de as coisas poderem ser de outra maneira. Desse modo, a certeza que se liga à escolha que faço das palavras que exprimem o meu encontro sensível e intelectual – o meu reconhecimento de – não é invalidado por um oposto. Dizer “está a chover” não é invalidado pelo facto de não estar a chover.

De cada vez que escolho as palavras apropriadas ao meu encontro com o mundo, ao escolhê-las dentro de certas circunstâncias, eu delimito a fronteira daquilo que eu digo, dentro das quais a veracidade daquilo que afirmo pode ser verificada. Os limites da nossa linguagem têm poros (como as membranas celulares), fornecendo a estabilidade e fluidez necessárias à declaração de verdade ou falsidade num mundo dinâmico e dialogante.

Por meio desses poros, os determinantes da minha proposição podem ser submetidos à dúvida, desafiados, ao incluir uma questão que eu tinha deixado de fora no meu encontro original, mas que esteve sempre em jogo, como possibilidade. É apenas perante esta possibilidade de dúvida que podemos admitir conhecer, que relacionamos o que aconteceu com o que poderia ter acontecido, dentro de um determinado contexto.

O conhecimento será então, a relação entre o que aconteceu e o que poderia ter acontecido, dentro dos limites de um jogo particular ou mundo de uso.

Que o conhecimento apenas possa ocorrer num contexto de dúvida encontra-se confirmado pelo modo como usamos comummente as expressões do conhecimento. Eu afirmo “eu sei” para persuadir ou clarificar, por exemplo, em face de uma outra possibilidade ou opinião. Eu sei que uma determinada árvore é uma olaia, porque eu reconheço existirem muitas outras árvores, incluindo de flores violeta, de entre as quais eu faço uma distinção. O meu conhecimento pode ser expresso em face de uma contradição. Tu pensas tratar-se de um limoeiro e eu necessito de te provar que se trata de algo diferente. A árvore distingue-se, de forma difusa num dia de nevoeiro, com a sua silhueta familiar, de entre os outros objectos imersos na neblina. Em todos estes exemplos se abriu a possibilidade de a árvore ser uma outra coisa.

Por outro lado, cometemos um erro clamoroso ao aplicar este processo científico ou filosófico onde não existem dúvidas. Na verdade existe uma certeza que é maior que a evidência, porque assenta na existência de tudo o que existe. Não podemos, contra Descartes, “ter dúvida sempre que nos apetece” e não podemos possuir conhecimento sem ser num contexto de dúvida. Quero eu dizer que não podemos, como Descartes, duvidar sistematicamente de tudo e depois afirmar que possuímos conhecimento que não pode ser submetido à prova da dúvida.

Na nossa vida diária, existem inúmeros casos onde nunca necessitamos de colocar a questão do conhecimento: “isto é uma mão”, “eu sou um ser humano”, “aquilo é uma árvore”, “o mundo já existe há muitos anos”, “o mundo existe antes de mim”. O problema de aplicar a análise científica ou filosófica neste tipo de casos, requere que coloquemos em dúvida coisas onde não existe dúvida nenhuma: “Eu possuir duas mãos é, em circunstâncias normais, tão certo como qualquer evidência que eu possua de tal. Por isso mesmo, eu não posso tomar a visão da minha mão como evidência de eu possuir mãos. Esta certeza que é superior à evidência merece uma abordagem particular, na medida em que nela reside a totalidade do que é.

Duvidar, em certos casos, é inconcebível. Duvidar de uma proposição como "esta é a minha mão" seria equivalente a duvidar de tudo e tal não é possível. Não seria tal o equivalente a ter calculado mal as nossas possibilidades? Conhecer é ser capaz de distinguir e tal é feito primeiro num contexto prático. Eu sei que uma coisa é uma mão, no sentido em que não é um pé ou uma cabeça, um cão ou uma casa. Se eu digo que isto é uma mão, é porque eu passei por tal experiência, por conseguinte tenho um passado e tudo o que ele implica.

Mas é impossível conhecer uma mão sem ter em conta o seu paradigma: o corpo humano. O único modo em que se pode conhecer que aqui está uma mão é por um ser humano, um corpo humano, num mundo de seres humanos, que existe como nós dizemos que existe.

Saber que aqui está presente uma mão é também uma afirmação de espaço-tempo. Eu distingo a mão de entre o contexto do que a rodeia, e ao situá-la temporalmente, estou também a situar-me a mim, o que pensa, temporo-espacialmente.

Este «Eu» que duvida, que o jogo do conhecimento nos coloca em jogo, já é um corpo, ocupando uma localização espácio-temporal, um ser humano, num mundo de seres humanos. Esta é a posição de onde eu falo e não existe outra. Negar isto, é estar em auto-negação, e tal não é possível a um eu que continua a existir, cuidando das suas necessidades corporais, comprometido com o mundo, mesmo que seja na forma de tentar negá-lo. Mesmo quando duvido adopto um comportamento de certeza.

A realidade está aí, mesmo antes de eu a conhecer e não me encontro à distância dela, mas nela. Posso afirmá-lo, porque a vivo. Falar é estar imerso na realidade.”7




O “Eu” privado



Ao colocar uma divisão entre o mundo real e o mundo que é sujeito à dúvida, a imposição da necessidade de verificação origina uma outra fratura: uma distinção entre o sujeito filosófico e o «Eu» que é o jogador no jogo da linguagem, o falante, o ser humano que usa a linguagem. Para W., o sujeito é o «Eu» linguístico, o jogador dos jogos da linguagem. O «Eu» é a porta de entrada nos jogos e creditar o «Eu» linguístico é progredir a partir do contexto de onde ele opera. Entrar no jogo é aceitar um consenso de não duvidar de certas coisas. Dar crédito ao nosso «Eu» significa que estamos em relação com a rede que nos fornece a comunidade linguística, de que necessitamos para distinguir os objectos que encontramos no mundo, e para delimitar as nossas experiências do universo de possibilidades que nele se encontram.

O sujeito é aquele que questiona e aquele que fala, o que possui a intenção de agir e o desejo de falar, de pensar o mundo de acordo com as suas necessidades. Dar crédito ao «Eu» é entrar no jogo, iniciá-lo. A diferença entre o «Eu» como jogador da linguagem e o «Eu» como o sujeito tradicionalmente concebido, é a de que, no último caso, a verdade de qualquer proposição seria arbitrária ou subjectiva, como se cada um de nós, isoladamente, conferisse o significado aos nomes de cada vez que os usamos; enquanto que, no primeiro caso, é por usar certas palavras em certas circunstâncias que «Eu» coloco em jogo os determinantes da verdade que elas revelam.”8

O sujeito para W. é o sujeito em jogo e é inseparável do mundo no qual se inclui. “Eu” tem acesso imediato ao mundo, o que elimina a necessidade da evidência, da correspondência e da coerência com a verdade, que envolvem uma necessidade de concordância que W. recusa. Por isso mesmo, quando Moore lhe mostra a sua mão e defende saber que aqui existe uma mão, deve perguntar-se-lhe onde é que existe aqui espaço para a dúvida? Na ausência de dúvida, deve questionar-se a possibilidade do conhecimento. Como se pode constatar, para W., a linguagem é praticamente indissociável do mapa significante ou do património de significados com o qual lidamos no dia a dia, como referido por psicólogos como Jordan B. Peterson.

“Não experiencio a dúvida de que esta é a minha mão e, portanto, a experienciação de a conhecer não pode entrar aqui. É a vida normal que o descarta. Não dizemos, excepto na análise filosófica, “eu sei que isto é a minha mão”, porque a distância para a dúvida ou para o conhecimento se encontra ausente. De modo semelhante, eu não tenho um corpo; eu sou esse corpo. Se alguém disser “Eu tenho um corpo”, poder-se-à perguntar-lhe: “Quem está a falar com essa boca?”. Não existe aqui correspondência, nenhuma verificação é necessária, não porque eu ou Moore o digamos, mas porque no caso da minha mão, do meu corpo, é simplesmente assim. O meu “Eu” é o local de encarnação linguística; mas a prioridade que damos à análise científica violenta continuamente esta unidade, por pensar e procurar em termos de correspondência, onde nenhuma correspondência existe.

Pensarmos em termos de correspondência, i. e., de julgamento e prova, conduz-nos a outro problema. Sempre que falamos em termos de conhecimento sobre certas “proposições estruturantes” fundamentais, somos conduzidos a procurar uma autoridade por detrás desse conhecimento. Se eu disser, como Moore, “eu sou um ser humano”, “existe no presente um corpo humano vivo que é o meu corpo”, e por aí fora, e depois defender que estes são factos objectivos porque eu os conheço, estou a defender, com Moore, que o meu conhecimento age como a autoridade sobre o que conheço, implicando uma cisão no “Eu” que não é evidente externamente. Aponta para a existência de um “Eu” privado, uma pessoa interna escondida no corpo que se apresenta ao mundo, para quem nós mostramos as nossas experiências com a finalidade de serem verificadas. Deste modo, podemos continuar a enumerar o que sabemos? Creio que não. A expressão "eu sei” torna-se inadequada. E por este uso indevido revela-se um estranho estado mental.

“Eu sei porque eu sei que sei” não pode ter autoridade, a menos que aceitemos esta bifurcação e esta pessoa interior da qual não temos a menor sombra de evidência. Muito mais aceitável é compreender que o que aqui está em causa não é conhecimento no sentido positivista. O que aqui está em causa é uma experiência do nosso corpo, parte da qual é a capacidade de afirmar essa experiência.”8



“Um homem costumava duvidar de si próprio, mas não da verdade. Hoje é precisamente o contrário. O maníaco perdeu tudo, menos a razão. Perdeu a imaginação, indispensável à apreensão da realidade que é um espírito. A linguagem, como a realidade, é o meio espiritual da imaginação mística que vê para além dos factos materiais”.9

Chesterton e W. confluem no sentido em que nós lidamos com um património linguístico que é comum, não privado, e que está intrinsecamente ligado a uma mapa ou universo significante que se adquire na interação entre objectos, experiências e a sua valoração psico-afectiva. Ao usar a expressão “mãe”, eu retiro-a, não do meu mundo de objetos, mas do meu mundo de significados. Quando falo da minha mãe, todos identificam imediatamente do que falo, mesmo que não conheçam a mulher que é a minha mãe, porque eu uso um termo que não me pertence, que não inventei, mas que faz parte de um património comum. Eu sou uma peça do jogo que todos jogamos; quando falo, entro em jogo. Do mesmo modo, quando falo da minha mãe, eu não falo apenas de uma mulher x com as características y. Eu falo de alguém que habita no meu mapa significante, cuja posição depende das experiências que vivi. Dizer que a minha mãe é a mais bela mãe do mundo não exprime um ranking de natureza científica ou um resultado de um concurso de beleza; outrossim, designa uma mulher que, independentemente das suas características físicas como objecto material num mundo material, possui um estatuto significante no meu mapa significante. Desse ponto de vista, em última análise, eu lido com significantes e não com objetos. Mas como adquirem os significantes o seu lugar no meu mapa de significantes? Por meio da apreensão pelos sentidos e pela vivência de experiências. A minha mente está presa neste mundo pelos sentidos. Expresso o meu mundo, as minhas experiências, quando entro em jogo, no tabuleiro da linguagem.








António Campos





1 Randall Paine. The Universe and Mr. Chesterton (1999). Peru Illinois: Sherwood Sugden. ISBN 10: 0893855111; ISBN 13: 9780893855116.

2 Elias Claudino Sales Filho. A Concepção de Realismo segundo a obra Ortodoxia de G. K. Chesterton, Tese (2012). Faculdade Católica de Fortaleza, Fortaleza, Brasil.

3 Étienne Gilson (1939). The Future of Augustinian Metaphysics, in A Monument to Augustine.

4 Ludwig Wittgenstein (2015). Tratado Lógico-Filosófico (1922) e Investigações Filosóficas (1953, 1958, 2001). Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Tradução e prefácio de M. S. Lourenço.

5 Hugh Kenner (1948). Paradox in Chesterton. Sheed and Ward, London, England.

6 John Heaton and Judy Groves (1994). Wittgenstein for Beginners. Penguin Books, London. ISBN 1 874166 17 X.

7 Ann Guinee (2013). John Henry Newman and Ludwig Wittgenstein: On Certainty and Faith. Mary Immaculate College, University of Limerick.

8 Ludwig Wittgenstein (2018). Da Certeza, Edições 70, Lisboa. ISBN 978-972-44-1608-3.

9 Chesterton (2008). Ortodoxia, Aletheia, Lisboa. ISBN 978-989-622-149-2.