sábado, 1 de dezembro de 2018

Nietzsche e os Dois Caminhos




Devo dizer que não me fascina voltar a Nietzsche, mas ao ouvir as correntes encomiásticas
despejadas pela gente moderna sobre o filósofo doentio, torna-se uma espécie de imperativo. Não perderia o meu tempo se tal atitude mental fosse própria daqueles que não pertencem à minha família ou se não pagasse para que dessem a melhor educação aos meus filhos. Mas são professores de todos os níveis de ensino, são escritores, padres e até teólogos.

A moral anti-igualitária de Nietzsche é de raiz anti-cristã, anti-democrática, aristocrática, numa palavra, anti-humana, até à misantropia e à misoginia. Creio que existe algo de eticamente corrupto e deplorável no trabalho de Nietzsche, embora muitos académicos apenas sublinhem os seus aspetos positivos. Atitudes como tomar a ética de Nietzsche com ligeireza (“não seja demasiado severo com o filósofo alemão”), afirmar que nada existe de deplorável na sua ética ou de que não devemos tomar partido, bastando estudá-lo e admirá-lo como um excelente escritor ou malabarista da palavra, são frequentes.

“Abster-se da agressão mútua, da violência, da exploração do homem, equalizar a vontade de um à vontade de outro; isto poderá ser considerado um exemplo de boas maneiras entre indivíduos se estão reunidas as condições para tal (nomeadamente se a sua força e os seus valores são de facto similares e se ambos pertencem a um corpo). Logo que exista o desejo de estender este princípio, contudo, e sobretudo como princípio geral da sociedade, ele revela-se como é: uma pulsão de negar a vida, um princípio de dissolução e de decadência.”1

Mas perante qualquer malabarista da escrita, por melhor artista que seja, o seu pensamento e a história da sua vida, têm que ser levados em conta quando se estabelece um juízo.

Chesterton sempre sublinhou a fraqueza do seu pensamento, pelo pessimismo quanto ao ser humano comum, o seu ódio ao cristianismo e à democracia, a sua fé num eterno retorno, a influência oriental demonstrada na filosofia circular da roda e no sistema de castas. Foi por isso que chamou à Gaia Ciência uma triste ciência. Na casa de Nietzsche, os homens não são “os milhões das máscaras de Deus” nem existe uma fraternidade universal, uma justiça igualitária ou algo a que chamamos Direitos Humanos. O que Nietzsche na realidade pretende é minar a ideia de igualdade de todos os seres humanos do lugar central que ocupa no nosso pensamento ético.

Vivemos numa civilização fundada na tradição judaico-cristã e no legado greco-romano, onde respiramos uma moral igualitária (todo o ser humano tem o direito de ser tratado como um igual pelos outros seres humanos e tem o dever correspondente de tratar os outros como iguais). Não a defender de ataques de homens como Nietzsche não é uma mera covardia, é uma negligência grave e um assumir de responsabilidade pelas suas consequências. Temos responsabilidade como seres humanos, como seres sociais e espirituais. A nossa responsabilidade existe, pois, a vários níveis, tenhamos ou não essa percepção, uma vez que ela é objetiva. Aceitar as premissas de Nietzsche seria um erro monstruoso. No entanto, hoje em dia, as críticas de natureza ética à moral de Nietzsche são muito raras no meio académico, uma vez que a ideia de “eleitos” é muito apelativa no meio universitário; por outro lado, as críticas “externas” são combatidas com bastante agressividade pelos “especialistas” em Nietzsche que tiram o máximo partido de conhecerem exaustivamente as suas obras.

“…O que eles cantam – “direitos iguais”, “sociedade livre”, “não mais senhores nem servos” – não nos seduz. Consideramos absolutamente indesejável que um domínio de justiça e concórdia se estabeleça na terra (porque seria certamente o domínio do mais manifesto nivelamento por baixo até à mediocridade); seduzimo-nos, antes, por todos aqueles que, tal como nós, amam o perigo, a guerra e a aventura; que recusam os compromissos, ser capturados, reconciliarem-se, serem castrados; consideramo-nos conquistadores…”2



Uma definição clara de oponência torna-se imperativa, uma vez que a igualdade moral de todos os seres humanos é a ideia básica que conduz a moralidade na sociedade ocidental, a sua religião dominante, os seus edifícios jurídico e político. O julgamento de que devemos tratar os outros como iguais é o nosso julgamento fundamental, e de forma alguma exclui, antes afirma, que os seres humanos são diferentes, sendo melhores uns do que outros em certas áreas ou aspectos, e que é moralmente legítimo construir um sistema hierárquico em cada área com base no mérito relativo. No entanto, para Nietzsche, os seres huamanos deveriam dividir-se em “fracos e fortes”, “winners and loosers”, sendo os seres humanos das classes mais baixas inteiramente descartáveis.

“Toda a elevação do homem-tipo foi obra de uma sociedade aristocrática e sempre assim será: uma sociedade que acredita numa escala hierárquica e diferenças de mérito entre homens e que necessita da escravatura em qualquer sentido. Sem o pathos de distância que resulta das diferenças entre as classes sociais, com a classe dominante olhando desdenhosamente para baixo e com o seu exercício constante de comando e de exigir obediência, por meio desse olhar altivo e distanciado, nunca se poderia desenvolver um outro pathos ainda mais enigmático, esse que deseja um incremento do distanciamento dentro da própria alma, com a formação de estados mais altos, raros, remotos, amplos, precisamente pela elevação do tipo “homem” (um homem novo), pelo constante auto-aperfeiçoamento do homem.”1

Uma das razões para Nietzsche criticar a moral igualitária era a de ser uma moral negativa, de ressentimento, angústia, inveja, auto-mortificação, depressão, etc. – é a tese da moralidade dos escravos. Desta premissa resultou a sua defesa de uma atitude “altiva”, de desdém, o pathos da distância:

“O Pathos da nobreza e da distância, como já disse, o duradouro, dominante sentimento global de uma elevada estirpe senhorial, na sua relação com uma estirpe baixa, com um 'sob' - eis a origem da oposição “bom” e “mau”.3

Se perder o argumento de que a moral igualitária é uma moral negativa, cairá, por consequência, a justificação moral para tal sentido de superioridade, de casta, de distanciamento ou de desdém, esse Pathos será, na verdade, pathologikós.é.ón, patológico, doentio, errado, malévolo. Cairá por terra o argumento de que os seres humanos pertencentes a elites são superiores, como seres humanos, aos que são apenas homens comuns. 

 “Esta inversão de avaliação – esta orientação inevitável para o exterior, em vez de para o interior de si próprio – é a característica do ressentimento: para se revelar, a moralidade dos escravos deve possuir, em primeiro lugar, oponência num mundo externo. Necessita, do ponto de vista fisiológico, de estímulos externos para agir. A sua ação é, basicamente, uma reação.”3



Existem várias objeções a esta posição:

1 – Não é claro que esses mesmos sentimentos de ressentimento, negativos, não estejam presentes entre as “castas” mais altas, sejam elas na política, negócios ou universidade, onde a intriga parece ser permanente.

2 – Parece claro que alguns que pertencem a uma elite, sendo portanto aristocratas ou “hiperbóreos”, poderão “cair em desgraça”, sendo expulsos do círculo dos eleitos.

3 – Embora existam pessoas invejosas ou ressentidas que possam apelar a um igualitarismo geral, sem reconhecer as diferenças entre homens quanto ao mérito por sector de conhecimento, da arte, do trabalho ou do investimento, existe uma componente positiva ou afirmativa na moral igualitária: a conceção cristã de igual filiação, a conceção kantiana do respeito para com o ser humano (abstraindo agora da definição de ser humano como ser racional “livre”). Aliás, não é claro que a inveja ou o ressentimento não esteja presente transversalmente em todas as classes sociais, caracterizando, não “uma moral de escravos”, mas a condição humana. Existe uma moral positiva ao afirmar despudoradamente a dignidade suprema da vida humana, do seu início ao seu fim.

4 – É muito claro que tendem a ser as sociedades democráticas e não as aristocráticas aquelas onde mais florescem a arte, a ciência e o desenvolvimento geral, que são a marca do ocidente; tal como é claro que o mérito individual pode surgir de onde menos se espera. Nas palavras de Mandela: 

“Durante a minha vida dediquei-me à luta pelo povo africano. Lutei contra o domínio branco, tal como lutei contra o domínio negro. Abracei o ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas possam viver em harmonia e com iguais oportunidades. É um ideal pelo qual espero viver e que almejo alcançar. É um ideal pelo qual estou preparado para dar a vida, se for necessário.”4

5 – É bastante duvidoso que “tipos mais altos”, como Napoleão ou como Estaline, como Bentham ou como Ben Franklin, não se dediquem ao domínio e uso hedonístico de outrem em vez do “aperfeiçoamento do eu” (seja lá isso o que for). E é bastante evidente que tipos “mais altos” são muitas vezes aqueles que reclamam, não a distância, mas a proximidade com as pessoas comuns. Os exemplos são múltiplos, de Jesus Cristo e dos santos, passando por cientistas como Pasteur, a grandes escritores como Camões ou Shakespeare, Hugo ou Dostoiévski.

6 – Parece evidente que algumas proibições ou limites, afirmam os direitos de uns por apelar às restrições de outros, como lembra Paul Ricoeur:

“Não tirarás a vida, não roubarás, não torturarás. Em cada um destes casos, a moral é uma resposta à violência. Se o mandamento não pode assumir outra forma que não a de proibição, isso acontece precisamente por causa do mal: a todas as formas do mal responde a moralidade com um não. No entanto, a nível do ideal ético, ser solícito para com os outros, com a troca recíproca de cumprimentos, é completamente afirmativo. Esta afirmação, que se pode considerar como fundamental, é a alma escondida da proibição. É aquilo que, em última análise, desperta a nossa indignação, i. e., a nossa rejeição das indignidades inflingidas a outros.”5

Caída assim a crítica à moral “dos escravos” como negativa, cai também todo o argumento em defesa do pathos da distância. Nietzsche pensa que a profundidade e a grandeza da alma aumenta por olhar para baixo com desdém.

Essa alegação é completamente falsa.

É evidente que os seres humanos podem ser mais eles próprios, mais profundos, por meio do respeito mútuo e do reconhecimento. Se pensarmos no conceito de “grande”, porque razão há-de ser o desdém e não o amor, a grande mola propulsiva para criar as grandes almas?

Mas é indiscutível que o orgulho, e não a humildade, se tornou a marca da educação da juventude na nova Alemanha saída da Prússia. Nietzsche revela muito claramente princípios neo-darwinistas e, embora não simpatizasse com o partido nacional-socialista, deixou o pano de fundo para o que viria a suceder, primeiro na Rússia e depois na Alemanha:

"A vida é, essencialmente, um processo de apropriação, de ferir, de subjugar o estrangeiro e o mais fraco, oprimindo-o, sendo cruel, impondo-lhe o nosso jugo, ou, pelo menos, explorando-o. (...) Os doentes são parasitas da sociedade e os médicos devem adquirir um novo sentido de responsabilidade, de modo a que os supremos interesses da vida sejam protegidos; de uma vida superior, onde as formas de vida em degenerescência sejam abandonadas ou suprimidas de forma sumária. Deve considerar-se neste âmbito também o direito de procriar, de nascer, o direito até de viver..."



Com a sua retórica de superioridade, causa uma certa estupefação o acolhimento que o filósofo encontra junto dos intelectuais de esquerda, mas existem três tipos de explicação:

1 – Nenhum intelectual resiste ao apelo a ser “um tipo mais alto”, um “escolhido”; a marca do orgulho.

2 – O ateísmo de Nietzsche e a sua violenta retórica contra Cristo colhe.

3 – Existe na moral de Nietzsche uma coincidência com o princípio da moral formal de Aristóteles (o princípio de que os semelhantes entre si devem ser tratados de forma semelhante) e o princípio aristotélico da igualdade proporcional (devemos tratar os iguais de forma igual e os diferentes de forma diferente de acordo com a gradação das diferenças) que levou Aristóteles a defender a escravatura. De forma similar, para o intelectual de esquerda, ninguém atinge o nível de erudição, o nível de inteligência ou de moralidade, como os seus camaradas de crença ou de partido; a sua colmeia.

“O tipo nobre de homem sente-se o determinante dos valores; ele não necessita de aprovação, ele julga «o que me fere é mau em si mesmo», ele crê-se ser aquele que honra as coisas, o criador de valores. Ele honra tudo o que sente ser parte de si próprio, esta moral é uma auto-glorificação.”2

É indizível o nojo que me causam as lucubrações laudatórias sobre Nietzsche com origem em católicos. Nelas, está patente toda uma traição aos métodos de Jesus Cristo e das grandes figuras da Igreja, que sempre procuraram servir-se dos mais simples, que sempre acreditaram nos homens comuns.




Deixo algumas das citações de Chesterton, para lembrar o ponto de vista da fé católica:

“O ponto fraco de toda a teoria de Carlyle sobre a aristocracia reside na sua frase mais conhecida. Carlyle disse que a maioria dos homens são uns tolos. O cristianismo, com um realismo mais certo e reverente afirma que todos os homens são tolos. Esta teoria é muitas vezes chamada a doutrina do pecado original. Também pode ser chamada a doutrina da igualdade entre todos os homens. No entanto, o ponto fundamental é apenas este: quaisquer que sejam os perigos morais graves ou primários que possam envolver o homem, envolvem todos os homens. Todos os homens podem ser criminosos, se tentados, todos os homens podem ser heróis, se inspirados. E esta doutrina destrói a crença patética de Carlyle (ou a crença patética de qualquer um) na elite de pensadores. Não existe nenhuma elite sábia. Toda a aristocracia que tenha existido ou que exista, se porta, no essencial, como uma pequena maralha.”6

“O mundo moderno não distinguirá entre questões de opinião e questões de princípio; e acabará por tratar a ambos como meras questões de gosto.”7

“Se eu tivesse um único sermão para pregar, seria um sermão contra o Orgulho. Quanto mais conheço da vida, sobretudo da vida moderna, adquirida por experiência, tanto mais fico convencido quanto à veracidade da antiga tese teológica; a de que todo o mal se iniciou com uma atitude de superioridade. Um momento em que, podemos afirmar, os céus se estilhaçaram como um espelho, por existir um escarnecedor no Céu. A primeira conclusão a retirar sobre este assunto é bastante curiosa. Ela é uma das mais descartadas em teoria e mais aceites na prática. Os intelectuais e os homens modernos acreditam que tal conceito teológico é uma relíquia do passado; e, tomada como conceito teológico, é-lhes de facto estranho.

Mas, na verdade, está-lhes demasiado próximo para que o possam ver.

Faz-lhes tão parte da mente, da moral e dos instintos, poderia mesmo dizer dos seus corpos, que a tomam como adquirida e agem em conformidade sem sequer pensar no assunto. É na realidade a mais comum de todas as ideias morais; e no entanto, é praticamente desconhecida como ideia moral. Nenhuma verdade é tão remota como verdade e tão próxima como facto.”8



“Era uma marca da arte do passado, especialmente da arte da Renascença, o facto de que o grande homem era um homem. Era um homem extraordinário, mas apenas no facto de ser um homem comum (ordinary) com algo extra. Shakespeare e Rubens eram exatamente como o homem comum: comiam e bebiam, faziam projetos, morreram. Mas o típico artista moderno faz questão de ser uma criatura exótica e separada, que se alimenta e sente de um modo que lhe é apenas particular...existem então duas concepções antagónicas do génio: o algo mais e o algo diferente.”9



“Se um homem está genuinamente acima dos seus semelhantes, a primeira coisa em que acredita é na igualdade do homem. Isso está patente naquela passagem de estranha e inocente racionalidade em que Cristo se dirige à multidão:

- Qual é o homem que tendo perdido uma ovelha das cem que possui, não abandona as noventa e nove e se lança em busca da ovelha perdida?

- Qual é o homem que se o seu filho lhe pede um pão, lhe dá uma pedra; ou se lhe pede um peixe, lhe dá uma serpente?

Esta simplicidade, esta quase camaradagem prática é produto das grandes mentes.”10

“A cortesia não se destaca das outras virtudes; antes pelo contrário, é uma qualidade que se encontra em todas elas. Tem algo que ver com reverência, humildade e castidade. É moldada pela caridade, o molde de todas as virtudes, para a qualidade da misericórdia. É a beleza de uma vida de valor e generosa. A cortesia é, acima de tudo, reverência para com o seu semelhante. Num cavalheiro cristão, é o hábito tornado possível pela fé e pela caridade, um olhar que vê em todo o homem, grande ou pequeno, a brilhante imagem da Trindade, um irmão pelo qual morreu Cristo. O indivíduo cortês tem uma atitude de «adoração» para com o seu semelhante: por pequenas atitudes de gentileza, ele realça a sua importância, a sua dignidade, como pessoa humana. No rito do casamento, “com o meu corpo eu te adoro”, rende-se cortesia à esposa no próprio acto da consumação do amor pelo matrimónio. O cavalheirismo e o decorrente respeito são a própria essência do amor do noivo. A cortesia está intimamente ligada à humildade.”11

“Sinto uma gratidão profunda para com a Igreja Cristã histórica, com o seu catálogo de santos incógnitos e banais. Presto-lhe homenagem, porque se ergue praticamente só, entre todas as outras instituições da Terra, como uma instituição que acha ser digno gravar em mármore para sempre os nomes de homens bastante ignorantes, apenas pelo facto de eles serem bons. Penso que nos tornámos deformados, na nossa admiração desproporcionada pela mera inteligência; às vezes apenas pela cultura.”12





António Campos



Notas:

O texto é em grande medida uma sinopse do texto de James Wilson, Nietzsche and Equality.

1 – Nietzsche. Gaia Ciência.

2 – Nietzsche. Para Além do Bem e do Mal.

3 - Nietzsche. Genealogia da Moral.

4 – James Wilson. Nietzsche and Equality.

5 – Paul Ricoeur. O Si Mesmo como Outro.

6 – Chesterton. Thomas Carlyle, Twelve Types.

7 - Chesterton, The New Witness, 1919.

8 - Chesterton, If I Had Only One Sermon To Preach.

9 – Chesterton. Introduction to Famous Paintings, The Soul of Wit.

10 - Chesterton, Hereges.

11 - G. K. Chesterton, Laughter and Humility.

12 - G. K. Chesterton. The Darkness of Virtue, Daily News, 28 de Julho de1906.




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