domingo, 30 de agosto de 2015

Aplanando o Caminho Para a Nova Religião





Ao encerrar a tese do socialismo1 como religião determinista vamos incidir em dois aspectos
fundamentais: a família e a teologia.
O socialismo tem natureza prometaica, logo mitológica, e para se impor teria que romper com o padrão religioso onde nasceu: o cristianismo. Como dizia Chesterton, um novo profeta tem sempre que criticar a religião vigente. A família é a própria definição de Deus e a filiação é a própria relação com o homem. A família encerra assim os dois sentidos fulcrais de toda a relação: o horizontal e o vertical.



A Família


Marx e Engels viram que jamais se poderia constituir uma sociedade sem classes se a família fosse a célula fundamental da sociedade. A família “burguesa” está então no cerne da negação. Não existe qualquer interesse em distinguir a família burguesa da Inglaterra vitoriana (muito parecida com a família actual no ocidente) da família católica – nos países de raiz católica a propriedade encontrava-se muito mais distribuída do que em Inglaterra.


“O núcleo, a primeira forma de propriedade reside na família, em que a mulher e os filhos são escravos do marido. Esta forma de escravatura na família é a primeira forma de propriedade…”2


A discussão sobre a condição do homem começa então com…a mulher.3
A mulher e o homem têm uma relação dialética em que a mulher representa o proletariado e o homem a burguesia.


“A mudança de uma época histórica pode ser sempre determinada pelo progresso da mulher para a liberdade, porque na relação homem-mulher, do forte para o fraco, a vitória da natureza humana sobre a brutalidade é evidente. O grau de emancipação da mulher é a medida natural de toda a emancipação.”4


Mas é Engels, o aristocrata vitoriano das caçadas à raposa, que tem o mais acutilante insight ao dizer que a colocação da mulher no mercado de trabalho favorece a promiscuidade sexual, o eclodir de filhos ilegítimos e a inversão de papéis, quando a mulher trabalhadora tem o marido em casa, desempregado, a cuidar dos filhos. Mas tal só acontece porque se segue a mesma lógica dialética de dominador-dominado.6


Como equilibrar esta dialética? Onde está a síntese?


Marx afirma que com a abolição da propriedade privada a abolição da família se torna evidente:

“A Revolução não derrubou todas as tiranias; os males que existam no poder despótico continuam a existir na família. Aqui residem todas as causas que levam à revolução.”7
Se a história avança dialética e deterministicamente em direcção ao futuro, também a família se deve modificar.
“A relação entre os sexos será assunto privado e não mais familiar. Tal ocorrerá na sociedade comunista porque ao abolir a propriedade privada e ao retirar as crianças aos progenitores, educando-as numa base comunitária, removem-se as bases do casamento tradicional: a dependência, baseada na propriedade privada, da mulher para o homem e das crianças para os pais.”8




A família do futuro não terá mais conflito, uma vez que deixa de existir:

“Com a passagem dos meios de produção para o colectivismo, a família deixa de ser a célula económica da sociedade. A lide doméstica é transformada em indústria social. O cuidado e a educação das crianças torna-se um assunto público. A sociedade toma conta de todas as crianças por igual. Então, a preocupação com as consequências morais e económicas, o mais importante factor que impede uma mulher de se entregar completamente a um homem que aprecie, desaparecem. Será isto o início de um aumento do mais desregrado contacto sexual e, com ele, um enfraquecimento da consideração pública pelo valor da virgindade e da vergonha da mulher? Será que a prostituição pode desaparecer deste modo sem arrastar consigo a monogamia para o abismo?”9


“A indissolubilidade do matrimónio resulta das condições económicas exageradas pela religião. (…) A duração do amor sexual entre dois indivíduos varia muito de indivíduo para indivíduo, sobretudo entre os homens. O cessar do afecto ou o seu deslocamento para uma terceira pessoa, torna o divórcio uma bênção.”10


Engels possuía aquela visão vitoriana burguesa, evolucionista, da família, que também se encontra presente no livro de Wells, Um Perfil da História: no início a família seria matriarcal, constituída por uma espécie de amazonas que escolhiam o macho a seu belo prazer – um misto de abelha mestra com viúva negra. Seguidamente a família seria uma amálgama promíscua, depois a amálgama proibiria o incesto apenas para reduzir as doenças decorrentes da consanguinidade. A monogamia seria então o resultado da agricultura e da religião e representaria a dominação do homem pela mulher.9




A evidência histórica já tratou de desmentir esta visão fantasiosa de Engels. Aliás qual é o homem que no seu íntimo mais pérfido não sonha viver numa sociedade de amazonas onde ele é um objecto de prazer? Não é esta a pura essência do egoísmo?


A poligamia e não a poliandria é expressão de algumas sociedades primitivas e de algumas sociedades já civilizadas. Não foi precisamente a sociedade judaica e depois a cristã a restringirem esse “direito” dos homens? E não foi essa “liberdade” conferida a reis e a burgueses da época moderna? Não foi o islamismo a recusa de tal restrição dentro das confissões monoteístas? E como se pode comparar a condição da mulher no mundo judaico e cristão com a do mundo islâmico?


A monogamia não restringe a mulher; ela força o homem ao compromisso. Pela monogamia o homem tem que se relacionar com um outro ser humano em toda a sua dimensão; o casamento não se pode reduzir a sexo grátis e existe o compromisso perante a educação dos filhos. Era precisamente o adultério e a duplicidade vitorianos a expressão mais pura da desumanização de tal relação.


Engels, o bon vivant vitoriano das caçadas à raposa, não encontrou até ao dia da sua morte por cancro da laringe, uma solução final para a família. Antes deixou a porta aberta para que outros libertários completassem a obra, desde Freud a Simone de Beauvoir, passando pela Escola de Frankfurt e culminando em António Gramsci. Ninguém como Gramsci entendeu que a opressão dos trabalhadores cristãos jamais os lançaria na rota do comunismo; pelo contrário, fortaleceria o papel da mulher na família e a sua devoção a Cristo. Para construir uma nova sociedade e uma nova crença antropocêntrica, havia primeiro que derrubar o cristianismo antes que o capitalismo.
Gramsci deu o seu princípio: “os marxistas devem começar por influenciar a cultura conquistando os intelectuais, os professores, ocupando a imprensa e os media, as editoras – o modelo seria o da reacção dos jesuítas à Reforma. Os marxistas deveriam criar “uma cultura capilar” atractiva que infiltrasse o meio universitário formador da classe económica e política, sobretudo no meio das ciências sociais.


Explica-se assim a questão da dissociação entre o fracasso económico do marxismo e o seu aparente sucesso na desintegração da família. A sociedade capitalista anglo-americana aplicou toda a força e determinação para combater o comunismo como modelo económico, mas usou as suas ideias para combater a família. O exemplo é a revolução sexual de Kinsey, financiada pela fundação Rockefeller.11

 “…Houve um grande progresso no último congresso dos sindicatos da América, onde as mulheres trabalhadoras foram colocadas em perfeita igualdade. Os ingleses e ainda mais os franceses estão dependentes de um espírito de provincianismo. Qualquer pessoa que saiba um pouco de História sabe que as grandes mudanças sociais se tornam impossíveis sem o fermento feminino.”12

Portanto, o liberalismo concorre com o socialismo na desapropriação da família como célula da sociedade, em nome da liberdade do homem.




Recentemente uma das críticas mais populares à família cristã prende-se com a definição de Paulo na Carta aos Efésios 5, 22-25, sobre como as mulheres devem ser submissas aos seus maridos. Ouve-se esta citação repetidamente. Dir-se-ia que foi construída por Paulo propositadamente para fazer a felicidade dos cépticos. Porém, sugere-se aos amantes da verdade a continuação da leitura. Revela-se então que o homem deve amar a sua mulher como Cristo se entregou pela Igreja. Cristo serviu até ao fim, rezando, chorando, vacilando, morrendo…se o homem servir a sua mulher deste modo, dificilmente se poderá considerar que a mulher seja sua escrava.


Podem construir-se todos os modelos possíveis de família, colocar qualquer minoria no palco sob holofotes, fazer experiências sociais e pseudo-científicas teses de doutoramento sobre como reinventar a família. No final, encontraremos os velhos homens e mulheres, a mesma face feminina que enche todo o intelecto do rapaz e lhe rouba o sono, os mesmos ensaios de declaração frente ao espelho e os mesmos sucessos e fracassos, o mesmo arrebatamento e a mesma sensação de felicidade e completude, porque “eles foram feitos um para o outro”, literalmente “uma feita do outro”, e portanto serão sempre uma só carne, seja qual for a utopia social do momento. E quando a encontrarmos a ela, sempre nos ocorrerá a figura dele…E os poemas dos nossos pais ainda serão lidos e apreciados no futuro, enquanto que os nossos secarão no calor do próximo Verão.





António Campos



1 Deve distinguir-se o socialismo como construção filosófica daquilo a que se chama no mundo ocidental socialismo democrático. Contrariamente ao socialismo, o socialismo democrático é uma construção intelectualmente pobre, de natureza e origem essencialmente capitalista, combinando o liberalismo moral (quase um utilitarismo) e o relativismo, com um Estado filantrópico. A sua origem é anglo-americana e tem dois objectivos ou, pelo menos, um objectivo e uma consequência: deter o avanço do socialismo na Europa, de leste para oeste, e esvaziar de conteúdo e significado a democracia cristã e a doutrina social da Igreja. Não nos ocuparemos dele.



2 A Ideologia Alemã.

3 Op. Cit.

4 Trabalhos de Marx e Engels: A Sagrada Família, 1844.

6 Engels, O Estadio da Classe Trabalhadora na Inglaterra.

7 Trabalhos de Marx e Engels: A Produção Total.

8 Engels, Princípios do Comunismo, O Manifesto.

9 Engels, A Origem da Família, Propriedade Privada e Estado, 1884.

10 Op. Cit.

11 Agostino Nobile, Governados Pela Mentira.


12 Marx, Cartas ao Dr. Kugelmann, 1868.

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