segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Notícias de G.K. Chesterton



Um dos maiores mistérios do casamento é que um homem completamente inútil como eu possa ser por momentos indispensável.



A publicação suiça L’Écho Magazine dedicou, pela pena do seu redactor-chefe, Patrice Favre, o seu último editorial à possível beatificação de G.K. Chesterton. Um eco chestertoneano particularmente bem-vindo e que demonstra mais uma vez o excelente acolhimento que tem esta notícia. Com toda a justiça, Patrice Favre de facto realça:

Há algo de intrigante na sobrevida de Chesterton. Os seus livros, que ele qualificava, com alguma ironia, de informes e amadores, exigem um certo esforço para serem apreciados. A sua apetência pelos paradoxos, que o levou a dizer que as mulheres são demasiado nobres e inteligentes para perderem o seu tempo com a política, enfureceu as feministas. Mas existe nele algo do cristão que o nosso tempo necessita.

Existem de facto muitos elementos em Chesterton- pensemos na sua gratidão perante a vida e na saúde moral exuberante de que foi sempre testemunha, apesar de uma existência afectada também ela pelo sofrimento e pelas dificuldades1 - de que hoje bem necessitamos.


Deixemos a palavra ao redactor-chefe da L’Écho Magazine:

Eis agora! A notícia da agência Zénit de 8 de Agosto anuncia que Mons. Peter Doyle, bispo de Northampton, Inglaterra, abriu a investigação conducente à beatificação de Gilbert Keith Chesterton (1874-1936). Este jornalista, que foi um interlocutor brilhante e temido, inventor do padre detective, Padre Brown, deixou dezenas de livros que não se encontram em francês. Após alguns anos, um site permite aos francófonos o acesso a este homem que La Croix apresentou em 2010 como «um cavaleiro da fé, tipicamente inglês na sua cultura, nas suas referências, no seu humor».É verdade que um inquérito pedido por um bispo ainda não é uma auréola. Ainda não é amanhã que veremos a imagem formidável deste gigante nos altares, algo que o deixaria decerto feliz.


Cortesia de Amis de Chesterton, tradução para o português: António Campos. Revisão e notas: Anália Carmo.


1 Nota dos editores da Sociedade Chesterton Portugal: Chesterton casou contra a vontade dos pais e da sogra. A sua cunhada e o seu irmão nunca gostaram de sua mulher e sempre mantiveram com ela mau relacionamento. Não puderam ter filhos. Chesterton assistiu à morte de sua irmã de 8 anos, aos 3 anos de idade, e à péssima reacção do seu pai; à morte da sua cunhada, irmã de Frances; à morte do seu irmão. A sua mulher teve várias crises depressivas e outras doenças. A sua esgotante digressão na América 2, em 1930 e 1931, deixou-o sem grande rendimento porque uma depressão intercorrente de sua mulher e o respectivo cancelamento de conferências obrigou-o a indemnizar o seu promotor praticamente no mesmo montante que havia recebido. Ainda assim, sempre interrompeu o seu trabalho para assistir a sua mulher, tendo escrito a John O’Connor que era nessas alturas que percebia melhor as suas limitações e a sua utilidade:

“Um dos maiores mistérios do casamento (que não poderia deixar de ser um sacramento e um muito extraordinário) é que um homem completamente inútil como eu possa ser por momentos indispensável. E a maior singularidade, que convido a que você explique em termos místicos, é a de que um homem nunca se sente tão pequeno como quando ele sente que é verdadeiramente necessário. Você compreende este rabisco, duvido que mais alguém perceba.”





2 Montréal, Toronto, Indiana, Pittsburgh, Philadelphia, Cincinnati, Cleveland, New York, Chicago, Detroit, Madison, Portland, Vancouver, San Francisco, Los Angeles. 
Doutor honoris causa em Indiana, New York, Pittsburgh, Philadelphia, Montréal. 
Nomeado “Grande Homem do Século” em Philadelphia.



segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Santa Joana e a Nação


“Sim, Santa Joana estava certamente a dirigir o mundo, mas estava a dirigi-lo para longe do governo mundial único!”




Nesta crónica de 12 de Abril de 1924, Chesterton realça a ambiguidade dos intelectuais
modernos: uma vez que não convém reconhecer que a inspiração de Joana d’Arc fosse de origem divina, torna-se apelativo afirmar que a sua inspiração era de natureza anti-clerical.
Anatole France afirmaria que ela era um instrumento de uma imensa conspiração clerical; Bernard Shaw considerou-a uma rebelde anti-clerical.

Aquele popular céptico francês tem a ideia luminosa de insinuar três coisas:

1- Que uma pobre camponesa não pode ser tão inteligente,

2- Que uma mulher não pode ser tão corajosa ou original,

3- Que o sentimento popular não pode de modo algum estar presente numa mente genial.


“Um escritor moderno diria sobre Joana d’Arc: a credulidade popular da Idade Média levou os homens a pensar que ela adivinhou quem era o Delfim de França por inspiração divina.
Porque é que o escritor moderno não escreve: a credulidade da Idade Moderna leva-nos a concluir que uma pobre camponesa semi-analfabeta teria muito facilmente obtido uma audiência de natureza político-militar com o Delfim de França?”

Hoje em dia, diz Chesterton, ninguém chama Joana d’Arc fanática ou bruxa, por receio de passar por ignorante ou tolo. Se existe uma personagem histórica que, ao longo do seu percurso, conquistou os seus inimigos, essa é sem dúvida Santa Joana de Orléans.

“Voltaire, o mais famoso céptico do séc. XVIII, insulta ferozmente a heroína do séc. XV. O mais famoso céptico do séc. XIX, Anatole France, opta por a infantilizar. Shakespeare, no séc. XVI, um romântico, é alheio ao seu romance. Shaw, no séc. XX, um confesso anti-romântico, fascina-se pelo seu romance.

É o que se chama o mundo ser iluminado pelo processo do tempo.”

Protestantes e católicos, agnósticos e ateus, rendem-se a esta estranha amazona. Isso acontece porque Joana era uma líder à frente do seu tempo. Se ela é hoje considerada uma reformadora, qual era a sua reforma? Qual era a coisa inovadora que Joana trouxe contra todas as coisas velhas da sua própria religião e civilização?
Para Chesterton a resposta só pode ser uma e é hoje reconhecida por todos: A ideia nova que ela sustentava era a ideia de nação, a ideia de nacionalidade:

“Joana, tão original em vários capítulos, foi supremamente original neste: ela apelou do início ao fim à França, a algo que era maior que a unidade feudal mas menor que a unidade católica.
Desde a sua morte que a nação é um assunto sagrado. De facto, o patriotismo tem sido sagrado mesmo para muitos para quem nada mais é sagrado.”


Muitos dos seus novos admiradores não concordam neste ponto:

“Aqueles que anseiam por um sistema internacionalista, que ignore bandeiras e fronteiras, deveriam retornar à cristandade que existia antes de Joana d’Arc.”

Chesterton sublinha que não têm legitimidade aqueles que apelidam Joana de progressista, pelo facto de ela ter sido oprimida por bispos e advogados. Para Chesterton, Joana estava mesmo do lado a que eles chamam reacção. Ela era a padroeira do nacionalismo, pois os santos padroeiros do internacionalismo podem ser encontrados, não após mas antes de Joana d’Arc, uma vez que o mundo em que o cristianismo cresceu era um mundo cosmopolita e internacionalista- era o Império Romano.


“Era praticamente o que Mr. Shaw chama o governo mundial; e é curioso que Mr. Wells deseje tanto um governo mundial único e odeie o único governo mundial que alguma vez existiu. É como se Mr. Wells sempre que tivesse uma das suas utopias a passasse logo a detestar. Sem dúvida que a Igreja surgiu entre o governo mundial de Roma. Nas fases mais precoces da Idade Média, era tão cosmopolita como Roma.”

Para Chesterton, a Igreja nascente cintilava com sábios e santos verdadeiramente cosmopolitas, que falavam da Humanidade como uma irmandade, e que nunca tinham ouvido falar do conceito de nação.


“Santa Joana d’Arc é a prova de que o espírito cristão pode criar nações a partir da cristandade e santos para essas novas unidades. O direito de certos grupos europeus se considerarem como uma unidade última, como grupos que possuem diferentes almas populares.
Sim, Santa Joana estava certamente a dirigir o mundo, mas estava a dirigi-lo para longe do governo mundial único!”

Proféticas, estas palavras de Chesterton, num tempo em que se apaga a tradição, a soberania das nações, a sua independência económica; e em que por toda a parte, nos think tanks e nos media, somos bombardeados com a nova ordem mundial…




António Campos




sexta-feira, 9 de agosto de 2013

O Primeiro Passarinho na História



O pioneiro católico tem, no mundo moderno, sempre o mesmo destino; ser o primeiro e ser esquecido.


Retirado de The Thing, 1926, este ensaio de Chesterton sobre Joana d’Arc e a Igreja Católica realça dois pontos fundamentais:

1- A Igreja é considerada pelo mundo moderno, lenta e conservadora, ultrapassada pelos acontecimentos.
2- Na verdade o mundo moderno é muito menos preciso, quer quanto ao tempo quer quanto à substância, na análise de factos históricos relevantes.

Para Chesterton a fundamentação reside num ponto: O pioneiro católico tem, no mundo moderno, sempre o mesmo destino; ser o primeiro e ser esquecido.

Chesterton afirma que a reabilitação de Joana d’Arc veio muito rapidamente, dez anos após a sua
morte em 1421, e que a reabilitação do mundo é muito mais lenta, imprecisa e omissa. Dá os exemplos de Sócrates e a república ateniense, de Savonarola e Florença, de William Wallace e Eduardo III, Thomas Moro ou Washington e a Inglaterra.


O caso da reabilitação de Joana d’Arc é um dos raros casos de reabilitação na História, pois há vários casos em que um crime judicial fez pagar com a vida a heróis e mártires, dando razão ao poeta J R Lowell (1819-1891): “A verdade está sempre no cadafalso; o erro sempre no trono.”
A acusação de que a Igreja Católica corre atrás do tempo, na verdade significa que a Igreja não vai na moda do tempo, reflecte e analisa os assuntos exaustivamente, não os toma superficialmente.

“Estar no movimento moderno significa estar na moda, sempre omnipresente e opressiva e depois rapidamente vazia e esquecida.”

No mundo laico, é apenas quando as rivalidades e a ambição são extintas, quando o interesse e a influência são esquecidos, que aparece uma sincera vontade de reabilitação do inimigo morto. Por isso, os séc. XIX e XX são românticos com Wallace, fazem estátuas a Washington ou livros a Joana d’Arc. Este é apenas mais um exemplo de como o mundo é mais lento do que a Igreja a reparar os seus erros.

A seguir Chesterton examina o que grandes homens do passado disseram sobre Joana d’Arc:

“Shakespeare, o maior de todos, infelizmente insultou-a, como vulgo insular, no conto Henrique VI. Mas existem outros com menos desculpas do que Shakespeare:
Voltaire, um francês, admirador dos heróis franceses, confesso reformador e amigo da liberdade, julgou-a de um ponto de vista restrito de um anti-clerical. O que Voltaire escreveu sobre Santa Joana nem vale a pena reproduzir.
Byron exaltava a magnífica e heróica luta das nações pela liberdade. Era o menos insular dos poetas ingleses e era o que melhor compreendia França e o Continente; aliás ainda hoje lá é admirado e reconhecido. Ele chamou Santa Joana de prostituta fanática. Este foi o tom geral dos homens de História e de cultura, ensinadas na idade da razão.
Belloc sublinhou que até mesmo os católicos, embora não duvidem da moralidade, duvidam da miraculosidade de Santa Joana.
Shiller foi empático, embora sentimental, piegas. Portanto, perdeu a perspectiva.

Foi só no séc XX que os homens finalmente compreenderam Joana d’Arc:

Primeiro, Mark Twain. Apesar de ser como um ianque na corte do rei Artur, tem todo o crédito de alguém que, na recente cultura de um novo país, teve o génio de perceber a chama da cripta de Rouen, que tantos cépticos consideraram fria.
Depois veio Anatole France, um céptico que sob o disfarce da candidez, insultou ainda mais Joana d’Arc do que Voltaire.
Finalmente Bernard Shaw, com um ponto de vista errado sob múltiplos aspectos, mas sem dúvida comprometido e sincero, na peça Santa Joana. Esta heroína teve que esperar cinco séculos por Bernard Shaw. Ninguém pode afirmar, sem vergonha na cara, que humanistas e racionalistas foram mais rápidos na análise.”

Para Chesterton este exemplo da avaliação de Joana d’Arc é um padrão. Um exemplo de outras avaliações erróneas por parte dos modernos. Considera o caso dos jesuítas que sofreram perseguições e enforcamento, por estarem à frente do seu tempo.
“Eles reconheceram os problemas da conduta moral, não tanto sobre a lei moral em si, mas se ela se aplicaria sempre a circunstâncias particulares.”

Um dos exemplos que Chesterton dá é o facto de que os jesuítas colocaram em causa se o direito divino da realeza deveria beneficiar certos conspiradores. Outro exemplo é o facto de Pascal os ter criticado por eles defenderem que, em certas circunstâncias, uma rapariga poderia casar contra a vontade dos pais. Chesterton afirma que os jesuítas tentaram incorporar estas excepções numa lei moral e que hoje teriam todos os novelistas do seu lado.
“Duzentos anos mais tarde, os modernos adoptaram estes valores, mas não construíram nenhuma lei, antes um mundo de excepções.”

Chesterton lembra que o milionário puritano Penn, que deu o nome ao estado americano da Pennsilvania, é lembrado como o pioneiro da atribuição dos primeiros direitos aos índios, mas ninguém lembra Las Casas, o apóstolo dos índios, que viajou com Colombo e que dedicou toda a sua vida à evangelização dos índios e a lembrar que eles também eram filhos de Deus.

“Fê-lo num tempo em que ninguém no norte daria ouvidos a uma história dessas vinda de um santo de Espanha.
Eu penso que esta é a história de um pioneiro católico: ser o primeiro e ser esquecido.”




António Campos

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A Donzela de Orleans, 1908

Author: G. K. Chesterton

Tradução: António Campos



Os nossos sonhos, os nossos desejos são sempre, insisto, bastante práticos. É a nossa prática que é um sonho.



Neste segundo texto, Chesterton fala-nos da atitude daqueles que, perante o inacreditável, não conseguem acreditar: 

Há um certo tempo li "La Pucelle” de Voltaire, um sarcasmo violento sobre a pureza
tradicional de Joana d’Arc, muito porco e divertido. Não voltei a pensar nele durante muito tempo, mas ocorreu-me de novo esta manhã porque comecei a folhear o novo livro “Joana d’Arc” desse grande e divertido escritor, Anatole France. Encontra-se  escrito num tom paternalista, uma espécie de reverência melancólica; nunca esquece a cortesia e a polidez, como se um senhor distinto protegesse uma moça camponesa por entre a multidão. É sempre respeituoso, quer para com Joana quer para com a sua religião. Eu, sendo um profundo apaixonado de Joana, a Donzela, detive-me a comparar ambos os métodos e confesso que prefiro o ordinário de Voltaire.


Quando um homem da escola de Voltaire quer acabar com um santo ou um herói religioso, ele diz que essa pessoa é um tolo comum, ou uma fraude vulgar. Mas quando um homem como Anatole France quer acabar com um santo, ele engloba o santo como se ele pertencesse ao seu mesquinho jet set literário. Voltaire leu a natureza humana em Joana d’Arc, mesmo que fosse apenas a parte mais brutal da natureza humana. Pelo menos não a transpôs para a natureza voltaireana. Mas o Sr. France transpôs a natureza franceana para Joana d’Arc- toda a frivolidade da educação, toda a natureza distante do moderno homem de letras.

Há um livro que me ocorre claramente, embora ninguém o tenha mencionado. Trata-se de “Vie de Jesus” de Renan. Também demonstra a mesma atitude: a de que se não se ataca a cristandade, pode-se pelo menos infantilizá-la. A minha tendência natural seria exactamente o oposto. Se eu não acreditasse na cristandade, eu seria o mais ruidoso arauto de Hyde Park. Nada é demasiado grande que um homem corajoso não ataque, mas existem coisas demasiado amplas para serem infantilizadas.


Devo dizer que o mero método histórico me parece excessivamente irracional. Não tenho qualquer conhecimento de história, mas tenho tanto uso da razão como Anatole France. E, a mim parece-me, o mero critério histórico é muito insuficiente. Se existem coisas irracionais, então o método Renan-France de lidar com histórias sobrenaturais é inteiramente irracional. O método consiste no seguinte: explicam-se histórias sobrenaturais com fundamento, inventando histórias naturais sem fundamento algum.

Suponhamos que se toma a história do João Pé de Feijão: pode não se acreditar legitimamente que ele trepou pelo feijão até ao céu. Mas o que estes literatos afirmam é o seguinte: a hereditariedade de João, sem dúvida filho de uma mercadora de fruta e de um padre, explica a sua tendência para ver no pé de feijão um acesso para o céu. Além disso, deve ter encontrado algum mágico da Índia que lhe deve ter explicado como se consegue fazer crescer um pé de feijão até ao céu. E vai daí, numa certa noite propícia estes dois amigos recentes semeiam o feijão que cresce até ao céu.

É assim que Renan e France escrevem, só que escrevem melhor. Mas é aí que um racionalista como eu se torna um pouco impaciente e se sente impelido a dizer: “Espera aí, meu caro, o que sabes tu da hereditariedade ou da psicologia do João? Não se conhece nada do João, excepto que algumas pessoas afirmam que ele trepou por um feijão até ao céu. Ninguém repararia nele se tal não tivesse acontecido. Tens que o considerar em termos da religião do pé de feijão, não podes reduzir a religião do pé de feijão exclusivamente a ele. Nós temos um conteúdo para a história e podemos acreditar nele ou não; o que nós não temos é conteúdo para inventar uma outra história.”

Não me parece exagero dizer que este é o método utilizado pelo Sr. Anatole France no que concerne à análise de Joana d’Arc. Uma vez que o seu milagre é inconcebível para o seu materialismo clássico, ele despacha-a para o mundo dos contos com o João Pé de Feijão. Ele tenta inventar uma história real para a qual não se encontra nenhuma evidência. Ele encontra uma explicação científica desprovida de qualquer espécie de prova científica. É como se eu dissesse (embora seja totalmente ignorante em botânica e química) que o pé de feijão cresceu para o céu porque o azoto e o árgon entraram nos cananículos secundários da corola. Falando mais claramente, aquela personagem descrita pelo Sr. France nunca existiu. Segundo ele, toda a energia e sabedoria de Joana terá vindo de um certo padre, do qual não existe nenhum registo nos múltiplos documentos da sua vida.

O único fundamento que encontro para a sua história é esse sentimento altamente democrático e engraçado de que uma moça camponesa não possui ideias próprias. É muito duro para um livre pensador ser sempre democrático. O escritor parece sempre esquecer o que significa a atmosfera moral de uma comunidade. Dizer que Joana colheu a sua visão, de uma virgem derrotando o mal, de um padre, é o mesmo que dizer que uma rapariga londrina com compaixão pelos pobres o aprendeu de um membro do partido socialista. Ela apenas o aprenderia se e quando o membro do partido o aprendesse.

Mas este é o método moderno: o método do céptico reverente. Quando encontra uma vida inteiramente inacreditável de uma perspectiva externa, então ele afirma conhecer o interior. Tal como Renan, o racionalista, que não encontrando sentido na maioria da vida pública de Cristo, construiu um sistema engenhoso sobre os seus pensamentos privados. Tal como Anatole France, que não podendo acreditar, segundo os seus princípios, no que Joana d’Arc fez, confessa-se seu amigo íntimo e pretende saber exactamente o que ela queria dizer. Não posso deixar de dizer que se trata de um modo muito racional de escrever a História; e, mais cedo ou mais tarde, vamos ter que arranjar um método mais sólido de lidar com estes fenómenos espirituais, nos quais a História se encontra manchada e serapintada como o céu com as estrelas.

Joana d’ Arc é suficientemente livre e bela, mas é mais sã do que muitos dos seus críticos e biógrafos. Não recuperaremos o bom senso de Joana até que recuperemos o seu misticismo. As nossas guerras falham porque se iniciam com algo de óbvio e visível- como chegar a Pretória pelo Natal. Mas a sua guerra resultou- porque se iniciou com algo selvagem e perfeito- os santos entregam a França. Ela colocou o seu idealismo no lugar certo e o seu realismo igualmente no lugar certo: nós, os modernos, temos ambos deslocados do seu devido lugar. Ela colocou os seus sonhos e os seus sentimentos nos seus objectivos, onde eles devem estar; ela colocou o seu pragmatismo em prática. Nas guerras imperiais modernas, tudo está invertido. Os nossos sonhos, os nossos desejos são sempre, insisto, bastante práticos. É a nossa prática que é um sonho.


Não nos cabe explicar esta criatura flamejante nos termos da nossa cultura cansada e litigante; antes devemos tentar compreender-nos no brilho destas estrelas fixas. Aqueles que lhe chamaram uma bruxa ardente do inferno eram muito mais sensíveis do que aqueles que a contam como uma donzela sentimental fabricada pelo padre da paróquia. Se eu tivesse que escolher entre as duas escolas dos seus inimigos difusos, eu alinharia com aqueles funcionários subtis que consideram a sua missão divina como infernal, em vez de alinhar com aqueles tios e tias rústicas que a consideram impossível.

(Texto de All Things Considered, 1908. Fotografias da Catedral de Orléans, cidade de que Joana d'Arc é padroeira, tal como de toda a França)

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

G.K. Chesterton sobre Joana d'Arc, Ortodoxia, 1908



Ela era pragmática, alguém que fez obra, enquanto que eles eram apenas teóricos que nada fizeram.


As areias do Algarve, entre o azul celeste e o azul turquesa do mar (esse Atlântico norte selvagem
que uiva e bate, das costas da Cornualha até às costas do norte e centro de Portugal, que se atrasa e amansa a sul, à entrada das colunas de Hércules), dão-nos o leito para fazer eco dos textos escritos por Chesterton sobre a fenomenal Joana d’Arc, heroína do mundo católico e do mundo latino.

Chesterton escreveu sobre Joana d’Arc pelo menos dez textos, em livros ou ensaios: no capítulo 3 de Ortodoxia, 1908; The Maid of Orleans, de All Things Considered, 1908; no Illustrated London News (em 23.06.1923, em 07.07.1923, em 12.04.1924, em 30.08.1924, em 25.07.1925, em 15.08.1925); Santa Joana e a Nação de 12 de Abril de 1924. Tal importância deriva de vários factores: Joana representa a fixação mais a norte da fronteira do mundo latino, o triunfo do direito sobre a usurpação, a construção definitiva do conceito de nação, o triunfo do cavaleiro sobre o progressista, a intervenção de Deus na História, o papel central da França na história da Europa. Nos próximos dias publicaremos extractos de alguns desses ensaios.

Iniciamos pelo texto de Ortodoxia a propósito da crítica de um livro do céptico Anatole France sobre Joana d’Arc:

Joana d’Arc não ficou imobilizada numa encruzilhada, quer rejeitando todos os caminhos como Tolstoi, quer aceitando-os a todos como Nietzsche. Ela escolheu um caminho e foi por aí fora, como um raio. Contudo, quando penso em Joana d’Arc, vislumbro tudo o que há de verdadeiro, quer em Tolstoi, quer em Nietzsche, em tudo o que existe de tolerável em cada um deles. Penso em tudo o que há de nobre em Tolstoi, o prazer das coisas simples, especialmente a compaixão, o gosto pelas coisas práticas da vida, a empatia pelos pobres, a dignidade da reverência.

Joana d’Arc tinha tudo isso, com esta grande diferença: ela para além de admirar a pobreza, era efectivamente pobre; enquanto que Tolstoi era apenas um aristocrata tentando desvendar o segredo da pobreza. 
E penso no que existe de coragem, orgulho e patético no pobre Nietzsche, na sua revolta contra o vazio e conformismo do nosso tempo, no seu grito pelo aprumo extático perante o perigo, na sua ânsia pela investida de grandes cavalos, no seu grito às armas. Bem, Joana d’Arc tinha tudo isso, e com esta diferença: ela não elogiava a guerra, ela combateu. Sabemos que ela não temia um exército, enquanto que Nietzsche, por tudo o que sabemos, até de uma vaca tinha medo. 

Tolstoi enalteceu os camponeses; ela era uma camponesa. Nietzsche enalteceu os guerreiros, ela era um soldado. Ela bateu-os a ambos, nos seus ideais antagónicos; ela era mais dócil do que um, mais violenta do que o outro. No entanto, ela era pragmática, alguém que fez obra, enquanto que eles eram apenas teóricos que nada fizeram. 

Era impossível que não me ocorresse que talvez ela - e a fé que professava - detivessem um qualquer segredo de unidade e utilidade moral, um segredo que se perdeu. E com essa ideia veio uma outra, mais grandiosa, e a figura colossal do seu Mestre atravessou o teatro do meu pensamento. 




António Campos