domingo, 27 de janeiro de 2013

A São Tomás, pela mão de Chesterton


     Está ainda na lembrança de muitos a velha regra, de boa e sã convivência, de não falar com desconhecidos e de só estabelecer assídua e natural conversação com as pessoas que nos sejam prévia e devidamente apresentadas. A introdução de novas amizades cabia a pessoa mais experiente e sabedora que nos franqueava a porta de novo conhecimento e nos dava notícia, muitas vezes de forma velada e discreta, das virtudes e interesses de esse estranho que deixava assim de o ser e, aos poucos, se entranhava na nossa vida.  Verdadeiro mestre de cerimónias é, de facto, G. K. Chesterton quando traz ao nosso encontro e ao futuro convívio figuras como S. Tomás de Aquino que ele tão bem soube conhecer e compreender, pela inteligência e pelo coração, e no-la soube transmitir e legar com a sua finura habitual e maestria inexcedível.

     Vivemos em plena época de sólidas e profundas contradições. Assistimos hoje à absolutização do relativismo, ao sistemático ataque à razão, pelos racionalistas, à intolerância dos tolerantes, à fanática fé dos ateus, à preocupação aparente com a queda da natalidade, quando se aceita e legaliza o aborto, à falsa defesa legal e teórica da família, ao mesmo tempo que se põe em causa o matrimónio, sacramento realizado pela vontade expressa de um homem e de uma mulher, como foi aceite e difundido em todas as culturas e civilizações durante milénios e no qual todos e cada um de nós nasceu e cresceu. É caso para perguntar que é feito do realismo e do natural bom senso de que o comum dos mortais é dotado à nascença. Ou deveria sê-lo. Temos, pois, que nadar contra a corrente, para não nos deixarmos submergir por ela. É um mero regresso ao senso comum, esse velho conceito medieval e sempre actual, communis sententia, cuja acentuada perda está em vias de transformar este nosso mundo num autêntico manicómio.

     Desde cedo foi São Tomás de Aquino considerado como um verdadeiro mestre do bom senso, Doutor Comum, Doctor Communis, como era conhecido. E daí a afirmação de G. K. Chesterton: Que o tomismo seja a filosofia do bom senso, o mesmo bom senso o proclama. Mas o que não existe no nosso mundo em abundância, bem pelo contrário, é exactamente o senso comum. Por isso, São Tomás não é um autor da moda. Mas, o que é a moda? Coco Chanel, uma autêntica especialista na matéria, deixou-nos uma elegante e certeira definição: a moda é precisamente o que passa de moda. São Tomás de Aquino, o mestre da filosofia perene nunca será, assim, um autor da moda. E ainda bem.

     Por isso, é muito reconfortante e, dia a dia, mais revigorante lermos ou relermos este livro de Chesterton. É cada vez mais necessária uma boa dose de realismo e o uso salutar da razão. Sobretudo para não entrarmos na actual onda de doutrinas insensatas e de conceitos sem nexo, onda que tudo cobre e leva, e em mera espuma se transforma, e na areia rapidamente se desfaz.

     Vamos, pois, de novo a São Tomás de Aquino. A São Tomás, pela mão de Chesterton.

                                        28 de Janeiro, Dia de S. Tomás de Aquino

 

                                                  António Leite da Costa
 

domingo, 20 de janeiro de 2013

Chesterton e a Alegria



Uma das maiores e mais importantes facetas de Chesterton é a sua relação com a alegria.

Para Chesterton a alegria tem algumas variantes fundamentais, mas em que todas, basicamente, consistem na gratidão.

Uma dessas matizes é expressa na graça de ter nascido. Na sua Autobiografia escreve“… Eu inventei uma teoria básica e mística. Consistia no seguinte: a mera existência, reduzida aos seus limites primários, era suficientemente extraordinária e excitante. Qualquer coisa entusiasma comparado com nada…”. É incomparável a sua definição de sol como “Se um fogo fixo pairasse no ar para me aquecer ao longo de todo o dia”, no seu poema “By the Babe Unborn”.

Continua, na sua ânsia de perdurar a criança que existia em si, que existe em cada um de nós. Afirma ainda os limites de tudo: "tudo me é permitido em troca de um pouco que me é negado, como na história da Cinderela". Ou, confinar-se ao tapete da cama e imaginá-lo como uma prancha no mar que é o resto do chão do quarto. Esta ideia de permissão-restrição encontra-se na criança que segue apenas por certas zonas do passeio e não por outras, quando segue na rua com a sua mãe. É expresso na ideia da vedação ou limite: “Quando queremos remover uma vedação devemos questionar-nos sobre o motivo porque terá sido ali colocada. 
Defendi os sagrados limites do homem contra os poderes ilimitados do super-homem.”



Para Chesterton nós devemos ser alegres apenas pela existência, num “mínimo místico de gratidão”. Essa alegria enche o coração da maioria das crianças porque elas ainda são novas neste mundo, porque para elas o mundo é tão fascinante como o reino da fantasia. Ir de férias com os pais ou os irmãos é como ir com Alice para o País das Maravilhas ou com Suzanne para Narnia. Muitas vezes imaginamos mundos maravilhosos e não nos apercebemos da maravilha que é o nosso mundo.

Ou ainda sobre o seu livro de ilustrações e contos, “The Coloured Lands”, diz esperar sinceramente que todas as crianças venham a estragar o livro pintando as ilustrações.Eu queria fazê-lo, mas os editores não me deixaram. Mas usem cores fortes, lindas, maravilhosas, porque os meus sentimentos são assim."









A moral dos contos de fadas: os contos de fadas não dão à criança a noção do mal, do feio, do medo, pois estes já estão no mundo e a criança tem noção da sua existência desde o início. Os contos de fadas dizem que existe sempre um S. Jorge que mata o Dragão, a derrota do monstro. Instrui que os terrores ilimitados têm limite, de que existe algo no universo mais místico que a escuridão e mais forte que o medo.



De Tremendas Trivialidades, no conto O Anjo Vermelho, Ed Aletheia 2010: 
“Dei-me conta de existirem seres humanos crentes de que os contos de fadas são perniciosos para as crianças,…que é cruel contá-los às crianças porque as aterrorizam. Do mesmo modo poderia argumentar que é cruel dar novelas romanescas às raparigas porque as fazem chorar…
A timidez da criança, ou a sua ansiedade, são inteiramente racionais; ela está alarmada com este mundo, porque o mundo é de facto um local alarmante. Desagrada-lhe estar sozinha, porque estar só é uma ideia realmente aterradora…Os contos de fadas não são, por isso, os responsáveis pela produção, nas crianças, de qualquer forma de medo; os contos de fadas não dão às crianças a ideia do mal nem do feio: essas ideias já estão na criança, uma vez que já estão no mundo. Os contos de fadas não dão à criança a ideia de fantasma. O que os contos de fadas dão à criança é a sua primeira ideia clara da possível vitória sobre o fantasma.

O bebé conhece intimamente o dragão, desde que tem imaginação. O que os contos de fadas lhe proporcionam é um S. Jorge capaz de matar esse dragão. 
O que os contos de fadas fazem é exactamente isto: acostumam a criança, por uma série de claras representações pictóricas, à ideia de que esses terrores ilimitados têm limites; de que esses inimigos informes têm eles próprios inimigos; de que esses inimigos infinitos do homem têm inimigos nos cavaleiros de Deus; de que existe algo no universo mais místico do que as trevas e mais forte do que o medo avassalador…Leia o conto mais horrível dos Irmãos Grimm - O rapaz sem medo - e verá o que quero dizer (existe um conto português chamado o João Soldado que tem grande analogia): trata-se de um conto em que as pernas de um homem caíram por uma chaminé abaixo e começaram a andar pela sala, após se reunirem aos outros segmentos do corpo que entretanto também tinham caído. O busílis da história não é o facto de ser aterradora, mas sim a particularidade de o herói não sentir medo disso…Se ainda não leu o final desse conto, vá e leia-o: é a coisa mais sábia deste mundo. O herói aprende finalmente a estremecer, ao escolher uma esposa que lhe atira para cima um balde de água fria. Nessa única frase há mais conteúdo acerca do significado do matrimónio do que em todos os livros sobre sexo que cobrem a Europa e a América.”




A mulher é outro tema de alegria. “Criticar-me por só ter casado uma vez é como criticar-me por só ter nascido uma vez”.


O desejo apaixonado de colocar o amor entre um homem e uma mulher em termos de Paraíso. A absoluta necessidade de se encontrar um sentido para a vida (Autobiografia, Ed Diel).

Schopenhauer imagina que as mulheres são as melhores encarregadas para cuidar das crianças, porque elas mesmas são "infantis, fúteis, limitadas"…É certamente estranho que o nome "filósofo" tenha sido dado a um literato - por mais brilhante que seja - capaz de defender a assombrosa ideia de que amamos aquilo a que nos assemelhamos. De facto, toda a teoria de Schopenhauer sobre a infantilidade das mulheres pode ser refutada com a mais simples e breve das respostas. Se as mulheres são infantis porque amam as crianças, então os homens são efeminados porque amam as mulheres.


Em “Os Disparates do Mundo”, Ed Diel: 
“Nada poderá algum dia superar essa enorme superioridade do sexo feminino que consiste em mesmo o descendente masculino nascer mais perto da mãe do que do pai. Ninguém que atente nesse tremendo privilégio da mulher pode acreditar, um instante sequer, na igualdade dos sexos…A carne e o espírito da feminilidade rodeiam a criança desde o nascimento como as quatro paredes da casa; até o mais insignificante ou o mais brutal dos homens foi feminizado pelo nascimento. O homem nascido de mulher tem os seus dias contados e cheios de misérias, mas ninguém pode medir a obscenidade e bestial tragédia que seria a herança do monstro homem nascido de homem."








Como adulto a alegria esteve sempre patente. Apreciava a boa comida e bebida. Fumava e era contra a cruzada anti-tabágica. Mas defendia limites; o tal tudo nos é permitido em troca de um pouco que nos é negado, isto é, não transformar o prazer associado às coisas elementares à vida em vício. “Devemos agradecer a Deus por cerveja e por vinho Burgundy, evitando beber em excesso.” Conclui que a maneira mais apropriada de expressar gratidão a essa entidade é cultivar humildade e discrição. “O homem livre tem controlo de si. Pode prejudicar-se pelo excesso de comida ou bebida, pelo vício do jogo. Se o fizer é um idiota, e possivelmente uma alma perdida; mas se ele não o puder fazer, não é mais livre do que um cão.”


Admirava os países do Sul, onde existem padres, e as pessoas se riem alto, cantam e dançam em festas e usam roupas garridas.


"É possível que Deus fale todas as manhãs para o sol: 'Brilhe de novo'; e todas as noites, à lua: 'Saia mais uma vez'... É possível que ele tenha o apetite insaciável de uma criança; pois nós humanos pecamos e envelhecemos, enquanto o nosso Pai é mais jovem do que nós". 
Passo a passo, Chesterton ajuda a renovar o apetite pela vida.


“Só o rico pode dar-se ao luxo de ser vadio. Para os não demasiado pobres, o lar é a única zona de liberdade ou, melhor, o único território anárquico. Em casa pode comer as refeições no chão, se isso lhe der na real gana. Eu faço isso muitas vezes – dá uma curiosa, infantil, poética e campestre sensação. Encontraria as maiores dificuldades se o tentasse fazer numa casa de chá…Para o homem simples, trabalhador activo, a casa é o único pedaço de terra livre num mundo de regulamentos e trabalhos forçados…A classe culta grita para que a tirem de lares decentes, enquanto a classe proletária uiva para que a deixem entrar.” – in Os Disparates do Mundo.





 Mesmo na sua crítica à plutocracia e ao capitalismo usa de um humor alegre: “Um carteirista é um campeão da empresa privada, mas é exagero considerá-lo campeão da propriedade privada", The Outline of Sanity, 1927. "Antigamente um usurário lançava a sua rede sobre uma aldeia, hoje lança-a sobre seis nações. A plutocracia é o contrário da democracia porque transforma o parlamento no governo secreto dos ricos. A plutocracia por não ter uma base filosófica nem moral é um sucesso, mas um sucesso grosseiro”, Autobiografia, Ed Diel, Lisboa 2009.

Ainda sobre o capital na sua elegia ao distributismo baseado na doutrina social da Igreja: “O dinheiro é como o estrume. Quanto mais espalhado, melhor”.
Defende a propriedade privada para aqueles que nada têm. Defende a pequena propriedade e, com humor critica o capitalismo e o socialismo porque originam a pobreza. O primeiro, ao concentrar o capital: “O capitalismo é um sistema em que quase ninguém possui”. O segundo, ao suprimi-lo: “Os socialistas negam ao pobre o direito de ser remediado!”
O capitalismo apregoa a extensão dos negócios em detrimento da propriedade. O socialismo propõe-se acabar com os carteiristas ao suprimir as carteiras.



Na sua crítica ao socialismo e a Bernard Shaw, diz em “Hereges” que os socialistas não compreendem como a humanidade não abraça massivamente o ideal socialista, atribuindo tal facto à humanidade ser ignorante e não instruída, isto é, muito menos instruída do que aquela fracção da humanidade iluminada, os socialistas. Pelo que deveríamos, ao jeito de Nietzsche, deitar esta humanidade fora e aspirar a uma sua versão superior. O socialista portar-se-ia como uma ama que dá uma comida amarga ao bebé. Como o bebé persista em recusar a comida, a ama deita fora o bebé e fica com a comida…




Chesterton é a prova de que ser católico pode ser divertido, que discutir não é odiar mas respeitar os outros, que nos países católicos existe “fiesta”, que viver é bom, que temos a Quem dar graças pela vida, que “o mais feliz dos felizes é aquele que faz os outros felizes”, ou “o verdadeiro homem grande é aquele que faz todos os outros homens sentirem-se grandes!” 
O último embaixador inglês publicou uma carta no jornal Expresso em 2010, onde faz a apologia de algo semelhante e a associa gentilmente ao povo português: diz que o dinheiro não é tudo na vida e que comer um peixe com um simples copo de vinho no final de um dia de praia é um momento de felicidade; ou que respeitar as refeições em família é uma grande tradição; ou que integrar pais, avós e netos na família, assegurando o contacto geracional, é um sinal de grande sabedoria; que manter as festas populares e os seus arraias é algo de positivo; a tolerância e a curiosidade sobre o mundo. Ou ainda, como dizia Gustavo Corção no seu Lições de Abismo (Ed Set, Lisboa), “a última coisa que se aprende é a coisa mais importante da vida, a beleza de dar, a partilha.” Aliás, em Corção como em Chesterton, a metafísica e o eterno feminino, polvilhados de humor, são constantes. 
Dizem-nos que o fim último da vida é a excelência, mas eu suspeito, depois de consultar estes nossos amigos, que é ser feliz!



Diz Philip Yancey: “Quando viajo, pergunto às vezes às pessoas: "O que lhe vem à mente quando ouve a palavra cristão?" Normalmente elas respondem negativamente, descrevendo atitudes depreciativas, legalismo ou políticas ultraconservadoras. Como seria ótimo se nessa altura as pessoas se lembrassem de pessoas como Chesterton, pois ele não era nada assim. Para ele, o evangelho era de fato a boa-nova. Sempre que percebo que minha fé volta a correr o risco de se tornar árida, vou até à minha estante e apanho um livro de G. K. Chesterton. E assim começa de novo a aventura”.
"A obra de Chesterton é vastíssima e não contém uma só página que não ofereça uma felicidade." (Jorge Luís Borges)
"A influência de Chesterton será maior nas gerações ainda não nascidas do que entre os seus contemporâneos." (Sir Arthur Bryant)

António Campos
Anália Carmo

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Chesterton, defensor da Fé


     G. K. Chesterton disse em 1926, quatro anos depois da sua conversão ao catolicismo, que a Igreja é uma casa com centenas de portas e que não há dois homens que entrem nela pela mesma porta. A porta, todos nós o sabemos, é a “Porta da Fé”. E atravessar esta porta é percorrer um caminho que marca e dura a vida inteira, como afirma o Papa Bento XVI na carta apostólica Porta Fidei – A Porta da Fé -, de 11 de Outubro de 2011, pela qual se proclama o Ano da Fé que se iniciou a 11 de Outubro de 2012 e se prolonga até igual data de 2013.

     Se estivesse ainda fisicamente entre nós, Chesterton acharia estranho que fosse necessário que o Santo Padre proclamasse este, ou outro ano qualquer, como Ano da Fé. E por um motivo muito simples: todos os anos, desde o nascimento de Cristo, são anos da Fé. A actual era cristã, de aceitação universal mesmo pelo ateu mais convicto, o agnóstico mais empedernido ou o céptico mais distraído, não deixa margens para dúvidas. E é, diariamente, uma afirmação permanente da nossa Fé. Estamos, na Europa, na África, na Ásia, na América e na Oceânia, em 2013, ou seja, dois mil e treze anos se passaram desde o dia em que Deus se fez homem na pessoa de Jesus Cristo, como afirma a nossa Fé. É o nascimento do Deus Menino que continua e continuará a marcar toda a história da humanidade.

     2013, Ano da Fé. Como o foi 1922, o ano em que G. K. Chesterton recebeu o baptismo. Como o foi o ano de 1874, o ano em que nasceu. Como o foi o ano de 1936, o ano em que partiu para a Casa do Pai. Todos os anos, que são afinal anos da Fé, expressam a derrota do ateu, pois como disse o escritor colombiano, de raiz chestertoniana, Nicolás Gómez Dávila: “ O ateu se consagra menos a verificar a inexistência de Deus que a proibir-lhe que exista”.

     É claro que G. K. Chesterton, não obstante todos os anos serem anos da Fé, aplaudiria  com todo o vigor o anúncio papal de um Ano da Fé. E diria, como todos nós, que era um Ano da Fé reforçado, para lembrar aos esquecidos e distraídos a riqueza inultrapassável e perene da mensagem cristã. Repetiria também aquilo que disse um dia quando lhe perguntaram por que se tinha convertido à Igreja Católica. Aduziu então duas razões que convém lembrar, neste Ano da Fé reforçado. A primeira é porque só a fé católica tem uma verdade firme e objectiva que não depende da nossa aceitação pessoal para existir. E a segunda é que só através dela, e nela, nos conseguimos livrar dos nossos pecados. Duas excelentes razões que urge ter sempre presente neste ano do Senhor de 2013.

     Mas há ainda outro motivo para associar G. K. Chesterton a este Ano da Fé. Aquando da sua morte, em 1936, o cardeal Eugénio Pacelli, então secretário de Pio XI e futuro Papa Pio XII, de saudosa e grata memória, enviou ao cardeal Hinsley um telegrama, em nome do pontífice romano, em que dá a Chesterton o título de Fidei Defensor, Defensor da Fé. Este título já tinha sido dado por Leão X a Henrique VIII, antes de este monarca se ter revoltado contra a Igreja Católica. É agora outorgado postumamente ao grande escritor inglês que, pela sua vida e a sua obra, continua e continuará a ser, para todos nós, e ainda mais neste Ano da Fé, um autêntico e verdadeiro Fidei Defensor, Defensor da Fé.

                             ANTÓNIO  LEITE  DA  COSTA
 

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

São Francisco Xavier


"St. Francis Xavier", 1892

Este poema sobre São Francisco Xavier foi escrito por Chesterton apenas com 18 anos e ganhou um prémio literário na St. Paul’s School, onde também tinha estudado John Milton (é curiosa esta conexão S. Paulo - S. Francisco Xavier -Chesterton).

Apesar de agnóstico e decididamente não católico, Chesterton mostra-se fascinado pela tenacidade de um homem que dedica a sua vida à conversão de almas numa terra distante, com o seu misticismo próprio e história milenar, onde viria a morrer.

O seu gosto pelo paradoxo já se encontra evidente ao afirmar que São Francisco Xavier falhou na sua tarefa de construir uma igreja no Oriente, mas ao admitir, em contrapartida, que só Deus sabe quando e quanto do fracasso se pode transformar em vitória. Nada mau para um agnóstico…Chesterton não podia adivinhar o que se passaria com Max Kolbe e a cidade da Immaculata nos arredores da Nagasaki, na liberdade religiosa proclamada no Japão após os trágicos acontecimentos de 1945 e, mais recentemente, na obra de Madre Teresa de Calcutá.

Voltemos a São Francisco Xavier de quem gosto particularmente, sobretudo desde que li “A Rosa do Oriente” de Manuel Arouca:

Navarro, estudou em Paris, no Colégio Português de Santa Bárbara, para  professor de filosofia. Apesar de graves desentendimentos inicias com Inácio de Loyola, acabou por se tornar seu amigo e com ele fundou a Companhia de Jesus. Foi Inácio quem lhe conseguiu a maioria das autorizações papais para desenvolver a sua actividade no Oriente.

Colocou-se ao serviço de Portugal e por vontade de D. João III deveria ficar a dirigir os altos estudos em Lisboa. Francisco recusou e decidiu ir para a Índia, onde, por suas próprias palavras poderia ser mais útil. Foi o missionário que mais almas converteu depois de São Paulo.

 
São Francisco Xavier chegou a Kagoshima, ilha de Kyushu, Japão, a 15 de Agosto de 1549, a festa da Assunção da SS Virgem Maria. Maximiliano Kolbe, chegou ao Japão a 24 de Abril de 1929, e construiu a cidade da Imaculada perto de Nagasaki, numa zona baixa, pelo que foi criticado. Em 9 de Agosto de 1945, às 11:02h, os americanos largaram a sua segunda bomba atómica, sobre Nagasaki, praticamente em cima da catedral católica do bairro de Urakami. A catedral de Nossa Senhora da Assunção de Urakami foi atingida à hora em que os católicos se dirigiam para a missa. Atingiu 3870ºC e ardeu até à meia-noite. Restou um fragmento de uma das paredes e o busto em madeira da Virgem Maria que se salvou miraculosamente e que é hoje conhecida como a “Bombed Maria”. Ya G Alone, Yahweh God Alone, é o anagrama de Enola Gay, lido ao contrário como em hebraico. Essa foi a simbologia escolhida por Harry Truman, maçon 33, para castigar o Japão, usando as palavras de Elias.

Em 15 de Agosto de 1945, precisamente a festa da Assunção, o Japão assinou o decreto de rendição e promulgou o decreto que concedeu a liberdade religiosa no Japão. Estou certo que São Francisco Xavier andaria por ali e que Chesterton tinha intuído bem: para Deus os fracassos podem converter-se em vitórias. Nagasaki terá sido o cordeiro sem mácula. O sangue dos 8000 católicos mortos não foi em vão.


 "St. Francis Xavier", The Apostle of the Indies,       G.K.Chesterton 1892

                                                  tradução de António Campos e Anália Carmo

Deixou o seu pó,
1 calcado por muitos
De densas partículas ao longo da costa,
2
Ou por baixo de alguma cruz esquecida, a sua cabeça repousa
Onde mares escuros clarearam numa terra remota:
Deixou-nos o seu trabalho, o sentido da sua vida.
Uma chama ténue, tremelica e apaga,
Entre grandes mitos a obra pouco persiste,
E a luz apaga-se, no templo e no salão,
E o velho crepúsculo sobrevém e tudo cobre.

Deixou o seu nome, um rumor no Oriente,
Que morre em silêncio entre credos antigos,
Contra os quais lutou em vão: o sacerdote inflamado
De uma fé menos ajustada a necessidades rudes:
Como peregrino solitário, com seus discípulos e contas,
3
Entre homens brutos a quem a ignorância amansa,
4
Ele habitou, e deixou sementes de uma Igreja Oriental
Ele reinou, um professor e padre afamado:
Ele morreu e ao morrer deixou um legado e um nome.
5

Ele morreu, e ela, a Igreja que o incitou a ir, 6
Que lhe lançou um encanto sombrio com o seu apelo místico,
7
Rodeou a sua cabeça com a auréola dourada,
8
E do monge mitos, e toda a fama murmurada
De milagre, foi associada ao seu nome:
Assim o disse Roma: mas nós, o que respondemos nós?
Nós que cremos em cruéis deuses indianos e ritos de vergonha
E vemos sobre todo o Oriente o fracasso do professor,
A sua Igreja Oriental como sonho, o seu trabalho como vaidade.
9

Eis o que dizemos: a face sombria do Tempo por fim
Move os lábios de trovão para decretar
Que a desgraça que cresceu entre o murmúrio do passado
10
Seja a norma do tempo atual:
Ele não é criança da verdade nem sacerdote do progresso,
E no entanto, um herói das suas guerras
Lutando por saciar a luz que não podia ver,
E Deus, que conhece tudo da criação e da guerra,
Julga a sua alma invisível que pulsa entre as estrelas.

Só Deus sabe, se o homem falha na sua escolha,
Até onde o aparente fracasso pode ser sucesso,
Só Deus sabe que eco da Sua voz
Mora no declive de um falso credo,
Deus ao trabalhador o seu salário
Pela contínua difusão da sua obra,
Dividida para muitos na palavra e no exemplo
Quando os véus da memória toldam a razão;
Tudo vive e persiste no espírito dos mortos.

Por fim dizemos: que todas as coisas fiquem como estão
E esta vida admirável, com muitos milhares de outras,
Se reúnam  em cima no seio do Eterno
O seu Amor pende sobre esse passado ténue:
Curando fracassos e esperanças frustradas:
Ele que com coragem contemplou a morte e a dor
Pelo que escolheu para venerar e adorar,
Com audácia jogou a sua vida (para perda ou ganho).
11
Na lotaria eterna: não em vão.12
 


He left his dust, by all the myriad tread
Of yon dense millions trampled to the strand,
Or 'neath some cross forgotten lays his head
Where dark seas whiten on a lonely land:
He left his work, what all his life had planned,
A waning flame to flicker and to fall,
Mid the huge myths his toil could scarce withstand,
And the light died in temple and in hall,
And the old twilight sank and settled over all.


He left his name, a murmur in the East,
That dies to silence amid older creeds,
With which he strove in vain: the fiery priest
Of faiths less fitted to their ruder needs:
As some lone pilgrim, with his staff and beads,
Mid forest-brutes whom ignorance makes tame,
He dwelt, and sowed an Eastern Church's seeds
He reigned, a teacher and a priest of fame:
He died and dying left a murmur and a name.

He died: and she, the Church that bade him go,
Yon dim Enchantress with her mystic claim,
Has ringed his forehead with her aureole-glow,
And monkish myths, and all the whispered fame
Of miracle, has clung about his name:
So Rome has said: but we, what answer we
Who in grim Indian gods and rites of shame
O'er all the East the teacher's failure see,
His Eastern Church a dream, his toil a vanity.
This then we say: as Time's dark face at last
Moveth its lips of thunder to decree
The doom that grew through all the murmuring past
To be the canon of the times to be:
No child of truth or priest of progress he,
Yet not the less a hero of his wars
Striving to quench the light he could not see,
And God, who knoweth all that makes and mars,
Judges his soul unseen which throbs among the stars.


God only knows, man failing in his choice,
How far apparent failure may succeed,
God only knows what echo of His voice
Lives in the cant of many a fallen creed,
God only gives the labourer his meed
For all the lingering influence widely spread,
Broad branching into many a word and deed
When dim oblivion veils the fountain-head;
So lives and lingers on the spirit of the dead.


This then we say: let all things further rest
And this brave life, with many thousands more,
Be gathered up in the eternal's breast
In that dim past his Love is bending o'er:
Healing all shattered hopes and failure sore:
Since he had bravely looked on death and pain
For what he chose to worship and adore,
Cast boldly down his life for loss or gain
In the eternal lottery: not to be in vain.
 

 
 
1 Na verdade o corpo de São Francisco Xavier encontra-se na Sé de Velha Goa, Índia, incorruptível. Mas o Santo morreu antes de atingir Cantão, China, no porto de Sanchoão a 3 de Dezembro de 1552. Os seus discípulos sepultaram-no numa campa aberta. Em Fevereiro de 1553 chega a nau da marinha de guerra portuguesa, curiosamente denominada Santa Cruz, para resgatar o corpo do Santo. Apesar das chuvas e do tempo decorrido, o corpo encontrava-se incorruptível e exalava um perfume a rosas. O imperador chinês Che Tsong, taoista e avesso ao budismo, ao saber do ocorrido por um grande mercador chinês que ia a bordo do Santa Cruz, autorizou, mais tarde, a entrada dos jesuítas na China.
 
2 Esta passagem inclui palavras de inglês arcaico como “yon” mas o sentido que apreendemos foi o de os vestígios de um Santo que repousa algures, numa terra longínqua, num local esquecido pelos da sua família de origem, os ocidentais.
3 Tradução esferas, neste sentido contas do rosário.
4 Chesterton parece sugerir que a manutenção do sistema de castas sem contestação assenta na ignorância.
5 Padroeiro dos missionários. Responsável por mais conversões à Igreja Católica desde S. Paulo, em cuja igreja em Malaca esteve primeiro antes de ser transladado para a Basílica do Bom Jesus de Goa, onde hoje se encontra, pelo seu amigo e admirador, o almirante Diogo Pereira, em 11 de Dezembro de 1553.
6 Na verdade D. João III queria que Francisco fosse professor de altos estudos em Lisboa. Foi por vontade própria, segundo ele seguindo o apelo de Deus, que Francisco insistiu com o rei para ir para a Índia.
7 Chesterton aos 18 anos não era católico. Esta referência a “encantamento ou feitiço sombrio”, pode expressar o ponto de vista de um anglicano que considera os católicos hereges, de um agnóstico, ou simplesmente para agradar às autoridades da escola
8 Foi canonizado pelo Papa Gregório XV, a 12 de Março de 1622, em simultâneo com Inácio de Loyola com o qual é co-fundador da Companhia de Jesus. É o santo patrono dos missionários. O seu dia festivo é 3 de Dezembro. Cada dez anos o seu corpo sai em procissão; a próxima será em 2014.
9 Madre Teresa de Calcutá, muito posterior a Chesterton, demonstra que a porta de São Francisco Xavier se encontra aberta. Tal como os acontecimentos acima descritos em 1945 em Nagasaki.
10 Para Chesterton a sociedade contemporânea ignora ostensivamente o seu legado e a sua tradição.
11 Também se pode traduzir como humilhou-se corajosamente, mas pensámos manter o sentido de jogo.
12 Dificilmente se poderá afirmar que Francisco Xavier viveu em vão. Foi um apóstolo responsável por mais de 100 000 batismos, só com as suas próprias mãos. Os seus assistentes tinham que segurar-lhe os braços enquanto batizava, ao longo do dia, para que não pendessem pelo cansaço. Ouçamo-lo num excerto de uma das suas cartas a Santo Inácio de Loyola: “Muita, muita gente por aqui não se torna cristã por uma única razão: não há quem os evangelize. Já me ocorreu correr pelas universidades da Europa, especialmente Paris, e gritar por toda a parte como um alucinado, chamando a atenção daqueles que têm mais saber que caridade: Que tragédia! Quantas almas se perdem graças a vós!”
 
 
 

sábado, 5 de janeiro de 2013

Chesterton e S. Francisco - II


São Francisco de Assis por G K Chesterton, 1923

 

Este foi um homem admirável na história secular e um modelo de virtude social. Pode descrever-se este demagogo divino como sendo o mais sincero democrata. Pode dizer-se que S. Francisco estava à frente do seu tempo. Pode dizer-se que S. Francisco antecipou o que é de mais liberal e acolhido no mundo moderno: o amor pelos animais, o amor pela natureza, a noção de compromisso social, a noção do risco de degeneração espiritual provocada pela prosperidade ou pela acumulação da propriedade. Pode ser descrito como um herói humano ou humanitário. Na verdade, foi o primeiro herói do humanismo. Poderia ser descrito como uma estrela do Renascimento, embora tenha vivido na Idade Média. E, em comparação com todas estas coisas, a sua teologia ascética pode ser ignorada ou recusada, tida com um acontecimento acidental, felizmente não fatal. A sua religião pode ser considerada superstição, mas uma superstição inevitável sem dúvida, da qual nem mesmo o génio se podia desligar totalmente. Tendo isto em conta, seria muito injusto condenar S. Francisco pela sua recusa voluntária de bens materiais ou censurar-lhe indevidamente a sua castidade. Sem dúvida, mesmo uma análise tão afastada não ignoraria o facto de a sua vida ter sido heróica. Ainda se poderia dizer muito sobre um homem que queria acabar com as cruzadas falando com os sarracenos ou que intercedeu junto do Imperador pelos pássaros. O escritor poderá descrever apenas com um espírito histórico toda a inspiração franciscana que se encontra numa pintura de Giotto, na poesia de Dante, nas peças de teatro maravilhosas que tornaram possível o drama moderno e de tantas outras coisas que são apreciadas pela cultura moderna. Pode tentar fazê-lo, como outros já fizeram, sem colocar a questão religiosa. Resumindo, pode tentar contar a história de um santo sem Deus, que é como escrever sobre Dickens sem nunca mencionar a pobreza.

O outro modo de descrever S. Francisco é do ponto de vista de um devoto. Ele foi o fundador das ordens menores, os franciscanos, seguiu o ideal de pobreza, era um asceta e um místico católico. Ele encontrou uma alegria austera, por assim dizer, nos paradoxos do asceticismo e, às avessas do mundo, na humildade. A história das suas marcas físicas dos estigmas é pública e publicável, os seus jejuns podem ser interpretados num contexto de luta contra o dragão, como era também o caso de São Domingos. Em resumo, ele pode resultar naquilo que o nosso mundo interpreta como negativo. O reverso de todas as luzes e sombras. O que os tolos pensarão ser tão impenetrável como as trevas e mesmo o que muitos sensatos tomarão como tão invisível como escrever a prateado no branco. Um tal estudo de S. Francisco será ininteligível a quem não partilhe a sua religião, talvez parcialmente inteligível a quem apenas não partilhe a sua vocação. De acordo com ambos os juízos, será considerado demasiado bom ou demasiado mau para o mundo. O único problema é que tal julgamento não se pode fazer. É necessário um santo para escrever sobre a vida de um santo.
 
Finalmente, pode-se tentar fazer o que eu fiz. O escritor pode colocar-se na posição de alguém de fora e questionar. Pode colocar-se na posição de quem já admira S. Francisco, mas apenas naquelas coisas que considera dignas de admiração. Pode tentar usar o que é compreendido para explicar aquilo que não se compreende. Pode tentar dizer ao leitor moderno: “Aqui está um homem com quem já simpatizamos pela sua alegria, a sua imaginação romântica, a sua cortesia espiritual e camaradagem, mas que também contém elementos (sinceros e fundamentais) que consideramos atrasados e repulsivos. Mas na realidade foi apenas um único homem e não meia dúzia de homens. O que parece sem nexo para nós, não lhe pareceu a ele. Vamos tentar compreender, com o auxílio da razão, essas outras coisas que nos parecem razoavelmente obscuras, pela sua impenetrabilidade intrínseca e pela ironia do seu contraste.” Não pretendo dizer, naturalmente, que eu consigo fazer um retrato psicológico exaustivo neste esboço básico e rudimentar. Apenas quero afirmar que a única condição controversa que aqui assumo é a de que estou a lidar com alguém com quem simpatizo mas que me é estranho, externo. Nem mais nem menos. Um materialista pode não se importar se as inconsistências são ou não resolvidas. Um católico pode não ver nenhuma inconsistência sequer. Mas eu aqui dirijo-me ao homem comum, empático, mas cético. E eu posso apenas vagamente esperar que, ao analisar a história deste grande santo pelo que tem de pitoresca e popular, eu possa ter permitido ao leitor saber um pouco mais do que sabia antes sobre a consistência do personagem como um todo. Por este meio de análise podemos ter um vislumbre de como um poeta que dá graças a Deus pelo sol muitas vezes se refugiou numa caverna sombria, de como um santo que era tão bondoso para o seu irmão lobo era tão áspero para com o seu irmão asno (asno ou traseiro foi a expressão que utilizou para o seu próprio corpo), de como um trovador que proclamava que o amor lhe abrasava o coração viveu sem a companhia de mulheres, de como o cantor que rejubilou com a força e alegria do fogo se rebolou na neve, de como a canção que grita com a paixão de um pagão “Louvado seja Deus pela nossa irmã, Mãe Terra, que nos dá frutos diversos, relva e flores reluzentes,” termine quase sempre com as palavras “Louvado seja Deus pela nossa irmã, a Morte do corpo.”
 
Traduzido e adaptado por António Campos e Anália Carmo


 
 
                                        A estigmatização de São Francisco - Giotto