sábado, 28 de julho de 2018

Wittgenstein para Principiantes – A Gramática da Realidade


Numa entrevista para admitir um candidato a um determinado lugar ou função, existem
maneirismos, tons de voz nas respostas, pequenas hesitações e determinados comportamentos do olhar que influem na decisão de quem avalia. Quando procuramos avaliar uma pessoa pelo olhar, não nos portamos como um oftalmologista. Não procuramos saber o estado da cornea ou do cristalino, do nervo ótico ou da retina. Essa é a atitude do cientista. A atitude de avaliar uma pessoa pelo olhar é muito menos precisa e difícil de definir. É a “expressão do olhar”, o modo como fita os nossos olhos, o modo como desvia o olhar face a uma pergunta. Por isso mesmo se diz, com uma certa verdade, que os olhos são o “espelho da alma”. O uso de óculos escuros não é apenas uma moda, também é uma ocultação ou barreira. Ao avaliar uma pessoa, nós avaliamos “conexões”, como afirmavam Newman, Chesterton e Wittgenstein.



Grande parte da confusão do espírito moderno resulta de um certo “cientismo do eu” e “cientismo da moral”: o cartesianismo, a psicanálise e o utilitarismo. A crítica ao cartesianismo por Wittgenstein, pela sua importância, será abordada em detalhe, separadamente.

O cientismo é um “jogo de linguagem” – lida com o poder sobre uma sociedade. Quem tem o poder de impor esse “jogo de linguagem” reduz todos os outros a um papel marginal de minoria cognitiva. O cientismo reduz a ética à sua formulação utilitarista; ou seja, usa fórmulas matemáticas para resolver dilemas éticos – o balanço entre o maior prazer e a menor dor. Por outro lado, a ciência, de onde o cientismo vai reclamar a sua legitimidade, não é um “jogo de linguagem”; é observação e dedução – estuda a existência ou não existência dos “estados de coisas”. Finalmente, a matemática não é uma ciência; é uma linguagem.

A psicanálise ilustra bem em que ponto uma construção mental, um edifício imaginativo ou mitológico, reivindicando a exactidão e evidência da ciência, falha por não cumprir os seus requisitos. Funciona ao modo do cientismo: por extrapolação a partir de premissas que não são indiscutíveis, a partir de um fundo de verdade. Praticamente todas as religiões afirmam que o homem possui o bem e o mal dentro de si, que é um ser manchado, um criminoso ou um anjo em potência. Mas nenhuma afirma que no processo de separação da mãe, a criança do sexo masculino deseje assassinar o pai. Imputar a uma criança o horror do incesto, que é, na verdade, património de uma civilização, é um erro clamoroso. As normas não reprimem o homem nem lhe provocam neuroses; pelo contrário, é a existência de regras que torna os homens livres. A sua preocupação, em geral, é com o outro, o bem comum, e não com o eu. É difícil aceitar o fraccionamento da personalidade, uma vez que qualquer edifício jurídico necessita de imputar ao homem toda a responsabilidade moral.

O labirinto é uma das imagens recorrentes na mitologia grega. Ele não representa apenas algo material; ele representa também um estado psicológico. Um rato é perfeitamente livre dentro de um labirinto; no entanto, a impossibilidade de encontrar uma saída clara demonstra o paradoxo: estando livre, o animal encontra-se preso. Se não encontrar a porta de saída e um caminho certo, claro e definido para ela, ele ficará enredado. Este também é um estado mental; se não encontrarmos clareza, não encontraremos uma porta de saída.

Para Wittgenstein, à filosofia caberia a crítica da linguagem com sentido – a clareza intelectual. Os cientistas necessitam de filósofos, numa relação semelhante à que existe entre os insectos e os entomologistas.

Em On Certainty: “De cada vez que uso palavras no meu encontro com o mundo, eu desenho os limites dentro dos quais a veracidade do que afirmo pode ser determinada. Mas estes limites dos jogos de linguagem têm buracos; ou seja, existe um certo tipo de conhecimento, como o científico por exemplo, em que as coisas podem ser de outro modo totalmente diferente. Sempre que eu digo, "chove", existe a possibilidade aberta de que "não esteja de facto a chover" ou que "eu pensei que estava a chover". A essas possibilidades poderemos chamar graus de incerteza.”

Nas palavras de Chesterton:

A verdade é que aqueles que andam sempre a falar de factos não entenderam o maior de todos os factos, que é em si um paradoxo:

Os factos só por si não criam o espírito da realidade, porque a realidade é um espírito. Os factos só por si podem por vezes alimentar a fogueira da loucura, porque a sanidade é um espírito.1





Lógica, Ciência e Senso Comum



A lógica ocupa-se de avaliar se uma proposição é verdadeira ou falsa no sentido do seu significado existencial, mas nada nos diz sobre a realidade. É a ciência e o senso comum que nos informam sobre os “estados de coisas”, isto é, sobre a realidade. Exemplifiquemos. Se eu disser: “um melro está a voar sobre a minha casa”, esse é um pensamento com sentido, lógico, que pode ser ou não ser verdadeiro. A lógica avalia se algo tem sentido, se é. Por exemplo seria ilógico afirmar “uma baleia está a voar sobre a minha casa”.

O que nos diz se uma determinada coisa é real é a ciência e o senso comum, que nos informam sobre “os estados de coisas”, sobre o que está no mundo. Por exemplo, se eu observar um pássaro negro de bico amarelo a voar sobre a minha casa, posso dizer que é verdade um melro estar a voar sobre a minha casa. No entanto, suponhamos que é noite. O senso comum informa-me que os melros não voam à noite e que portanto a minha observação deve ser falsa. Dito de outro modo: suponhamos que é meia-noite e eu me encontro numa casa  junto a uma estrada e venho ao jardim. Ouço a 2 Km um tropel de uma manada de cavalos que se aproxima a grande velocidade. O espaço lógico e o espaço empírico dizem-me que a minha “observação” é, e que é um “estado de coisas”. É o senso comum que me informa que essa “observação” não é real, esse “estado de coisas” não pode existir por ser absurdo; as manadas de cavalos não correm à meia-noite em ambiente urbano.

Como se pode então aprender esse tipo de sensibilidade, esse sentir comum dos homens, essa iluminação do sentir comum que rejeita o absurdo, o que não é natural, esse processo interno dependente de fatores externos? Nunca pela mão de psicólogos ou de outros “cientistas sociais”, mas pelos trabalhos de grandes artistas, músicos e romancistas:

“Hoje em dia, as pessoas pensam que os cientistas os instruem e que os poetas, músicos, etc., lhes dão prazer. A ideia de que estes últimos têm algo para lhes ensinar, não lhes parece ocorrer.”2 É o conceito “daquilo em que toda a gente concorda” que “requere um esforço extraordinário” e que “não é o princípio, mas sim o fim da filosofia”, por forma a evitar a “confusão”, que é um problema existencial e que nos impede de ver os factos:3 “O indivíduo filosoficamente confuso é uma vítima da sua cultura, pervertida pela linguagem.” Só pelo esforço de atingir esta clareza “conseguiremos ver as coisas mais importantes que se encontram para nós dissimuladas, devido à sua simplicidade e familiaridade.”4



O Uso da Linguagem



Na famosa discussão com Russell sobre se era verdade ou não a existência de um hipopótamo na sala de aula, entende-se como funciona a lógica para Wittgenstein.

Assim, verdade significa se uma proposição é logicamente verdadeira (espaço lógico); realidade significa se existe um determinado “estado de coisas” (espaço-tempo), que basicamente descreve o encadeamento de objectos para formar um contexto. Por conseguinte, o hipopótamo está (ou é) é uma proposição verdadeira porque os hipopótamos existem; enquanto que o estado de coisas “o hipopótamo está agora na sala de aula”, não é real.

Como se adquire e aprende a linguagem? Pelo uso! Uma criança aprende a usar a linguagem antes de aprender as suas regras lógicas, a gramática. É pelo modo como combinamos os objectos (nomes) para representar estados de coisas e pelas respostas que as pessoas dão, por entender esse uso da linguagem, que nós aprendemos o uso da linguagem. Lembremos as afirmações de Wittgenstein: “Os objectos só podem ser nomeados”, “um pensamento só pode ser expresso por uma proposição” e “numa proposição um pensamento encontra uma expressão que pode ser percebida pelos sentidos”. Portanto, da combinação objecto/nome – pensamento/proposição – percepção sensorial, resulta a minha linguagem e o meu mundo.

Em Wittgenstein, os sentidos adquirem um papel de topo no processo de conferir sentido às coisas. O seu anti-cartesianismo é manifesto.

“É pela sua utilização em "contextos" que a linguagem adquire para nós sentido, antes mesmo de a estudarmos.

É uma coisa viva.

A proposição em uso é como a primeira pessoa usando a experiência prévia da terceira pessoa. É íntima com o que a rodeia; o seu significado como conhecimento só se nota em retrospectiva. É a palavra ontológica sobre a palavra epistemológica, contribuindo em primeiro lugar não para o conhecimento, mas sim para ser, para viver.”4

Wittgenstein compartilha do ponto de vista de Santo Agostinho, que representa a linguagem como um processo em que o sentido se adquire por comparação entre conceitos internos e objectos externos numa dependência histórica.

Nós aprendemos a usar a linguagem antes de aprendermos a linguagem. O sentido e a compreensão ocorrem na esfera pública e não na privada, pelos chamados "jogos da linguagem" ou contextos de uso.



O que é, então, a gramática?





A Gramática





“A gramática relaciona-se com as regras implícitas da linguagem, que determinam os limites do seu uso com sentido.” Essas regras não são meramente descritivas, são normativas. Portanto, uma proposição que expresse uma regra é uma “proposição gramatical”, enquanto que uma proposição empírica não é. Logo, “um hipopótamo está (ou é)” é uma proposição gramatical, enquanto que “um hipopótamo está na sala” não é; é empírica. Afirmar que o hipopótamo esteja na sala é falso, mas é algo inteiramente inteligível; negar que o hipopótamo exista e que, portanto, em certas circunstâncias pudesse estar na sala, não é inteligível, do ponto de vista de Wittgenstein. Negar que um hipopótamo pudesse estar na sala seria como negar que as pedras sejam objectos materiais; negar que um hipopótamo esteja na sala agora seria como negar que não existem pedras no leito dos rios – algo que é falso mas inteligível, poderia perfeitamente acontecer. Sabemos que as pedras são objectos materiais pelo próprio uso da palavra pedra; sabemos que o hipopótamo é, pelo uso da palavra hipopótamo. Foi isto que Russell não compreendeu…ou não aceitou.



Então, as regras gramaticais seriam como as regras de um jogo. Dizer que num jogo de damas, uma peça encavalitada noutra é uma rainha, é dar expressão às regras do jogo. Dizer que a rainha nas damas se move em quadrados vermelhos em vez de pretos é falso mas é um erro empírico; dizer que duas peças encavalitadas não formam uma rainha, mas uma peça como as outras, não é cometer um erro empírico – é ir contra as regras do próprio jogo! 5



Para Wittgenstein, uma teoria metafísica como o idealismo de Berkeley funciona como um erro gramatical. É exatamente o que Berkeley faz ao dizer que uma pedra não é um objecto material mas uma colecção de percepções. Deste modo, o estudo das regras constitutivas da linguagem, a gramática, podem ajudar-nos a expor teorias metafísicas erradas. Elisabeth Anscombe tinha razão ao afirmar que Wittgenstein se situa na tradição de Platão, por conectar o desenvolvimento da metafísica com a gramática. Wittgenstein afirma que a “essência é expressa pela gramática” e “a gramática diz-nos que tipo de objecto uma coisa é”.4

Pode pensar-se que a gamática exprime a realidade de uma forma realista, como a realidade “realmente é” ou, por outro lado, que exprime a realidade de forma contingente, em que a linguagem/gramática (o seu esquema conceptual) e a realidade se colocam a par, correspondendo ou não uma à outra (o conceito númeno-fenoménico de Kant). No entanto, Wittgenstein descarta este modo kantiano de entender a correspondência entre realidade e linguagem, apelidando-a de “confusão gramatical”. No nosso modus vivendis, no uso comum da linguagem, a questão da sua correspondência com a realidade não se coloca: “Uma pintura ou quadro lógico mostra como as coisas são porque partilha uma forma homóloga com a realidade.”6 Ou seja, por analogia, um pensamento não pode ser mostrado, mas ao partilhar o meu quadro lógico com uma proposição, ele encontra-se expresso na proposição.

Embora a especulação metafísica possa oscilar entre o realismo e o anti-realismo, a crítica à metafísica que Wittgenstein faz, não é destinada à metafísica como a concebemos classicamente, mas a esta nova metafísica saída da especulação filosófica moderna anti-realista.

O que Wittgenstein afirma ao criticar a metafísica pela gramática, é criticar o cartesianismo e tudo o que dele derivou: o empiricismo, o kantianismo, o idealismo. Para Wittgenstein, metafísica é toda a especulação filosófica que se inicia e termina em conceitos, recusando confiar nos sentidos:

“Eu criei-me a mim próprio: o meu ser pelo meu pensamento, o meu pensamento pelo próprio pensamento”, como dizia Fichte.7

“Há um cético mais terrível ainda do que aquele que acredita que tudo começou na matéria. É possível encontrar o cético que acredita que tudo começou em si mesmo. Este é o que duvida, não da existência de anjos ou de demónios, mas da existência dos homens e das vacas. Para ele, os próprios amigos não passam de uma mitologia que a sua mente arquitetou: foi ele quem criou o próprio pai e a própria mãe.”8

Ora, lembremos o Wittgenstein do Tractatus: “Numa proposição, um pensamento encontra uma expressão, que pode ser percebida pelos sentidos. Numa proposição, um nome é representativo de um objecto. Os objectos só podem ser nomeados. Um pensamento é uma proposição com um sentido. No mundo tudo está como está e tudo acontece como acontece. Nele não existem valores.“

Por outras palavras, a mente está presa pelo que é percebido acidentalmente pelos sentidos.

“Constatei, surpreendido, que filósofos que aprendi a admirar, afinal tinham todos cometido erros grosseiros de raciocínio.” (…) “Não existe eu!”9











António Campos






1 - G. K. Chesterton, ILN Agosto 1929.


2 – Wittgenstein. Culture and Value, cadernos de notas de Wittgenstein publicado por G. H. von Wright em 1977, Ludwig Wittgenstein, "Ethics, Life and Faith," The Wittgenstein Reader, ed. Anthony Kenny (Oxford, Blackwell Press 1994).


3 – Frederick Stoutland Review of Duncan Richter, Wittgenstein at His Word. Notre Dame Philosophical Reviews, 2005.


4 – Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas. Fundação Calouste Gulbenkian 2015. ISBN978-972-31-0383-0.


http://www.psicanaliseefilosofia.com.br/textos/InvestigacoesFilosoficas-Original.pdf


5 – Edward Feser. Goodill on Scholastic Metaphysics and Wittgenstein, 2015.


6 - John Heaton and Judy Groves. Wittgenstein for Beginners. Penguin Books, London. ISBN 1 874166 17 X.


7 – Daniel Breazeale. Thinking Through the Wissenschaftslehre, Themes from Fichte's Early Philosophy. Oxford 2013. ISBN 9780199233632.


8 - Chesterton, Ortodoxia.


9 - Tractatus Logico-Philosophicus, Kegan Paul, Trench, Trubner & CO., LTD., London, 1922. https://www.gutenberg.org/files/5740/5740-pdf.pdf e https://marcosfabionuva.files.wordpress.com/2011/08/tractatus-logico-philosophicus.pdf.





Breve nota sobre a afirmação “o nexo causal é superstição!”


1 – É superstição dizer que a cadeia causal se aplica a toda a natureza e não apenas à ciência, uma vez que o nexo causal faz parte do “jogo de linguagem” da ciência.


2 – É superstição afirmar que a cadeia causal é um achado da ciência. O nexo causal é um silogismo lógico.


3 – É superstição inferir o futuro por meio do nexo causal, uma vez que existem múltiplas possibilidades para o futuro.


4 – É superstição deduzir um passado não disponível por nexo causal, como acontece em teorias científicas, ao considerá-las e ensiná-las abusivamente como leis.





domingo, 22 de julho de 2018

Wittgenstein Para Principiantes: Newman On Certainty




Chesterton afirmava que o grande desafio da filosofia era explicar como é que o homem se
sente simultaneamente um estranho e à vontade neste mundo. Para o jovem Wittgenstein, o objectivo da filosofia era a clareza conceptual ou intelectual. Aos 20 anos pensava ter resolvido todos os problemas da filosofia ao definir a forma lógica da linguagem. Ao afirmar que o método correcto da filosofia seria o de calar tudo o que extravasasse as proposições da ciência natural, Wittgenstein indicava à filosofia um canto que nada tem que ver com a filosofia. Mas não poderia chegar a outra conclusão utilizando o método da zeitgeist moderna, i. e., reduzir toda a realidade à dimensão da evidência científica.

Chamamos hoje a esta atitude epistemológica, cientismo, e ela possui a mola da negação; do cartesianismo à filosofia inglesa de Hume e culminando na filosofia alemã. De forma simplista, exclui aberta ou tacitamente a existência de Deus e da alma humana. No entanto, Wittgenstein ao afirmar que o sentido do mundo estava fora das proposições da ciência natural, admite que as suas proposições careciam de sentido (mais do que a tradução corrente de serem bizarras ou espúrias). O seu método forneceria então uma escada para a clareza intelectual: definir o que pode ser dito e o que não pode ser refutado usando as proposições da ciência – um claro ataque ao cientismo que Moore compreendeu e que Russell nunca entendeu.






Para o segundo Wittgenstein, o objectivo da filosofia é o de que a inteligência não se deixe submeter pela linguagem. Este é o Wittgenstein que Russell consideraria “irreconhecível”. “A guerra salvou-me a vida”, diria Wittgenstein. O economista J. M. Keynes diria a sua mulher quando Wittgenstein voltou para Cambridge em 1929: “Deus chegou. Encontrei-me com ele no comboio das 5.15h.”1 A forma lógica da linguagem e as verdades inefáveis dão lugar às formas de entendimento: o teórico ou científico (teste de hipóteses ou teorias com base nos dados da observação) e o não teórico que consiste em “ver conexões” (o tipo de entendimento que usamos quando dizemos que compreendemos um poema, uma peça musical, uma pessoa ou uma frase). Não basta a esta forma de conhecimento ligar uma palavra com cada um dos objectos que ela denomina; é necessário relacionar as palavras na frase de acordo com a cultura a que se pertence e aos chamados “jogos da linguagem”, que também poderiam ser denominados como a linguagem dentro de um contexto (cultural, ético, religioso, artístico, filosófico, religioso, profissional, etc.).






Um exemplo destas duas diferentes formas de conhecimento é o que acontece quando uma criança está no processo de aprendizagem da sua língua nativa. Quando ela a usa de forma relativamente expedita, nós não dizemos que ela desenvolveu uma teoria sobre a linguagem, mas sim que ela usa a linguagem. Sabemos que ela compreende e usa a linguagem de forma conveniente quando ela tem um comportamento apropriado a quem reconhece uma frase de outrem (por exemplo, agir em resposta a uma ordem verbal). O mesmo pode ser dito relativamente à música. Nós classificamos uma música, usando expressões que são reconhecidas dentro do nosso contexto cultural.


Entender uma peça musical não é fazer um estudo de acústica ou de física de ondas sonoras. Nenhum destes estudos nos fazem compreender uma peça de Mozart, tal como o estudo do BOLD (blood oxygen level dependent contrast imaging) na ressonância magnética funcional ou de uma qualquer tubulina no neurónio não fazem com que nos compreendamos melhor ou que avaliemos melhor os outros.




Então se a compreensão de uma pessoa não pode ser obtida com o tipo de generalizações usadas pela ciência, como pode ser obtida? Ou não pode ser obtida de todo? Refiro-me à capacidade de discernir se uma pessoa realmente sente e pensa aquilo que está a dizer, se as emoções que expressa são autênticas ou são fingidas. Existe a possibilidade de uma avaliação correcta acerca do carácter genuíno ou fingido da expressão de sentimentos?




Wittgenstein afirma que sim.




No entanto, a evidência para tais julgamentos é “imponderável”. A evidência imponderável envolve “subtilezas do olhar, gestos, alterações de tonalidade. Consigo distinguir um olhar de afeição embora não o consiga definir muito bem…Se fosse um pintor de talento poderia representar convenientemente um olhar autêntico e um olhar fingido, numa tela.”


Imponderável, contudo, não significa espúrio. Wittgenstein dá o exemplo do stáretz Zóssima em Os Irmãos Karamasov, capaz de reconhecer com um único olhar na face de quem o procura o motivo da sua vinda, o que quer que atormenta a sua consciência, porque, segundo Dostoiévski, ele durante anos tinha contactado com uma pléiade de desgraças, segredos, confissões, que o dotavam dessa capacidade de conhecer a alma humana. “Sim, realmente existem pessoas assim; pessoas que conseguem observar directamente a alma dos outros e avisá-los”, disse Wittgenstein a Maurice Drury. “Um processo interno dependente de factores externos” é uma das passagens mais citadas de Investigações Filosóficas e lembra muito In Aid of a Grammar of Assent de Newman.2
Newman explica que a dúvida, a dedução e a premissa são actos mentais que correspondem a modos como nos relacionamos com as proposições: “Uma questão é a expressão da dúvida, a conclusão é a expressão de um acto dedutivo, a premissa é a expressão de uma acto de concordância ou adesão.”
A adesão é aceitar incondicionalmente o valor lógico de uma determinada proposição. A premissa “Jesus é o Senhor” difere no fundamental das proposições “eu sei que Jesus é o Senhor” ou “eu cheguei à conclusão que Jesus é o Senhor”. Então, uma gramática de premissas consiste em estabelecer de que modo nós podemos aderir razoavelmente, sem faltar à verdade e com confiança, à proposição “Jesus é o Senhor”.



Deste modo, as proposições podem assumir uma forma interrogativa, condicional ou categórica. “Não ter dúvida” sobre uma tese ou proposição implica ou deduzi-la ou aderir a ela (assumir o seu valor lógico a priori). A premissa é incondicional, enquanto que a dedução não é, pois deriva da assumpção de outras premissas. No entanto, no mundo moderno a dúvida é uma premissa, uma vez que duvidar do valor de uma proposição geralmente significa tomá-la como errada.
Se quisermos avaliar se a proposição “A é C” é verdadeira ou falsa, teremos que saber algo sobre A e sobre C. A propriedade transitiva permite dizer que se A é B e B é C, então A é C; é o silogismo e resulta da dedução. Este processo é completamente diferente de simplesmente afirmar que A é C. Deduzir que A é C não requere a apreensão de A ou de C, uma vez que a conclusão resulta de um processo lógico, ou de uma relação formal dos termos, não do seu conteúdo concreto. No entanto, a aceitação da premissa A é C implica que a mente aceite a proposição, sem ter consciência das razões pelas quais tal aceitação se processa – é inconsciente (adesão ou consentimento simples) - ou procurando saber deliberadamente que razões sustentam a proposição – é consciente e deliberada (adesão complexa).


Para Locke, a certeza resulta apenas de probabilidade, que ao tornar-se muito alta é tratada, do ponto de vista prático, como certeza.
Mas para Newman este critério não é aceitável por duas razões. Por um lado, a nossa vida quotidiana baseia-se em premissas que tomamos como adquiridas e não em meras probabilidades de que estejamos certos. Por outro lado, é a própria noção de probabilidade, que no entender de Locke seria o suporte da certeza, que em verdade, conduz ao desmoronar da certeza, na medida em que tudo se torna relativo, tudo é mera probabilidade; a probabilidade torna-se a única certeza. O perigo da doutrina da probabilidade é a destruição da certeza, ao considerar todas as conclusões como duvidosas, reduzindo a verdade à mera opinião.
A razão nunca nos obriga à certeza, excepto em face da prova irrefutável. Mas tal prova nunca pode ser fornecida pela lógica das palavras, pela simples razão de que a certeza é um processo mental, tal como a dedução que a ela poderia conduzir. Existe algum critério que possa medir o rigor de uma dedução, de tal forma que nos possamos sentir seguros quanto à certeza da proposição deduzida, sempre que a nossa garantia não possua uma natureza científica?




A resposta para isso é uma atitude comum que é mais complexa do que o mero silogismo: o sentido ilativo. O sentido ilactivo ilustra o modo como funciona a mente humana. É a sabedoria prática ou phronesis de Aristóteles. A mente reconhece o modo como diferentes probabilidades convergem para uma conclusão inevitável.
A nossa mente funciona sempre perante os factos do mundo como se a sua certeza fosse sólida, sem nenhuma teoria do conhecimento, considerando ser aceitável possuir a certeza, mesmo perante uma dúvida razoável. O sentido ilativo avalia quais as probabilidades que podem ser tomadas no seu conjunto como sinal da certeza, embora isoladamente não sirvam como tal. O sentido ilativo preenche o espaço entre a premissa e a certeza, o espaço das probabilidades. 


Por oposição, a certeza afirmada como mera função de probabilidade remete tudo o que for menos de 100% certo para o campo das probabilidades e tudo o que for 100% certo necessariamente terá que ser suportado por alguma evidência empírica. O primeiro Wittgenstein ao reduzir a certeza aos factos do mundo estava precisamente a seguir esta doutrina da certeza baseada em probabilidades. Embora Locke pretendesse proteger a verdade da dúvida, apenas conseguiu incorporar a dúvida na própria articulação da verdade.
Para Newman existem duas atitudes a priori que são erradas: negar a possibilidade da certeza, reduzindo-a a graus de probabilidade, ou afirmar a certeza por exaltar a nossa capacidade de conhecer. Contra ambas, Newman apela “à voz do senso comum” que justifica a adesão da mente à verdade por meio da assumpção de que, mesmo perante a falta de evidência indestrutível, a certeza pode ser sentida.
Se adoptássemos como definição de certeza a teoria lockiana das probabilidades, toda a fé seria destruída, porque uma oração correria do seguinte modo: “Meu Deus, se tu existires, salva a minha alma, se eu tiver alma”. Dificilmente alguém poderá orar deste modo esperando ser atendido, pois não se espera de alguém a quem não se reconhece sequer a existência, uma ação a que não se reconhece o objecto.
O cepticismo torna-se um estado da mente que envolve um sistema doutrinal que lhe é próprio, a dúvida universal, que apenas pode ser resolvida pelo cientismo, as proposições da ciência natural.


No entanto, nós lidamos no nosso quotidiano com convicções que não admitem a dúvida e em que duvidar delas seria completamente ridículo. Para um português, afirmar que Portugal possui uma costa marítima e que partilha uma fronteira com a Espanha não necessita de verificação empírica por uma imagem aérea ou por meio de uma viagem de contorno. Tudo em Portugal implica essas premissas: a sua história, o nome de certas terras, as suas trocas comerciais, os acontecimentos do dia a dia, o sistema comercial e social, as relações políticas. Portanto, nós não dizemos “eu sei que Portugal tem uma fronteira marítima e uma fronteira com a Espanha”, mas simplesmente “Portugal tem uma fronteira marítima e uma fronteira com a Espanha”. Essas duas premissas não carecem de verificação empírica; são parte da nossa vida. Mesmo quem nunca viu o mar (hoje em dia raro, mas outrora relativamente frequente) sabe que Portugal é uma nação marítima, faz parte da sua idiossincrasia.
Wittgenstein muda a sua posição em On Certainty:3 “Em todo o sistema dos nossos jogos de linguagem, essas assumpções são fundacionais. A assumpção forma a base da acção, e, por consequência, do pensamento. Temos que tomar conhecimento de que mesmo que alguém não use os termos “eu sei”, a sua conduta o pressupõe.


E aqui reside, segundo Newman e Wittgenstein, o erro do céptico: o conhecimento concebido como meramente empírico e provável não é, nem pode ser, a base moral da nossa vida. Era a isso que Wittgenstein se referia quando admitia que o sentido do mundo estava fora das proposições da ciência natural e a que Newman se refere ao dizer que ao darmos valor ao “sentir comum dos homens”, o crente pode possuir fé, não porque lhe falte a razão, mas porque a fé pode ser inteiramente razoável, mesmo que a demonstração lógica não esteja disponível.4


Ao pensar ter descoberto o fundamento da certeza no âmbito da probabilidade, o céptico pensa estar a afirmar uma solução que o não é e pensa ter descoberto algo novo, quando não descobriu nada. O crente sabe muito bem que não se pode alcançar uma certeza “sólida, inegável, absoluta e imutável” neste mundo; mas também sabe que o cepticismo não é o modo como funciona a vida humana.
Para Newman, se tudo fosse uma questão de graus de opinião, como se explicaria o sofrimento dos mártires? Ele só se compreende porque a Igreja Católica e o cepticismo assentam em dois dogmas de natureza diferente; a primeira por premissa, o segundo pela dúvida: “Muitos homens morrem por um dogma, nenhum por uma dedução. A dedução é uma opinião de que estamos seguros e sempre se disse que se afirmamos que estamos seguros é porque temos o hábito de duvidar; não é algo que é. Dizer que uma coisa tem que ser, é admitir que possa não ser. Ninguém morre por conjecturas; as pessoas morrem por coisas reais."
Chesterton viu claramente este perigo ao afirmar: “O mundo moderno não distinguirá entre questões de opinião e questões de princípio; e acabará por tratar a ambos como meras questões de gosto.”5




Antonio Campos




1 John Heaton and Judy Groves. Wittgenstein for Beginners. Penguin Books, London. ISBN 1 874166 17 X.


2  Aidan Nichols, A Grammar of Consent. T.& T.Clark Ltd, 1991. ISBN: 978-0-268-01026-3.


3 Wittgenstein, On Certainty. Basil Blackwell,1969. ISBN: 0631120009.


4 Ralph Wood, John Henry Newman, the Illative Sense, and the Threat of Skepticism, 2011.


5 Chesterton, The New Witness, 1919.