sábado, 28 de setembro de 2013

KANT PARA PRINCIPIANTES - A Crítica da Razão Pura: os limites da razão humana para adquirir o verdadeiro e seguro conhecimento



“O colapso da filosofia germânica ocorre sempre no começo dos argumentos, mais do que no desenvolvimento e na conclusão”, G. K. Chesterton6



Este livro23 publicado em 1781 não teve sucesso e Kant sentiu-se na necessidade de
dele escrever um resumo, em forma de introdução, menos labiríntico, dois anos depois: Prolegómenos de Toda a Metafísica Futura (1783). Para Kant, a filosofia cessa a dimensão metafísica e passa a ser “a ciência da relação de todo o conhecimento com os fins essenciais da razão humana” ou “o amor que o ser razoável tem pelos fins supremos da razão humana.” Trocado por miúdos, o conhecimento torna-se apenas subjectivo e relativo a cada mente humana, é essencialmente relativo e imanentista.

Toda a percepção entra em formas que são inatas, naquilo a que Kant chama Imaginação (formas de sensibilidade: Espaço e Tempo) e naquilo a que Kant chama o Entendimento (formas do entendimento ou categorias)24, tal como a água ao entrar em recipientes diferentes adopta a forma de cada um dos recipientes. Espaço e Tempo são independentes entre si, um como forma de sensibilidade “interna”, outro como forma de sensibilidade “externa”.

O sujeito é o construtor do conhecimento, logo espaço e tempo não são propriedades do objecto, mas sim do sujeito. Sendo assim, nós é que colocamos espaço e tempo nas imagens que efectuamos das coisas, i.e., nos fenómenos. Na continuação da análise ao problema do conhecimento, consideramos agora a questão da definição de Espaço e Tempo.

Para Kant, os conceitos de espaço e tempo não residem na natureza, mas dentro da nossa mente. São inatos e imanentes, vêm “de dentro”.
Como podem, a noção de espaço e tempo e as próprias categorias, ser universais e necessárias, a priori, quando todas as mentes humanas diferem imenso entre elas? A orientação no próprio espaço difere imenso entre as pessoas e ao longo da vida. Porque é que uns vêem “coordenadas” no espaço que outros não vêem? E se dentro do mesmo sujeito, varia ao longo da vida, não se aprende, não tem algo de empírico?

Claro que esta formulação levanta uma objecção séria: se o Espaço e o Tempo só existem dentro e dependentes do homem e nunca na natureza em si, se a ciência nos revela que a origem do Universo é anterior ao homem, como poderiam existir o espaço e o tempo antes que houvesse homem?

Citando o livro de Job (que Kant apreciava particularmente): “Onde estavas tu quando lancei os fundamentos da Terra?”25

Outra objecção prende-se com a afirmação de Kant de que interpretamos o tempo como uma sucessão, mas que tal nada tem a ver com a propriedade das coisas que observamos, mas apenas com nós próprios. O que Kant não explica é como percebemos a diferença de umas coisas nessa sucessão e não percebemos a diferença de outras. Por exemplo um rosto altera-se com o passar do tempo, mas numa rocha não percebemos a mesma alteração. Não se compreende a diferença se afirmarmos, como Kant, que não sabemos se existe nas coisas uma sucessão real26.


Para Kant é impossível imaginar o infinito e o vazio. Após a exploração espacial e a formulação da teoria do Big Bang, nós não só sabemos que o vazio existe, como sabemos que uma quantidade finita de matéria e energia se expande num espaço vazio infinito. Portanto, temos uma noção empírica quer do infinito quer do vazio.

Temos a representação matemática do vazio, 0 ou { }, e do infinito, ∞ . E para Kant são válidos os conhecimentos, sobretudo matemáticos, que possuímos na nossa mente, os chamados juízos a priori.

Mas se o espaço e o tempo parecem estar ligados no mundo macroscópico com o Big Bang, o que dizer do mundo ultraestrutural? No mundo subatómico, com o princípio da incerteza de Heisenberg, demonstra-se que espaço e tempo estão intrinsecamente relacionados, por meio da velocidade, e que tal interfere com a possibilidade de localização espacial.

Outro exemplo: a constituição da matéria implica movimento das suas partículas, ou seja, espaço percorrido por unidade de tempo. Quanto maior a energia, maior essa agitação. Não existe matéria “parada”. Sabe-se que o vazio inimaginável para Kant, é o maior constituinte da matéria: à escala, a distância entre dois átomos adjacentes equivale a uma distância de 30 Km entre dois indivíduos.

Na verdade, nós somos essencialmente vazios.

 E pela conversibilidade entre matéria e energia, E=mc2 (a chamada equação da destruição), a energia é apenas a forma que a matéria assume ou vice-versa, m=E/c2 (também chamada a equação da criação).


Então porque Kant afirma ostensivamente que ao homem não é dado imaginar o infinito e o vazio? A resposta só pode ser uma: para contrariar o conceito metafísico de espaço e tempo como condição da existência das coisas, o conceito metafísico de que espaço e tempo são conhecidos a partir do objecto, o conceito metafísico de que espaço e tempo estão para além do homem e que, para eles, também existe uma causa primeira, como a própria ciência postula com a Teoria do Big Bang.

Permanece a ideia de que Kant não seguiu o caminho do cientista ou do livre pensador, que a partir de dados constrói conclusões; fica a ideia deprimente de que Kant partiu de premissas prévias, isto é, de que é necessário negar a metafísica para se ser racional.


Se a mente humana passa a ser a dimensão máxima do conhecimento, ignora-se a variabilidade subjectiva, a natureza particulada do real, representada por cada mente humana em particular e pelo conjunto das mentes humanas. Na tentativa de arranjar uma certeza absoluta, Kant diminui a sensibilidade da sua teorização para tentar ganhar especificidade. O erro de análise em que incorre é o de aumentar o número falsos negativos- haverá muita coisa que fica por detectar.


A razão humana não é autónoma. Ela não só depende do sujeito como do contexto cultural e histórico. A própria mente de Kant estava condicionada pelos acontecimentos da Revolução Americana e Francesa, pelos postulados de Descartes e de JJ Rousseau, pelo ambiente político e social na Prússia, por Frederico, o Grande, e Voltaire, pelo empirismo e o racionalismo, pelo mecanicismo de Newton.

Na verdade, estava longe de se supor que existiriam formulações da ciência que estão para além da mecânica clássica de Newton, como a teoria quântica e a teoria da relatividade. Os contemporâneos de Kant (e isto demonstra como a mente humana é escrava do seu tempo) pensavam que todas as descobertas físicas apenas se somariam ao edifício de Newton e nada existiria fora do seu âmbito. É curioso ser a ciência a revelar a insuficiência do pensamento de Kant.



Kant parte desta crença de base, o cepticismo, para desenvolver a noção de três juízos27, cuja finalidade fundamental é excluir uma noção cognoscível da metafísica ou da existência de Deus:

- Os juízos analíticos, a priori: são compostos por noções evidentes que não resultam da experiência e em que o predicado (isto é, a qualidade do sujeito) nada acrescenta ao sujeito. Por exemplo, o triângulo tem três ângulos ou todo o efeito tem uma causa. Kant exclui desta zona de evidência qualquer conceito moral ou qualquer noção de existência transcendental. É o domínio do Espaço e da Geometria. Mas Kant não pode incluir neste conceito a geometria não euclidiana28.


- Os juízos sintéticos a posteriori: decorrem da experiência. Por exemplo, a neve é branca ou todas as pessoas nesta casa são mulheres. Apesar de resultarem da experiência, Kant afirma que estes juízos não têm validade científica, porque se podem modificar com o tempo. Esta afirmação ignora que os conceitos científicos também se modificam com o tempo.
Esta é uma refutação forte contra a própria existência autónoma dos juízos sintéticos a priori.


-Os juízos sintéticos a priori: Kant diz que se estes juízos não existissem não poderíamos falar de conhecimento científico. Ou seja, todo o conhecimento científico, para Kant o verdadeiro conhecimento, é deste tipo. Curiosamente muitos duvidam da sua existência e afirmam que nesta existência assenta toda a construção kanteana. Na verdade Kant tem a noção de que o conhecimento científico se adquire por experiência, mas a experiência é, para Kant, não universal- Kant mistura a experiência subjectiva, pessoal, empírica, com a experiência obtida pelo método científico - daí a sua conclusão que o conhecimento obtido pela experiência não é universal. Ele ter-se-ia que somar ao edifício científico mecanicista Newtoniano, constituindo assim o banco de dados dos juízos sintéticos a priori.


Infelizmente para Kant, a ciência não se limita a somar. A ciência destrói conceitos anteriores e está constantemente a refazer. Além disso, como o demonstraram a teoria quântica e a teoria da relatividade, a ciência encerra em si um grande grau de incerteza. Uma vez que a teoria da relatividade e a teoria quântica encerram algumas contradições mutuamente exclusivas, elas retratam apenas dois modos diferentes de observar o ambiente físico. Provavelmente, ambas estarão certas, mas pode perfeitamente supor-se que ambas estarão erradas.

Ainda sobre os juízos sintéticos à priori, Kant dá o exemplo de “a linha recta é o caminho mais curto entre dois pontos”. A sua justificação é a de que “mais curto” (quantidade) não depende do conceito de “linha recta”(qualidade); que “mais curto” acrescenta algo a linha recta; não depende da experiência; é reconhecido como universal e necessário, ou seja, verdadeiro para todos os homens.

Mas será mesmo assim?

- Mais curto pode não ser algo de quantitativo, pode ser uma qualidade, um comparativo. Por exemplo, um homem mais curto do que outro pode perfeitamente ter 1,80m (desde que o outro meça por ex. 1,85m).

- O caminho mais curto entre dois pontos pode nada acrescentar a “linha recta”, na medida em que, por definição, a linha recta é o caminho mais curto entre dois pontos.
Outro exemplo é que Kant atribuía aos teoremas o carácter de juízo sintético a priori, mas todos sabem que os matemáticos avançam segundo princípio da contradição.

E será que o conhecimento científico não avança com base na experiência, sendo sintético a posteriori?

Tomemos a proposição: “O caminho mais curto entre dois pontos é uma linha recta.” Hoje, com base na experiência, estamos em condições de afirmar que mais frequentemente no universo, em virtude do conceito de massa e de campo, o caminho mais curto entre dois pontos é, de facto, uma linha curva. Outro conceito, é de que o caminho mais curto entre dois pontos, quando um deles se desloca no espaço, é de facto uma linha parabólica.
Na verdade, verifica-se, hoje em dia, uma recusa geral em considerar as proposições geométricas como verdades sintéticas a priori28.

A dúvida: fica a ideia que o conceito de juízo sintético a priori foi construído propositadamente para encaixar a metafísica e a ideia de Deus, transformando a metafísica numa imagem apenas interna ao homem e dele dependente, o que encerra em si uma outra antinomia.



“Se desejamos pensar bem, temos que procurar conhecer a verdade, quer dizer, a realidade das coisas. De que serve discorrer com subtileza, ou com profundidade aparente, se o pensamento não é conforme à realidade? Um simples lavrador, um modesto artesão, que conhecem bem os objectos da sua profissão, pensam e falam melhor sobre eles que um filósofo presunçoso, que, em elevados conceitos e palavras altissonantes, lhes quer dar lições sobre aquilo que ele não entende”, Jaime Balmes29.






23 I. Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, 4ª ed., 2001.

24 Na primeira secção da crítica da razão pura, A Estética Transcendental, que significa a sensação dos númenos, Kant deixa bem claro de que não se preocupa com o que os dados podem ser nem com o que representam. Apenas se preocupa com a sua forma, como são formados na mente humana. Aliás, fruto da sua noção de que não existe o conceito de presença, o objecto em si ou númeno pode muito bem não existir e, desse modo, a imagem ou representação pode, de facto, representar o objecto ou ser ela própria o objecto, isto é, existir sem aquilo que deveria representar- Kant oscila entre a afirmação de que o mundo numenal “é” ou de que “não é”. Na verdade, fica-se pela afirmação de que nada se pode dizer sobre o mundo numenal- a sua influência empirista não desaparece de todo e a formulação de que tudo o que conhecemos pode ser virtual, uma ilusão, não é eliminada totalmente do seu raciocínio.

Kant denomina a percepção como imaginação e o reconhecimento como entendimento, como se os dados entrassem em prateleiras pré-formatadas na mente como a água entra num recipiente adoptando a forma do recipiente, as formas:

Formas da sensibilidade: Espaço e Tempo

Formas do entendimento: Categorias
[substância (homem), quantidade (1,80m), qualidade (negro), relação (triplo), lugar (casa- mas casa pode cair em substância e Kant não justifica a antinomia), tempo (hoje), posição (erecto), posse (tem camisa), acção (corre), passividade (é cronometrado)].
Estas formas a priori alteram o dado recebido de forma que o conhecimento recebido não é o da coisa em si, mas o resultado do que o sujeito captou da coisa mais o que o sujeito colocou na coisa.


25 Job, 38, 4. Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos), 9ª ed., Lisboa, 1981.


26 Existe algo da nossa experiência com essas características, i.e., em que a realidade não está nas coisas mas em nós, que pode ser usado como refutação simples: o mundo onírico. Nos sonhos, as imagens da nossa vida real são tomadas como objecto; objecto para as imagens dos sonhos. Mas a distinção entre sono e vigília assenta em pressupostos:

-a continuidade temporal (presente apenas na vigília),
-a universalidade (alguém me viu ontem a jantar, mas ninguém sabe o que eu sonhei),
-o nexo causal ou princípio causa-efeito (só nos sonhos eu nunca morro),
-o princípio da não contradição (só nos sonhos posso ser simultaneamente solteiro e casado),
-a localização no espaço e no tempo (se o espaço e o tempo apenas existissem dentro da nossa cabeça, por que razão nos sonhos não existe continuidade espácio-temporal, uma vez que vêm “de dentro”?).

Será um exagero afirmar que, por vezes, estes filósofos sonham acordados?

27 Carta a Marcus Herz, Fevereiro de 1772.
Kant explica:

1- Ser casado significa ser não solteiro, ou seja, o efeito (ser casado) está contido na causa (ser não solteiro), é um juízo (analítico) a priori.

2- Mas no exemplo de o João é casado, o predicado (a qualidade ou característica) já não está contido no sujeito, pois nem todos os Joões são casados. É um juízo sintético a posteriori.

3- Os juízos sintéticos a priori devem ser rigorosamente independentes da experiência. Dá como exemplo os juízos matemáticos, 2+3=5. O cinco encontra-se ligado ao 2 necessariamente pela operação + e pelo número 3. São universais e necessários e independem da experiência. Kant afirma ser este o domínio da matemática, da física e da metafísica.

a) É muito discutível que a álgebra e o cálculo matemático não resultem da experiência. A invenção do zero pelos árabes, ou, mais correctamente, pelos persas, é um exemplo elucidativo.

b) A operação exemplificada é universal e necessária porque foi efectuada com números ímpares. Vejamos o caso dos números pares, 2+2=4. Será que 4 se relaciona com o número dois necessariamente pela operação +? Não. Também a operação x os relaciona do mesmo modo. Pode argumentar-se que a multiplicação é, na verdade uma adição sucessiva de parcelas semelhantes. É verdade, mas implica um conceito adicional.

28 Júlio Esteves. O Papel da Intuição e dos Conceitos nas Teorias Kanteanas da Geometria. Studia Kantiana 14 (2013):34-54.

29 Jaime Balmes, El Critério, A. Brusi, 1845: http://dfists.ua.es/~gil/elcriterio.pdf.


1 comentário:

  1. Parabens esta muito bom tenho 14 anos sou bastante interesado por filosofia gostei do blog

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