segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Socialismo, Uma Religião Determinista II





A tese de que o socialismo é uma religião deverá agora incidir sobre dois aspectos particulares que
caracterizam uma religião – a legitimação e o exercício do poder: o sacerdócio e a realeza. Nenhuma religião deixa de cuidar da realidade deste mundo apesar de apontar a uma outra realidade, metafísica ou utópica. O que caracteriza o socialismo é naturalmente o materialismo, logo a legitimação resultará da construção utópica e o exercício do poder do modo como é organizado e concebido o Estado.

O socialismo é realista no sentido em que há categorias ou agrupamentos (forças de produção material, Estado, humanidade, classe social), embora não sejam universais no sentido platónico (características comuns partilhadas por objectos concretos). Por oposição aos clássicos universais (homem, verde, cadeira), estas categorias não têm uma ligação clara à experiência empírica; são construções abstractas. A sede dos universais não seria metafísica mas sim na mente humana – é um conceptualismo. Este realismo socialista é hegeliano na convicção de que o mundo tende mecanicamente para um fim determinado; nós não podemos mudar o mundo, apenas descobri-lo. Esta visão fornece o determinismo: nós não podemos votar para que π não seja 3,14+; π é o que é.

Maximo Gorki proclamaria o realismo socialista. Um realismo amputado, no sentido em que nega o ser das coisas, realçando apenas a sua transformação contínua. Nesse sentido, o futuro seria mais real do que o presente. Chesterton afirmaria: “Para se ser um revolucionário é necessário ser primeiro um revelador. É necessário acreditar na suficiência de uma teoria sobre o Universo ou sobre o Estado.”22

Estaline afirmaria: “A produção de almas é mais importante do que a produção de tanques e portanto eu brindo a vós escritores, os engenheiros da alma humana.”23


O socialismo é nominalista no sentido em que os universais são construções sociais. Não existem princípios eternos e nós podemos decidir o que é justo. O mundo é uma construção social e o que cada indivíduo pensa não tem interesse. Um indivíduo não tem o direito de ter uma opinião própria, o que interessa é o que a maioria das pessoas pensa. O direito de pensar diferente depende de uma concessão do poder. Desta conjunção realismo socialista – nominalismo moral e social, resulta o desprezo pela unicidade e diversidade, como em Hegel. É um nominalismo amputado, uma vez que não admite a importância do indivíduo particular e nega o conceito de Abelardo de que as palavras exprimem um significado que lhes é anterior e que é universal.

O mundo somos nós, muda dialecticamente, temos que o organizar racionalmente porque as leis da História são as leis da nossa razão. O Estado é um todo organizado, racional, que não pode admitir a liberdade do indivíduo. O livre-arbítrio é um absurdo e o indivíduo será livre quando tiver consciência do Estado como forma suprema de organização da racionalidade humana, infalível, porque intérprete do desenrolar da História – este é o determinismo histórico hegeliano que tanto influenciaria Marx.


Resumidamente, desta Weltanschauung de Hegel resultam as ideias de Marx:

1- A realidade é um processo histórico.

2 – O modo como esse processo se desenrola é dialético.

3 – Existe uma meta específica.

4 – Essa meta é uma sociedade sem conflitos (uma paz universal).

5 – Enquanto não alcançarmos essa meta estamos num estado de alienação.

6 – O Estado é a forma superior de organização racional; somos livres quando obedecemos ao Estado assim organizado. O estadista é o intérprete da História; lê a História.


A principal contribuição de Marx é a concepção materialista da História: o desenvolvimento não se processa primariamente na mente, como dizia Hegel, mas sim nas forças de produção material, que regem o desenvolvimento histórico e condicionam o desenvolvimento mental. Daí a diabolização do passado: só seremos livres quando nos libertarmos das estruturas económicas do passado. Só após a mudança dessas forças económicas (que fazem parte de nós próprios e cuja expressão foi a tradição e a religião) é que chegaremos à noção de “somos livres”.





Estado


O Estado consiste então em homens racionais, i.e., libertos da crença em religiões, firmemente convictos de que existe um caminho fixo na História a percorrer, chamado progresso, rumo a uma sociedade sem classes, onde cessará o conflito. O Estado detém a autoridade e a moralidade:

“Lenin disse que a religião é o ópio do povo. Mas é por acreditar em Deus que podemos criticar o Estado. Uma vez abolido Deus, o Estado torna-se o deus. (...) A verdade é que o ateísmo é o ópio do povo. Sempre que as pessoas não acreditarem em algo para além do mundo, passam a adorar o mundo.”24


O indivíduo torna-se livre quando aceita o Estado como entidade última e lhe obedece. O Estado em vez de servir o povo, serve-se do povo. O povo é controlado a partir da modulação da opinião pública pelos meios de comunicação social, pelos intelectuais das universidades, pela propaganda. O acesso a esses centros de opinião só é permitido a "homens racionais livres". Incentivos económicos massivos são fornecidos a indivíduos sem ocupação para manter uma corte de fiéis, um suporte social e político. Tudo isto é alimentado pelo trabalho dos homens do povo, alienando-os de parte do seu rendimento legítimo. Tudo isto se funda numa desigualdade dissimulada e violenta. O poder absoluto corrompe absolutamente:

“O socialismo é um sistema que tem o colectivismo como responsável por todos os processos económicos, todos os que envolvem o essencial à vida. Se algo importante é vendido foi o governo o responsável; se algo importante for dado, foi o governo que deu; se algo puder ser tolerado só o governo o poderá dizer. Isto é o exacto reverso da anarquia; é o entusiasmo extremo pela autoridade. De certo modo é um triunfo da mente; é a aceitação colectiva de uma responsabilidade não partilhada…Um governo socialista, por natureza, não tolera nenhuma oposição, porque se é certo que do governo depende tudo, é absurdo exigir ao governo que crie uma autêntica oposição.

A oposição depende da liberdade e da propriedade…O crítico do Estado só pode existir quando um sentido religioso da justiça salvaguarda as suas ideias, quer se traduzam no uso do arco e da flecha ou pelo menos, no uso da sua caneta ou da imprensa escrita. É absurdo supor que ele possa pedir emprestada a caneta do rei para promover o regicídio, como é absurdo que ele possa usar a imprensa do governo para expor a corrupção no seio desse mesmo governo. No entanto, é da própria natureza do socialismo, que a menos que toda a imprensa seja do governo, os jornalistas devam ser perseguidos. Tudo se reduz à justiça do Estado; é colocar todos os ovos no mesmo cesto. Muitos deles serão podres, mas ainda assim jamais se poderão usar num processo eleitoral. ”21




Razão e Coração



Precisamente porque os sistemas sociais e políticos, como o socialismo, são baseados em abstracções (raça, classe social), o intelectual socialista apresenta aquela característica de uma certa frieza para com o homem comum (a chegada dos operários ao socialismo é tardia; a dos camponeses improvável). Um intelecto não formatado pela alegria e pelo senso comum do homem; uma mente que perdeu o contacto com a realidade na busca da última sabedoria.

“É essa coisa que confunde o intelecto e silencia o coração.”25

A única realidade que o intelecto concebe é a uniformidade, não concebe a unidade na diversidade. No cerne da sua filosofia reside a convicção de que a realidade, por ser um processo em desenvolvimento, não pode ser apreendida logicamente, mas sim dialeticamente. Esta filosofia é aceite como um dogma. Para Chesterton, um movimento revolucionário para ter sucesso deve fundar-se em exaltar os direitos do homem e não em realçar os seus defeitos, i.e., deve ser positiva para conferir esperança e não negativa porque origina inveja e medo.

"A razão, isoladamente, encerra em si alguma analogia com a força bruta; aqueles que apelam à cabeça em vez de apelarem ao coração, por mais finos e polidos que sejam, são necessariamente homens de violência. Fala-se de "tocar o coração" de uma pessoa, mas não se pode fazer nada à cabeça, excepto "bater com ela na parede".
As necessidades do homem foram sempre certas, os seus argumentos foram sempre errados."26


Para o socialista só existem duas opções para o homem comum: cooperar na construção do socialismo ou ser eliminado. Não existe possibilidade de reversão à construção utópica, uma vez que o indivíduo particular não tem qualquer importância e o curso da História se encontra pré-determinado. Como dizia o socialista George Orwell: “O tempo em que decidimos o que é desejável ainda não chegou; o nosso dever actual é desejá-lo.”27


A alegria envolve a ideia de liberdade, simplicidade e humildade. Numa sociedade onde não existe liberdade não existe a espontaneidade e leveza da alegria.

“Os inimigos da religião consideram-na a coisa mais sombria do mundo. Mas para as pessoas religiosas, com igual sinceridade, é o ateísmo a coisa mais deprimente do mundo. Nas palavras de Shakespeare «encontra-se suspenso do céu envolto em trevas; e o progresso torna-se um cortejo fúnebre que acaba numa cova aberta». Uma fria inumanidade é a acusação que os socialistas usam contra a sociedade burguesa; mas essa é também a acusação mais comum contra o socialismo.”28

“Tendo repugnância por todos os soldados, por todos os padres, pelos mercadores, reis e príncipes, pelos legisladores, sentindo irritação pela gente do povo, desdenhando da classe média, tendo sido sempre ensinados que os camponeses são imobilistas e supersticiosos, estando aptos a aceitar que os operários não servem como material adequado ao verdadeiro Estado Científico ou Utopia dos Intelectuais – tendo rejeitado todas as tradições humanas para cada uma das suas versões do progresso, são deixados com uma humanidade que apenas pode amar o abstracto mas dificilmente o concreto.
Não sobra muito de humanidade quando se eliminam todas as pessoas tidas como obstáculo ao progresso da humanidade. O esboço que eles traçam de um mundo sem guerra é curiosamente um esboço difícil e em branco. Eles podem fazer mapas e diagramas sobre como evitar a morte, mas não conseguem pintar quadros; isto é, quadros de pessoas alegres que desfrutam a vida.”29



Patriotismo ou Imperialismo 



Contrariamente ao patriotismo, que reconhece o valor de uma nação entre iguais (uma entre pares), o socialismo encontraria duas respostas que são simultaneamente duas abstracções do intelecto e dois imperialismos: o socialismo nacionalista em que a comunidade é uma suposta raça e o socialismo internacionalista em que a comunidade é uma classe social. Em ambas existe o mesmo sentido do super-homem e em ambas não se olha a meios. Em ambas existe a mesma crença determinista e em ambas não existe, por isso mesmo, nenhum impulso para a acção moral. Nenhuma delas tem uma base científica: Marx nunca definiu classe social e a origem ariana não é uma raça – a raça seria caucasiana, à qual pertencem igualmente os semitas. Mas é muito improvável que os judeus assassinados pelos socialistas na Alemanha fossem todos semitas, a maioria seriam arianos asquenaze. Tal como eram arianos a maior parte dos milhões de católicos assassinados. Daí o argumento de Chesterton:

"Há relatos de judeus que são perseguidos na Europa e na Rússia e, embora não faça muita diferença para aqueles que são perseguidos, chamou-se-lhe «a perseguição de uma raça» e não a «perseguição de uma religião».
Ironicamente, não são os antigos sistemas que estão a perseguir os judeus, mas sim os novos sistemas (na Alemanha e na Rússia). Duvido muito que esses sistemas políticos pratiquem mais a perseguição de uma raça do que a perseguição de uma religião. Mas isso não faz deles menos perseguidores; faz mais.
O ponto mais importante da última teoria política é o de que se devem abolir os diferentes programas partidários e os diferentes partidos; que a imprensa da oposição se deva calar, e que um único partido seja autorizado…Ora aqui está um problema mais profundo que os progressistas nunca quiseram focar.
Mas ele mede o exacto sentido em que a humanidade muda: certas coisas devem desaparecer no séc. XIX para reaparecerem no séc. XX.”30



Este homem novo tem uma ânsia da Internacional proletária, outra abstracção, odiando as diferentes nações e as diferentes classes ocupacionais, com as suas diferentes idiossincrasias, pela mesma razão que odeia a família - o desprezo pelo homem comum e a ânsia pela uniformidade.

“Os modernos intelectuais não defendem o patriotismo. É por isso que uma estranha frieza e falsidade pende sobre eles quando se considera o seu amor pelo homem. Se se lhes pergunta se amam a humanidade responderão de pronto, inequivocamente, que sim. Mas se se lhes pergunta uma opinião sobre as classes que compõem essa mesma humanidade, constatar-se-á de pronto que as odeiam a todas: Odeiam reis, odeiam padres, odeiam a classe média, não convivem com soldados, marinheiros e trabalhadores; desconfiam dos homens de ciência e, no entanto, adoram a humanidade. Estão a deixar de ser humanos, num esforço para serem humanistas.”31


Uma das marcas do internacionalismo é o expansionismo militar, exactamente pelo mesmo motivo de todos os impérios: a rapacidade, o desprezo pelas outras nações, o sentido da superioridade e a indiferença e desconhecimento das realidade concreta de cada povo:

“Ser uma nação significa erguer-se ao nível dos seus iguais, ao passo que ser um império significa apenas pontapear os seus inferiores.”32

“Atingimos um tal estado de irrealidade pavorosa no mundo ocidental em que tudo é feito no papel. Os homens conhecem a sorte de um país nunca tendo encontrado um nativo; professam simpatia ou desprezo por pessoas que se os vissem na rua não saberiam dizer se eram polacos ou portugueses.”33

Esta atitude imperialista é mais um dos pontos de contacto entre socialismo e capitalismo, sustentando a tese de que o socialismo é uma criação do capitalismo:

“O meu país produziu sábios que podiam ter falado com Sócrates e poetas que poderiam ter falado com Dante, mas agora fala como se nunca tivesse feito algo de mais inteligente do que fundar colónias e pontapear os nativos.”34





A Realidade dialética: O Progresso




Para um socialista a realidade não é apreensível logicamente mas sim dialeticamente, uma vez que está em permanente transformação. É um hegelismo. O progresso é inevitável e é a sede da única e verdadeira realidade.

“Eu creio que até os socialistas admitiriam que se a propriedade pudesse ser melhor distribuída e assim continuar, isso seria melhor solução do que concentrar tudo nesse órgão coercivo chamado governo. O que o socialista afirma é que fomos demasiado longe na concentração da propriedade e que não existe volta atrás. Curiosamente também é isso que afirma o capitalista. Este diz que fomos muito longe no caminho do monopólio, da produção em massa e no domínio do mundo por um punhado de milionários de lado nenhum, para que possamos voltar às coisas sãs ou simples.
Pessoalmente, creio que o capitalista e o socialista são muito parecidos, sobretudo nessa grande qualidade unificadora de estarem ambos errados.
O seu maior erro é a sua conclusão final – é impossível voltar atrás. Eu penso que eles estão errados, mas uma coisa é certa: se eles estão certos, então tudo está errado. Se não existe nenhuma esperança de retorno, também não adianta continuar. Quando se chega à beira do precipício, é o amante da vida que tem a coragem de voltar atrás e só o pessimista continua a ser progressista.”35


Chesterton acusa os progressistas que idolatram o progresso mas não o norteiam por uma moral. Um progresso tecnológico não é necessariamente um progresso moral. O seu raciocínio foi corroborado pelos acontecimentos de ambas as guerras mundiais, pela corrida aos armamentos, pela eugenia expressa no racismo, no aborto e na eutanásia: “Eles falam de eficiência sem definirem que efeito pretendem” ou “ninguém tem o direito de falar de progresso sem antes falar de uma moral”.36

“Um progressista é sempre um conservador; ele conserva a direcção do progresso”.37


Curiosamente, para esta orientação do progresso, o determinismo teria que ser ajudado. É uma fé pouco confiante: os ajudantes consideram-se agentes desse mesmo determinismo apressando a história; por um lado atacando a religião que é a base da sua própria civilização e por outro lado instruindo os novos catequistas. Nas palavras de Marx, “a crítica da religião é uma pré-condição de todo o criticismo”. Feuerbach tem um vislumbre da fraqueza desta filosofia e da necessidade da acção: “o ensinamento materialista de que os homens são o produto da circunstância e da educação e de que a alteração dos seres humanos se deve à alteração das circunstâncias e da educação, não toma em conta o facto de que as circunstâncias também são alteradas pelos seres humanos; de que o educador também tem que ser educado.”38






Conclusão


Marx enganou-se na noção de valor e na noção de que o lucro representa a alienação de parte do tempo do trabalhador, omitindo o valor da propriedade, do investimento, do risco e do próprio trabalho do empresário. Precisamente porque construiu uma teoria de abolição da propriedade e da liberdade – uma igualdade no mínimo denominador comum, a miséria e o medo.

"Os socialistas não querem dividir a propriedade por igual; não querem dividir a propriedade e ponto final."39

Mas Marx enganou-se em outros pontos mais importantes:


1 – Mudadas as regras económicas, a natureza humana permanece. Quando o homem já não compete pela riqueza ainda compete pela razão e pelo desejo, como dizia Kant.

2 – Os “proletários de todo o mundo” é uma abstracção. E uma abstracção não se ergue nem poderia erguer.

“Homens que trabalham odeiam-se ou amam-se, admiram-se ou desprezam-se. Mas irem para a rua e sentirem-se internacionalmente unidos é uma sensação tão inconcebível para um trabalhador como para mim. Quando os pobres de um país pensam sobre os pobres de outro país pensam neles como «de outro país». Um homem não afirma que o problema proletário é muito grave na Polónia; ele afirma que é lamentável o modo como os trabalhadores são tratados na Polónia. Ele não afirma a vitória do proletariado sobre o governo na Prússia; ele afirma, «- aquelas salsichas alemãs afinal têm fibra!»”40

3 – A condição económica dos assalariados nos países industrializados não piorou, melhorou.

4 – O pensamento do homem é privado. Toda a acção é antes julgada moralmente por quem a pratica. A tentativa de controlar um ser humano nunca é universal ou absoluta. O reconhecimento desta impossibilidade explica o assassinato político.

“Não penses, faz. É exactamente o mesmo que dizer: não comas, digere. Tudo o que não é mecânico ou acidental envolve pensar. Tudo o que vem da vontade tem que primeiro passar pela mente.”41

5 - Na altura em que os proletários dirigissem o mundo, como bem dizia Bakunine, eles abandonariam a condição de proletários e passariam à condição de governantes; logo, os seus interesses mudariam.


“Não existe isso de uma elite sábia (o clube de pensadores); porque todos os homens são nascidos da loucura da Queda.

Considerem os mais fortes, os mais afortunados, os mais bonitos, os mais bem nascidos, os mais instruídos, os mais bem tratados homens da Terra e dêem-lhe um poder imenso durante meia hora; por serem homens eles vão começar a abusar do poder e a portar-se indecentemente..."42


6 – O homem é um ser moral e espiritual. Não vive apenas daquilo que assegura a subsistência. Existem coisas sem utilidade material que lhe são mais queridas do que a mera matéria; por outras palavras, é certo que o homem gosta de brinquedos, mas a maioria dos homens necessita mais de uma mãe do que de um brinquedo. Dizer que a comida e a bebida são o objectivo último do homem, uma vez que sem elas não consegue viver, é o mesmo que dizer que a gasolina é a finalidade última de um automóvel uma vez que sem ela não consegue andar:

“As coisas mais importantes da vida são inúteis: amor, amizade, devoção, paz – essas são coisas que apreciamos pelo que são e não pelo uso que podemos fazer delas. Nós precisamos de coisas inúteis uma vez que precisamos de aprender como encontrar valores intrínsecos. Então todo o mundo adquire um significado para nós e não apenas uma utilidade.”43





Chesterton reconhecia em The New Jerusalem a necessidade que um profeta mais recente tem de se apresentar como aquele que completa um profeta anterior. Por isso mesmo aponta que a auto-crítica é conditio sine qua non de toda a crítica, incluindo a religiosa.

Foi esta auto-crítica à aplicação prática do socialismo (à disseminação da miséria e do medo, aos crimes horrendos) que nunca foi feita, embora o socialismo (e Marx) acuse o cristianismo de tudo, por mais antigo e contraditório que seja:

“Nunca avaliaremos correctamente um movimento religioso ou moral na História a menos que olhemos para a sua teoria mas também para a sua prática.”44

A mesma ausência de uma correcta crítica acontece quando se admira um comunista que se mantém sincero e coerente nas suas convicções até ao fim:

“Nós não nos podemos contentar com a vaga frase moderna de que tudo é defensável desde que seja sincero. Um satanista sincero é um pior satanista. Existem teorias tão vis, crenças tão abomináveis, que só podemos suportar a sua existência por descrer da sua sinceridade. A sinceridade nestes casos não tem qualquer valor moral. É como dizer que um canibal é sincero quando aprecia comer um missionário. Aqueles que falam em «tolerar todas as opiniões» são fanáticos que apenas aceitam essa mesma opinião. Existem opiniões que são, quer em sentido legal quer literal, intoleráveis. Senão estamos a afirmar que alguém que agiu perfidamente está desculpado se tiver pensado perfidamente também.”45




António Campos


22 Prefácio de Creatures That Once Were Men de Maximo Gorki.

23 Arthur Golding, Isms and Ologies: 453 Difficult Doctrines You’ve Always Pretended to Understand.

24 Christendom in Dublin.

25 Middleton Murry, On The Necessity of Communism, Sobre O Deus do Credo Atanasiano.

26 Twelve Types, Charles II.

27 George Orwell, The Road to Wigan Pier, 1937.

28 On Being Old-Fashioned, Illustrated London News, 21 de Janeiro de 1911.

29 Illustrated London News, 9 de Outubro de 1926.

30 Western Science and Eastern Sorcery, The collected works of G K Chesterton, ILN, vol 36, 29 de Setembro de 1934, pág. 547; Changing Human Nature, The Collected Works of G K Chesterton, ILN, vol. 36, 29 de Setembro de 1934, pág. 488; In Defense of Sanity, About Believes, As I Was Saying, 1936, pág. 317.

31 The Defendant.

32 Tremendas Trivialidades.

33 The Patriotic Idea, England a Nation.

34 A Gap in the English Education, The Speaker, 4 de Maio de 1901.

35 Eliminating The Class Without Property, Illustrated London News, 8 de Novembro de 1924.

36 The Thing.

37 Introdução a Carlyle’s Past and Present, Oxford University Press, 1909.

38 Marx, Teses sobre Feuerbach.

39 A Maldição dos Rótulos. ILN 14.10.1911.

40 Socialism and the Nations, ILN, 07.12.1912.

41 Two Kinds of Paradox. ILN, 11.03.1911.

42 Carta a Robert Blatchford, 1904.

43 Roger Scrutton.

44 Mormonism and Theology, ILN, 13 de Maio de 1911.

45 Madness and Responsibility, ILN, 24 de Fevereiro de 1912.


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