domingo, 27 de julho de 2014

Chesterton Para Principiantes - Introdução





Chesterton dizia que todo o escritor possui a sua filosofia. A filosofia de Chesterton refuta o
cepticismo. O que se entende por cepticismo? Cepticismo significa colocar em causa tudo quanto se conhece na tentativa de encontrar uma fonte segura de conhecimento. “Eu duvido, portanto eu penso, logo eu existo”, foi a sua formulação moderna que se iniciou no cartesianismo e se estendeu ao empirismo e ao idealismo. Na sua base, como afirmação da realidade, e por conseguinte da existência, encontra-se uma fé na razão, na mente daquele que pensa. Portanto, a realidade é medida pela razão daquele que com ela interage e apresenta um espectro que vai da crença apenas numa realidade interna até à admissão de uma realidade externa que chega pelos sentidos, mas que existe apenas na medida em que é compreendida, i.e., pensada ou formatada na mente. Ou seja, para o cepticismo, que é o pasto da filosofia moderna, não existe possibilidade de afirmar uma realidade completamente independente do observador e muito menos uma realidade impossível de ser apreendida.

A filosofia de Chesterton assenta no conceito de essência e existência e rejeita o cepticismo. Para Chesterton, a realidade mais importante não é a essência, mas a existência, ou seja, as coisas primeiro existem e só depois são aquilo que são. Portanto, uma cadeira e um homem partilham uma propriedade que lhes é comum, a existência. Essa propriedade é compreendida antes daquilo que os distingue, i.e., a essência, na medida em que se não existissem não havia modo de se distinguirem. Portanto, para Chesterton a existência é mais importante do que  a essência, embora como veremos mais tarde, a essência seja anterior à existência. Este conceito tomista é essencial para se entender a diferença entre a filosofia do senso comum e o cepticismo.

Enquanto que para o cepticismo é necessário duvidar de tudo até encontrar uma base última indubitável como definição da realidade, no pensamento de Chesterton a realidade está ligada à existência. A existência é real. Não está em causa “ser ou não ser? Eis a questão” mas sim “Ser, eis a resposta.” Demos um exemplo concreto: Para Descartes, eu só tenho a certeza de uma realidade primeira indubitável – eu – na medida em que duvido e, portanto penso. A realidade primeira está no sujeito, não no objecto. Para Chesterton, as condições necessárias à existência são realidades primeiras, ou seja, é mais certo eu dizer “eu respiro, logo eu existo” do que dizer “eu penso logo eu existo”. Apesar de sermos constantemente inundados por uma corrente contínua de pensamento, é possível existir sem estar a pensar. Havia alguém que dizia quando eu era criança, que quando parava de pensar, adormecia. De facto, a existência não se interrompe com o sono.



Mas é impossível existir sem respirar, sem comer, sem beber, sem urinar, sem defecar. As necessidades primárias não são apenas condições necessárias à existência; elas são a prova da existência. A sua ausência tem como consequência a interrupção da existência. Qualquer um pode fazer a prova científica, lógica e racional desta condição se experimentar ficar sem respirar por 2 a 5 minutos. É uma prova rápida e factual, não apenas retórica. Portanto, a existência é a primeira condição da realidade. A realidade existe. Não é “eu penso logo existo”, nem “eu sinto logo existo”, como afirma Damásio, mas sim “eu respiro, logo existo”. Eu estou conectado, com todos os outros seres vivos a este “éter” que partilhamos chamado ar. Quando se experimenta uma dificuldade respiratória severa, seja de origem cardíaca seja de origem respiratória, experimenta-se aquilo a que em medicina se denomina como sensação de morte iminente, i.e., percebe-se a possibilidade iminente de cessação da existência. 

Esta é a filosofia do senso comum. Chesterton definiu este filosofia em vários ensaios: The Unpsychological Age em Sidelights, The Return to Religion em The Well and the Shallows, Dickens and America em Charles Dickens, Os Professores e o Homem Pré-histórico em O Homem Eterno.

Ouçamos a sua definição: “O senso comum é um ramo extinto da psicologia; um sentido da realidade que é comum a todos; uma sensibilidade distribuída generosamente em todas as direcções normais (à vida); o poder de preservar as nossas impressões reais intactas e sem distorção; um instinto ou tendência para o mais provável.”



Portanto, Chesterton vê na existência o ponto de partida de todo o pensamento, e não o inverso. Mas Chesterton afirma em O Homem Eterno que não existe nenhum modo concebível de transformar o nada em alguma coisa, logo a existência aponta ao longo de uma longa cadeia reversa de causa-efeito para um Criador. Ou seja, existe uma realidade mais ampla do que a percepção particular. É esta certeza que desmente quer o cepticismo quer o solipsismo. Chesterton afirma em Autobiografia: “Eu tinha uma filosofia própria que consistia em perceber Deus em cada forma de existência, i.e., onde existe alguma coisa, existe Deus, mas fiquei surpreendido por entender quão próximo estava a minha “Alguma coisa” do Ens (Ser) de São Tomás de Aquino. Esta ideia de que a existência aponta um Criador e de que as coisas ao serem percebidas nos dão pistas sobre esse Criador, remete todo o secretismo e todo o ocultismo, como trevas que se abatem sobre essas pistas claras, à presença do Mal.


Como vimos na questão de O Problema do Conhecimento quando analisámos Kant, entender a questão do ser é indissociável da questão do Bem, porque “ser” está ligado a “ser bom”. O intelecto Criador não cria tudo o que é concebível, o que seria absurdo, mas apenas aquilo que decide valer a pena ser criado, porque é inteiramente livre; então considera a sua criação boa e ama-a como qualquer artista comprometido efectivamente com a sua criação. Esta filosofia não é apenas tomista, ela remonta a Platão e a Aristóteles. Portanto, é ocioso dizer que as emoções são o que de mais vil existe na natureza humana, porque submetem o conhecimento à afectividade, como dizia Kant, mas, pelo contrário, há que dizer abertamente que as emoções são uma forma de conhecimento. Amar é proximidade e é a ponte para o conhecimento; amar é uma forma poderosa de conhecer, é um conhecer mais intuitivo do que discursivo. É conhecer, não com a mente, mas com o coração.




Se a existência é essencialmente boa e maravilhosa, então existe fundamento para a gratidão. O tal mínimo místico de gratidão por fazer parte de uma existência maravilhosa. “O agradecimento é a mais alta forma de pensamento. A gratidão é a felicidade duplicada pelo espanto.” Chesterton afirma em São Tomás de Aquino: “Olhando para a questão do Ser como o bebé olha para a relva, apercebemo-nos de algo mais: ela parece secundária e dependente. A existência existe, mas não é suficientemente auto-existente e nunca se tornará autónoma apenas por continuar a existir.” No ensaio de 1901, The Defendant, ele afirma que a maioria dos profetas não nos aponta para o Céu, mas sim para a Terra. “É muito provável que alguém seja perseguido por dizer que a relva é verde e que os passarinhos cantam na Primavera. A religião fornece-nos o telescópio para observarmos o corpo celeste sobre o qual caminhamos, porque aos olhos e mentalidade da maioria dos homens, este mundo está tão perdido como o Éden e tão submerso como a Atlântida.”

Esta posição aponta para o refluxo que Chesterton sofreu a partir do pessimismo de Schopenhauer, após o episódio do diabolista na Slade School of Arts da Universidade de Londres: “Lembro-me do tempo em que o pessimismo era dogmático e até ortodoxo. As pessoas que liam Schopenhauer tinham a sensação de ter descoberto tudo, e nesse preciso momento entendiam que esse tudo era nada.” Relembrando Schopenhauer: “A vida não tem finalidade. Sermos quem somos (a individualidade) não tem nenhum interesse.” Esta posição é claramente identificada por Chesterton na obra de Wilde, O Retrato de Dorian Gray. O mesmo pensamento se encontra expresso no conto de Conan Doyle, Sherlock Holmes e o Signo dos Quatro (1890), um conto publicado pela Lippincott simultaneamente com O Retrato de Dorien Gray. Neste conto, Sherlock explica a Watson que escolheu a sua profissão para escapar ao tédio da rotina da existência.


“Flui uma estranha recorrência na história humana – a de que os homens estão constantemente a subvalorizar o seu ambiente, a sua felicidade e até a si próprios. O grande pecado da humanidade, o pecado tipificado pela queda de Adão, reside não tanto na tendência para o orgulho, mas antes para esta estranha e horrível humildade. O peixe esqueceu o mar, a vaca esqueceu o prado, o empregado esqueceu a cidade, todo o homem esquece o seu próprio ambiente e, num sentido mais literal e mais amplo, esquece-se a si próprio. Esta é a verdadeira queda original e é uma queda espiritual. Provavelmente ainda nos encontramos no Paraíso; foram os nossos olhos que mudaram.”



Este contraponto ao pessimismo por meio do amor é apontado por Chesterton num dos seus primeiros contos, Basil Howe: A Story of Young Love, em que o herói ao apaixonar-se sente a beleza do mundo à sua volta. Todos aqueles que estão ou estiveram apaixonados conhecem este enlevo quase psicadélico pela existência, a sensação de pairar dois centímetros acima do chão. Diz a personagem Michael Moon de Manalive: “O seu princípio obedece a uma formulação muito simples: ele recusa-se a morrer enquanto continuar vivo. Ele luta por se recordar constantemente por meio de um choque eléctrico no cérebro de que ele ainda é um homem vivo, percorrendo o mundo sobre duas pernas.”


E o Innocent Smith (o ingénuo Silva) confirma esta filosofia de vida: “Estou sempre a tentar esquecer o que sei – e a descobrir o que eu não sei.” Exactamente o que se encontra em A Taberna Errante no capítulo Os Sete Estados de Alma de Dorien Wimpole, onde um homem cínico com as palavras e idólatra de coisas materiais, passa a apreciar as pessoas à sua volta e acaba por apreciar todas as coisas animadas ou inanimadas. Para Smith é preferível encontrar um novo modo de ver este mundo do que procurar um outro mundo. Diz o I. Smith: “Não nego que devem existir padres para lembrar os homens de que eles um dia morrerão. Apenas afirmo que em certas épocas estranhas se tornam necessários outro tipo de padres, os poetas, para lembrar os homens de que eles ainda não estão mortos.”

Em Manalive: “Para Innocent Smith e para toda a juventude educada daquela época, as estrelas eram cruéis…encobriam a nudez da natureza; eram um vislumbre das rodas e roldanas dos bastidores…Os estudantes eram todos pessimistas e o céu estrelado era atroz, atroz porque verdadeiro. Todo o seu universo era negro com pequenos pontos brancos.”- este era o Chesterton da Slade, mecanicista e determinista, sem cor e a duas dimensões.


Mais à frente tudo muda: “Quando Smith começou a falar, o sol ergueu-se e começou a colocar cor em todas as coisas, com a rapidez de um artista iluminado.” Afinal a maravilha já está presente no mundo, o que é necessário é mudar o nosso olhar. Em Chesterton a cor simboliza a esperança e a diversidade da Criação: “Imediatamente antes da guerra, as artes e a filosofia caíram num nevoeiro sem conteúdo porque buscavam a inovação sem finalidade…o artista perdia o apelo à nossa empatia revolucionária, tal como outras coisas, como o tempo, a humildade, o sentido de humor; mas talvez a perda mais grave é a de que ele perdeu a noção original do vermelho e do verde.” The Coloured Lands, 1938.
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A sua ressalva da beleza das coisas particulares traça a linha divisória entre a beleza da Criação e do horror do panteísmo informe que abominava. A Criação é algo que necessita não só ser percebida como ser revelada. No Napoleão de Notting Hill, este papel cabe ao vento que é uma figuração do Espírito Santo. A analogia da Criação com o Inferno de Dante em que o Mal “abre porta atrás de porta no Inferno para quartos cada vez mais pequenos e escuros”, encontra-se em Manalive: “A limpeza com que o vento fez do céu encoberto um céu limpo e radioso; divisão atrás de divisão parecia ir abrir-se finalmente no céu.”



Chesterton reconhece que todo o escritor possui uma filosofia. Pela sua centralidade no objecto, pela sua formulação do Ser, da Criação e de uma clara definição de bem e mal, Chesterton tem sido identificado como uma espécie de filósofo tomista. Mas se Chesterton é apenas um filósofo tomista, porque não apenas ler São Tomás ou Étienne Gilson? Talvez existam várias diferenças subtis: Chesterton foi um artista que usava uma determinada filosofia da linguagem e abordagem do objecto, muitas vezes mais preocupado com o contexto geral do seu objecto de análise do que com análises particulares. É neste contexto que devem ser encarados os seus erros nas citações de Browning ou de Dickens e a sua recusa em os corrigir, mesmo após ter conversado com os familiares dos autores. Muitas vezes usamos citações para destacar um aspecto particular, como acontece neste texto, mas a ideia mais geral que temos sobre uma pessoa ou a sua obra pode muito bem passar sem citações ou sem citações perfeitamente literais, sem que com isso exista adulteração da análise. Terá sido essa a razão porque Chesterton escreveu o livro sobre São Tomás sem consultar as fontes bibliográficas que a sua secretária teve o cuidado de reunir para ele. Praticamente escreveu a obra de memória, embora tenha lido a Suma Teológica alguns anos antes.

Chesterton não era um académico, nem nunca pretendeu sê-lo, era um jornalista. Não um jornalista de um jornalismo que nos dá notícias de um homem quando ele morre, mas sim de um jornalismo que nos informa do homem que está vivo. E era um artista. Não o artista com os olhos fixos no nada, deixando a mente girar em falso, mas um artista sempre com os olhos fixos no objecto, disciplinando o pensamento para ser conforme à realidade – como numa investigação policial - e usando a alegoria ou o paralelismo para nos fazer compreender a natureza de uma realidade paradoxal, com uma componente concreta e uma componente abstracta, que não está facilmente disponível. Ao encontrar equivalentes concretos de ideias abstractas, Chesterton por meio dos seus paradoxos expõe o absurdo de certas conclusões.




António Campos