quinta-feira, 25 de julho de 2013

Férias com Chesterton



   Verão é tempo de férias.


   De descansar do trabalho, de relaxar, de recuperar forças. E de aproveitar também para pôr
leituras em dia ou reler obras já esquecidas mas que, na altura, nos deram imenso prazer e que levámos pela mão para a praia ou o campo, ou simplesmente para a esplanada do café habitual, para com elas conversar como se fossem costumeiros e velhos amigos.

   É sempre bom termos um livro para ler como um amigo com quem conversar. Por vezes vêm à baila conversas antigas, quase esquecidas, mas que nos lembram dias e horas em que o tempo desaparecia furtivamente sem dele darmos conta, tão entretidos estávamos então a falar com as páginas de esse livro, que se viravam e reviravam por entre os dedos, num ritmo veloz que só parava na última e derradeira página. Absorvidos pela leitura, só tínhamos olhos para as palavras que líamos, as frases que nos saltavam à vista, as imagens e as ideias que começavam a povoar a nossa imaginação. Quantos de esses livros lidos nas férias merecem voltar ao nosso convívio, seguir, bem guardados na nossa mala de viagem, à espera de lhe pegar e sorrir de novo, antes de lhe afagar o rosto e as páginas!


   Mas eis que alguns, na escolha de estes livros, são facilmente levados pelas indicações de sábios da Natura que, pomposos, recomendam como leitura obrigatória, em tempo de lazer, muitas e abundantes obras, sobretudo de escritores da moda, antes que os mesmos passem, inevitavelmente, de moda. Outros, com ar sisudo, inventam mesmo um inquérito – que se repete ano sim, ano não -, sobre as dez obras que, num suposto naufrágio, levariam para uma ilha deserta. E lá vêm dez magníficas obras-primas, daquelas que toda a gente cita e quase ninguém lê, mas que dão a quem delas fala um ar marcadamente sábio e culto, a que só faltam as longas e brancas barbas e os óculos a escorregar na ponta do nariz. Também fizeram um dia esse estafado inquérito a G. K. Chesterton. Ao que ele respondeu que se estivesse numa ilha deserta não precisava de dez livros mas apenas de um: Faça você mesmo um barco.

     E é com Chesterton que vamos passar férias. Levando na nossa bagagem não um, mas todos os livros do famoso Padre Brown: A inocência do Padre Brown, A incredulidade do Padre Brown, O segredo do Padre Brown, A argúcia do Padre Brown, O escândalo do Padre Brown. E digo todos, porque a sua leitura acaba por ser, de certo modo, viciante, e, se não os levarmos todos, ficaremos um pouco desasados quando acabarmos o primeiro ou o segundo. Mais vale, por isso, ter, neste caso, material de leitura por excesso do que por defeito.

   Aproveitamos, assim, para com o Padre Brown visitar as costas de Cornwall e de Norfolk, dar um salto a Paris, ir à Escócia, mais propriamente a Glasgow, e entrar, na companhia de Flambeau, no estranho castelo de Glengyle. Com o nosso detective-sacerdote percorrer uma belíssima cidade italiana do Mediterrâneo e de conhecer a cidade e o estado fictício de Heiligwaldenstein, que lembra, pela sua traça urbana, usos, costumes e língua, um pedaço da velha Germânia. Daí, dar um salto – grande salto – para a costa norte da América do Sul, seguindo depois para o Midwest americano, não deixando, naturalmente, de visitar uma prisão da cosmopolita cidade de Chicago, pois o seu capelão não é outro senão o nosso querido Padre Brown. 


Para aqueles que nele apenas viam uma personagem tirada do discreto sacerdote católico de Yorkshire, o Padre John O’Connor, têm aqui um simpático cicerone que nos ajuda a percorrer o mundo exterior, da Europa à América, e o mundo interior, da tentação e do crime, do pecado e da queda. Mas também do arrependimento e do perdão, como é o caso do ladrão Flambeau, que afinal se transforma num dos seus melhores amigos.

     Estes policiais, que tanta influência tiveram na literatura do género no século passado e continuam a ter nos tempos que ora correm, ultrapassam, em muito, os vulgares romances policiais, mesmo o de autores consagrados. E não é, como é por demais evidente, por a sua figura cimeira ser um sacerdote católico na anglicana Inglaterra. É que as suas histórias, maravilhosamente construídas, estão repletas de alegorias que, quase sem darmos conta, penetram, não apenas no nosso espírito, mas sobretudo no âmago da nossa alma. Nelas perpassa a famosa teologia do assombro, isto é, a profunda alegria por estar vivo, e a filosofia tomista do senso comum. Também, por isso, são leitura que colhe bons frutos neste Ano da Fé.

     Sendo assim, não sejamos gulosos quando acabarmos a sua leitura. Deixemo-los a algum familiar ou amigo para que também ele possa viajar com Chesterton e passar férias em tão agradável quão divertida companhia.






António Leite da Costa 

domingo, 14 de julho de 2013

Introdução ao Livro de Job

Porque acontecem coisas más a homens bons?











Ao debater com o céptico arrogante, não é um método correcto tentar fazer com que ele cesse de duvidar.

O melhor método é mergulhá-lo num mar de dúvidas, que duvide um pouco mais, que duvide em cada dia de novas coisas, até que, por uma inesperada iluminação, comece a duvidar de si próprio.



Confesso que nunca nutri particular admiração pelo Livro de Job, dentro de todos os livros do Antigo Testamento. Para mim tratava-se de uma lamúria circular e de uma mortificação estéril que pareciam juntar Deus e o diabo num mesmo propósito: fazer sofrer o pobre Job para ver qual o seu limite. O meu desinteresse foi tão pronunciado que, mesmo o ensaio de Chesterton, Introduction to the Book of Job, de 1916, nunca despertou a minha atenção. Foi por uma coincidência estranha, como um raio de sol num dia cinzento, que uma conversa e um lema desse livro, me fizeram a ele retornar, pela mão de Chesterton. Do local onde me encontrava não conseguia descortinar o brilho, o enlevo, a luz e a cor, que se encontram encerrados nesse poema. Não conseguia sequer vislumbrar o seu paradoxo: porque acontecem coisas más a homens bons?

 
Creio que esta introdução de Chesterton explica um paradoxo: como acontecem coisas más a homens bons? A resposta encontra-se no problema do mal, na questão da fé e na questão do que é realmente justo.
Chesterton fez uma desmontagem admirável e, cuidadosamente, voltou a unir as peças mais importantes, para chamar a atenção de como Deus permite aos homens que O vislumbrem, num ápice, por entre a cortina inefável do seu manto.



Dos pontos sublinhados por Chesterton, escolhemos doze:

1 - A AUTENTICIDADE:

Não tem qualquer interesse discutir se o livro foi escrito de uma só vez ou de várias vezes, por uma ou várias pessoas, quer se chamassem Job ou não. Esta é uma questão irrelevante. Irrelevante porque o livro se insere harmonicamente no ambiente e narrativa do Velho Testamento. No tempo antigo um homem deixava a seu filho uma obra para acabar, assim como deixava um campo para cultivar. A Ilíada pode ter sido escrita só por Homero ou não, mas o seu espírito está lá. Chesterton diz:

“Havia mais unidade em tempos antigos em cem homens do que existe hoje num só. Então, uma cidade era como um só homem. Agora um homem é como uma cidade em guerra civil.”
 

2 - A UNIDADE

Os livros do Velho Testamento guardam algumas características em comum:

2.1- Os homens como servos, não como filhos; os homens como meros instrumentos de Deus:
 
“A ideia do Velho testamento é muito terrena e prática: a ideia de que poder é poder, astúcia é astúcia, sucesso é sucesso.”
 
“Os heróis do Velho Testamento não são filhos de Deus, mas sim servos de Deus. Servos gigantes e terríveis, como os génios, que eram os servos de Aladino.”

“Aqueles que sublinham as atrocidades e perfídias dos juízes e profetas de Israel realmente têm uma noção muito desfasada das circunstâncias.
Eles são demasiado cristãos.
Eles transpõem para as escrituras pré-cristãs uma ideia puramente cristã - a ideia dos santos, a ideia de que os principais instrumentos de Deus são pessoas particularmente misericordiosas.
Esta é uma ideia mais profunda, mais radical e mais interessante do que a velha ideia judaica. É a ideia de que a inocência tem nela um tal poder que faz e refaz impérios e o próprio mundo.”

“Espera-se dos santos da Cristandade que sejam como Deus, da sua própria natureza, como pequenas estatuetas Dele.”

2.2- A solidão de Deus:

“O herói do Velho Testamento não é suposto ser mais da mesma natureza de Deus que um martelo ou um serrote são da natureza do carpinteiro".
 
“O sentido geral da escritura do tempo hebraico é de que não só Deus é mais forte do que o homem, não só Deus é mais misterioso do que o homem, mas, sobretudo, Ele tem muito mais importância, Ele entende melhor o sentido do que faz. Comparado com Ele, nós temos algo da futilidade, da irracionalidade, do deambular das bestas perecíveis.
Ele senta-se acima da Terra e os seus habitantes são, portanto, como gafanhotos.”


 

3 - A PERSONALIDADE DE DEUS:

“O livro é tão assertivo na descrição da personalidade de Deus, que quase afirma a impessoalidade do homem. A menos que esta imensa mente cósmica conceba uma determinada coisa, esta fica vazia e à deriva; o homem não tem tenacidade suficiente para assegurar a sua continuidade. A menos que o Senhor edifique a casa, todo o trabalho será em vão. A menos que o Senhor vele pela cidade, o sentinela vigia em vão.”

4 - A SINGULARIDADE:

Todo o Velho testamento realça o apagamento do homem em face do plano de Deus. O livro de Job é o único em que ele questiona:

-Qual é a proposta de Deus?
 
-Vale a pena o sacrifício, mesmo sendo a nossa existência miserável?
 
-Vale a pena abdicar da nossa vontade, mesmo que insignificante, em prol de uma vontade superior e mais bondosa?
 
-Será que é mesmo superior e mais bondosa?
 
-Deixemos Deus usar os seus instrumentos; deixemos Deus partir os seus instrumentos. Mas o que é que Ele anda a fazer e porque é que eles são partidos?

É por isto que o enigma do Livro de Job é um enigma filosófico.
 

5 - A BELEZA INTELECTUAL:

Todo o Livro de Job é um impulso de querer conhecer a novidade; de ter o desejo de conhecer o que é e não apenas o que parece.
 
“O hábito moderno de afirmar: cada homem tem a sua própria filosofia; esta é a minha filosofia e considero-a adequada, só demonstra fraqueza de espírito. Uma filosofia cósmica não se ergue para iluminar um homem; uma filosofia cósmica é formulada para se adequar a um universo. Um homem pode tanto possuir uma religião privada como pode ter um sol ou uma lua exclusivamente para si.”


 

6 - O OPTIMISMO DE JOB:

Job interroga, mas interroga como quem admira Deus. Como uma mulher que interroga o marido, como alguém que interroga alguém por quem tem consideração.
 
“Ele abana as fundações do mundo e atira loucamente aos céus; ele açoita as estrelas; não para as silenciar, mas para as fazer falar.”
 
Por outro lado aqueles que confortam Job são pessimistas: eles dizem que Deus é bom mas não estão convencidos disso. A verdade é que pensam que Deus é tão poderoso que é mais prudente chamar-lhe bom." Uma atitude muito humana…

7 - A RESPOSTA DE DEUS: 

Todos os homens ao longo da narrativa fazem perguntas a Deus. A atitude permanece…Seria de esperar que Deus respondesse, uma espécie de raciocínio convergente. Mas, na verdade, o que acontece é uma atitude divergente, isto é, Deus também interroga. Deus traz, por sua parte, ainda mais questões. Faz o que Sócrates fez, vira o racionalismo contra si próprio. Tal como Deus viria a fazer no diálogo com a samaritana, Deus aceita as condições dos homens, mas revela-lhes que, no que concerne a colocar questões, ele tem questões para colocar que reduzem o calibre das questões humanas.

“Neste drama do cepticismo, Deus adopta o papel do céptico.”

Deus aceita a igualdade de tratamento. Deus aceita mesmo o papel de réu. Mas como qualquer réu ele formula a pergunta que qualquer réu tem o direito de fazer: Quem és tu? E Job, que é um homem intelectualmente honesto, após um pequeno momento de reflexão, responde: Não sei!

8 - A LIÇÃO DE DEUS:

Todo o homem céptico se encontra rodeado por um infinito cepticismo. Interrogá-lo é a atitude recorrente que todos os místicos utilizaram.
 
“Sócrates demonstrou que se usasse muita sofística poderia destruir todos os sofistas. Jesus Cristo utilizou o mesmo método quando demonstrou aos saduceus que se eles não compreendiam a natureza do casamento no Céu, não compreendiam a natureza do casamento em si.”
 
Deus deixa-nos esta enorme lição. O propósito de uma discussão religiosa não é tentar revelar os mistérios, mas sim propor novos enigmas: 

“Ao debater com o céptico arrogante, não é um método correcto tentar fazer com que ele cesse de duvidar. O melhor método é mergulhá-lo num mar de dúvidas, que duvide um pouco mais, que duvide em cada dia de novas coisas, até que, por uma inesperada iluminação, comece a duvidar de si próprio.”




9 - A RESPOSTA DE JOB: 

Outra grande surpresa é que Job fica satisfeito e tranquilo apenas por saber que existe algo de impenetrável na natureza de Deus. Nada lhe foi respondido, mas ele sente a atmosfera grandiosa e arrepiante de algo bom demais para ser revelado. A recusa de Deus para desvendar os seus desígnios é em si própria, uma insinuação ardente do seu desígnio."

“Os mistérios de Deus são mais gratificantes do que as propostas dos homens.”

10 - O JULGAMENTO DE DEUS:

Deus repreende quer quem o acusava quer os que o defendiam. O problema dos amigos de Job é que no esforço de encontrar uma explicação para os problemas de Job, eles nunca o tomam verdadeiramente como ser humano, nem a Deus como Deus, mas a Deus como apenas uma parte integrante de um silogismo moral superior.

Job recusa as suas explicações porque compreende a necessidade de servir o próximo e de tomar a Deus como uma pessoa e não como um princípio moral.

Os seus amigos não estavam verdadeiramente preocupados com ele mas sim com a sua teologia. É por esta razão que Job não acredita que Deus vá permanecer silencioso para sempre. É por esta razão que Deus nos manda amar o nosso próximo, incluindo os nossos inimigos, independentemente das suas ideias.

“O optimista mecânico esforça-se por explicar o universo apenas numa base racional, assente em padrões repetitivos. Afirma que uma coisa boa do mundo é que ele pode ser explicado.”
“Deus replica que se existe uma coisa boa no mundo, é que ele não pode ser totalmente explicado: porque chove no deserto se não existem lá homens que disso possam beneficiar?” 
Poder-se-ia dizer, porque nasce o sol sobre os homens bons e os homens maus?

"Para chocar o homem Deus torna-se por um momento blasfemo; poder-se-ia dizer que Deus se tornou, por um momento, ateu."

Deus desfila perante Job os animais que povoam a Terra; poder-se-ia dizer que o Criador de todas as coisas está maravilhado com as próprias coisas que criou.
Job interroga; Deus responde com uma exclamação. Em vez de demonstrar a Job que se trata de um mundo explicável, Ele insiste em que se trata de um mundo muito mais estranho do que ele alguma vez imaginou.

 

11 - A EXPLICAÇÃO DE DEUS:

Deus sugere que os seus impenetráveis mistérios são alegres e não tristes. Pergunta a Job onde estava ele quando as fundações do mundo foram colocadas. Deus fala da neve e do granizo, não como meros fenómenos físicos, mas como maravilhas da natureza. Nada se compara a esta alegria, a este optimismo que penetra no mais escuro pessimismo. Como se estas coisas tivessem sido colocadas no mundo para aquele momento final em que as lágrimas vão ser enxugadas de toda a face, em que todo o mal será retirado.

12 - O PARADOXO:

A Cristandade impõe aos seus heróis um paradoxo: um paradoxo de grande humildade, no que concerne aos seus pecados; de grande tenacidade, no que concerne às suas ideias.

O livro de Job, se teve alguma influência no pensamento judaico, foi o de impedir a sua decadência e colapso. Neste livro responde-se à questão se Deus pune o vício durante a vida terrena e se recompensa a virtude com a prosperidade material. Se a mentalidade judaica tivesse dado uma resposta errada a esta questão, não existiria nenhuma razão para que subsistisse às outras civilizações que entretanto se afundaram.

"Quando as pessoas acreditarem que a prosperidade é a recompensa da virtude, ela será tomada como sinónimo de virtude. Os homens desistirão da tarefa difícil de fazer dos homens bons homens de sucesso e adoptarão a tarefa mais fácil de dizer que os homens de sucesso são homens bons."

Este desvio ético é o paradoxo do nosso tempo.

Chesterton sublinha que o livro de Job é admirável porque ele não conclui que o sofrimento de Job se deva aos seus pecados ou a qualquer plano para o seu melhoramento. Job sofria não por ser o pior, mas sim o melhor dos homens.

“A melhor lição que poderemos extrair é que o homem é melhor confortado por paradoxos.”





“Aqui reside o mais negro e estranho dos paradoxos; e é pela experiência humana o mais reconfortante.
Não necessito mencionar a história superlativa e estranha que se desenrolaria sob este paradoxo do melhor dos homens com a pior das sortes.
Eu não necessito de dizer no sentido mais livre e filosófico, que existe uma personagem do Antigo Testamento que é realmente um padrão; ou seja, não necessito de dizer quem se encontra prefigurado nas feridas de Job.”


Obrigado Chesterton! Agora obtive mais claramente uma resposta que já intuía: não é nesta vida que vemos brilhar a luz da justiça. O nosso propósito é, citando madre Teresa de Calcuta, “colocar uma gota de água num oceano de sofrimento.”

Não devemos pensar no que já fizemos, mas no que nos falta fazer. Só os medíocres pensam que já fizeram muito.




António Campos

Anália Carmo

quinta-feira, 4 de julho de 2013

O Jogo da Psicanálise




"A Psicanálise é uma confissão sem absolvição"





No seu maravilhoso ensaio sobre a Psicanálise, de 1923, Chesterton trata da substância da técnica em si, que diz ser da mesma natureza dos sonhos. Trata da sua metodologia que classifica de
indutiva, não científica, consistindo na generalização de uma fracção da realidade a toda a realidade, uma monomania. Trata do seu objecto, o sexo e o inconsciente e, finalmente, como epílogo, a desconstrução cultural, que se iniciou no iluminismo, contra o património medieval.
Afirma que a psicanálise começou como uma moda para se tornar uma superstição. Como a nossa sociedade constrói mitos, em geral não admite que o seu fundamento possa ser discutido.
Chesterton afirma: Uma teoria é apenas um pensamento enquanto que uma moda é um facto.

Lembra muito as palavras de Charles T. Tart, o guru PhD da parapsicologia: “Se está nos media, aconteceu. Se aconteceu, mas não está nos media, nós cremos que não aconteceu.”

Termina a dizer que a nossa sociedade, sempre a falar em iluminismo e opinião pública, tem os políticos conservadores apoiados por fundos financeiros de proveniência duvidosa e os políticos revolucionários apoiados pelas sociedades secretas.


Claro que as ideias de Freud tiveram correspondência nas artes e nas letras, no chamado movimento surrealista, que se quer libertar da lógica e da razão e penetrar no mundo onírico e no inconsciente. Os surrealistas rejeitam o que chamam “a ditadura da razão” e os valores de pátria, família, religião, trabalho e honra. Pretendem colocar em equivalência o sonho e a realidade. Nas letras, esvazia-se o significante do seu significado, e adopta-se a escrita automática, em que alguém escreve o que lhe vai passando pela cabeça, de forma desconexa e sem fio condutor, buscando a desestruturação. Na pintura, o espanhol Salvador Dali e o belga René Magritte são os seus maiores expoentes.
Curiosamente, A Tentação de Santo Antão, O Homem Invisível e Os Amantes, têm uma conexão directa com este ensaio de Chesterton. O primeiro porque reflecte a luta entre a religião e a mitologia, o segundo porque lembra o outro homem que supostamente vive dentro de nós (a que Chesterton chama macaco), e o terceiro porque amantes de face coberta é o equivalente a sexo entre bestas.

A arte, em geral, reflecte a sua época. Gostar de uma pintura não nos deve impedir de saber como se chegou ali e qual a ideologia que lhe está subjacente. Se o freudismo originou o surrealismo não será exagero apontar a formulação de Freud como surreal. Trata-se do princípio da não contradição.
Traduzimos o ensaio, quase integralmente. Introduzimos pequenas notas para melhor compreensão. Dividimos o ensaio em capítulos para melhor ordenamento mental da narrativa e do conteúdo.


António Campos



xxx



Chesterton, O Jogo da Psicanálise, The Century Magazine, 1923



Introdução


Pode dizer-se da psicanálise que ela é constituída pela própria substância dos sonhos.
A psicanálise deixou de ser uma mania porque foi elevada à categoria de moda. É uma moda. Apresenta-se tão visível ao homem comum como os manequins das lojas de rua.

É chegada a altura de alguém lhe dar um pontapé, no sentido de voltar a atribuir nomes corretos às coisas. Entendo seguir os princípios gerais da psicanálise ao não reprimir este impulso. Quem sabe se eu não ficaria traumatizado para o resto da vida e, consequentemente, impedido de alcançar o pleno das minhas potencialidades? É muito melhor dar livre curso ao meu impulso, rindo na cara do professor ou fazendo-lhe um gesto obsceno.

Bem, alguns considerarão esta minha sugestão um pouco exagerada ou até leviana; então voltarei ao objeto deste ensaio. Um objeto que, tal como o professor, é muito sério, embora não tão solene.
Andamos mais preocupados com o uso incorrecto do termo do que com a sua utilização correcta. O uso correcto de um termo é algo de linear, lógico, confinado ao seu lugar. Colocado no seu lugar por um número limitado de especialistas. O uso incorrecto de um termo é um evento histórico, uma revolução, uma coisa que envolve milhares.

A história da bolha dos mares do sul1 não se conta por um desenho de algo que aconteceu numa ilha dos mares do sul. O que aconteceu de relevante não foi um evento remoto, mas a mais central e civilizada fábula ou ilusão.

Uma teoria é apenas um pensamento, enquanto que uma moda é um facto. Se certas coisas se apoderam dos centros da civilização, elas partilham o seu lugar na História, quer a sua origem tenha sido um equívoco ou não.

Se certos mahatmas são venerados por todos em Paris ou em Londres, de pouco importa que eles sejam considerados hereges no Tibete. Se certas danças de origem africana forem consideradas sedutoras pelos aristocratas da Europa ou da América, torna-se irrelevante que elas sejam consideradas obscenas e degradantes pelos próprios canibais de África.

A verdade é que o núcleo do verdadeiro estudo psicológico pouco ou nada tem que ver com a moda da psicanálise, tal como o núcleo do estudo biológico genuíno pouco tem a ver com a pantomina popular do elo perdido.

Tanto quanto uma ciência escrupulosamente científica realmente existe, ela possui entre os seus méritos certas características que a tornam incapaz de ser uma moda deste tipo. É característica de uma verdadeira ciência ter um conteúdo especulativo limitado e assente na demonstração prática, avançando com correcções múltiplas, muitas vezes chegando quase até ao ponto de origem, outras contraditando-o. Para dar um exemplo de como uma ciência se aplica a problemas psicológicos, tomemos em conta o aforismo de contar carneiros para adormecer: à medida que os numerais aumentam, deixam de ser monossílabos e tornam-se progressivamente mais difíceis de pronunciar. Além do mais, o seu uso é menos comum. Nós raramente dizemos que queremos cento e setenta e três chapéus ou duzentos e dezassete bilhetes de comboio. Por isso, a ciência manda-nos contar, mas na verdade, isso resulta em que deixemos de contar.

Não nego que algum trabalho está a ser feito sobre o inconsciente, a memória e a associação de ideias. Mas, por ser um facto, é óbvio que esse trabalho não vai ser uma moda. Antes de avaliar a mente inconsciente não seria pior descobrir o uso da mente em si.




Métodos


As passagens mais citadas por estes intelectuais da psicanálise demonstram que são fortes em teorizar mas fracos a pensar.

Alguns dizem que Hamlet não só odiava o tio mas também odiava secretamente o pai, pela simples razão de que gostava da mãe. Em Hamlet há uma frase que diz “O mais importante neste tipo de coisas são apenas sombras”. Um professor que tente dissecar uma sombra, que pretenda usar a sua cabeça no estudo dos órgãos internos de uma sombra, ou demonstrar as deformidades de uma sombra, é um personagem de um pesadelo irreal. Trata-se de um sonho ainda mais incompreensível do que os sonhos que tenta interpretar. Até um escrivão consegue formar uma ideia correcta quanto a este modo leviano de formar opiniões. Estes intelectuais transpõem para a vida real os truques usados na literatura.

Alguns dizem que alguém ao escrever uma conferência sobre dificuldades inesperadas (unforeseen) se enganou e escreveu dificuldades antecipadas (foreseen) e tomam isso como um ato falhado. Eu diria que quem faz uma conferência sobre dificuldades inesperadas não está a pensar, em consciência, em dificuldades não expectáveis e na apresentação de soluções para as superar, pois sabe perfeitamente que vai dizer um chorrilho de mentiras, pois as dificuldades inesperadas não podem ser, por definição, antecipadas. Há algum homem que por escrever matar camponeses (peasants) em vez de matar faisões (pheasants) deva ser considerado um homicida?

A marca do psicanalista é que ele sempre fala de complexos mas nunca parece ter ouvido falar de complexidade. Por isso chamo a este movimento as simplificações doentias. Cada uma delas toma parte da verdade, por vezes uma centésima parte da verdade e, depois, oferece-a como toda a verdade.

Por exemplo, os calvinistas tomaram a omnisciência divina para sufocar todos os outros atributos divinos. Os seus descendentes, os deterministas, negaram qualquer escolha, negando mesmo a possibilidade de as pessoas escolherem aquilo que eles próprios dizem ser verdadeiro em detrimento daquilo que eles próprios dizem ser falso.

Os utilitaristas desfilaram a sua forma universal do interesse próprio, da mesma forma implacável, embora essa forma possa ser um trocadilho, pois os utilitaristas usaram a palavra próprio (self) como os psicanalistas usaram a palavra sexo (sex). Calvinistas, utilitaristas e todos esses homens de apenas uma ideia são abusadores intelectuais. O seu objectivo em dar nomes severos às coisas é arrepiar-nos, ao ouvirmos nomes feios atribuídos a coisas comuns e naturais.

Claro que a prossecução de qualquer ideal só pode ser levado a cabo numa alma consciente, num eu. Eles fizeram um trocadilho e chamaram a isto egoísmo.

O prazer que os intelectuais têm ao espalhar uma atmosfera de sexo sobre toda a expansão na direcção da beleza ou da arte, lembra um rapaz que assusta as suas irmãs, falando sobre sangue como um ogre, quando, na verdade, apenas fez um pequeno corte no seu dedo.

A mesma irracionalidade se comete quando se pega numa pequena fracção obscura e duvidosa da verdade e se publicita como a verdade e nada mais do que a verdade. É exactamente isto que se faz quando se apregoa a natureza sexual de todos os problemas não sexuais.

Que o instinto sexual é muito importante é uma evidência; que é difícil dizer o quanto ele influencia outras coisas também parece evidente. Agora o modo como certos especialistas falam do complexo materno2, só indica que uma mãe é demasiado complexa para que eles a possam analisar. O seu ênfase não é tanto se existe algo como o instinto sexual, mas sobretudo negar que exista algo como o instinto maternal. Por esta teoria, uma galinha não se interessa por pintainhos mas apenas se interessa por frangos. Ou, o andorinha macho só traz comida ao ninho para os passarinhos fêmea, procedendo a fêmea de modo inverso.

Parece absurdo, mas não é mais absurdo do que afirmar que as mães não querem saber das filhas, tal como dizer que os pais ignoram os filhos. O que é facto é que o instinto parental é a força que corre na natureza que é de longe a mais poderosa e determinante que atravessa a natureza humana. É claro que a gentileza de um pai para uma filha ou o especial carinho de uma mãe para com um filho pode ter uma tonalidade indelével da diferença entre sexos. Mas essa tonalidade é, não só diminuta, como praticamente imperceptível.

Estas escolas monomaníacas nunca se preocupam com proporção ou equilíbrio. Aquilo que para elas é novo, agiganta-se no universo, ignorando ostensivamente aquilo que é, para toda a gente, verdadeiro. Aliás, qualquer pessoa sã diria sobre o assunto que, se é que existe, faz parte da mente subconsciente e, portanto, é melhor que continue inconsciente.

Mas é marca do agnóstico pretender estar consciente do seu inconsciente. E, por detrás de tudo isto, como no diabolismo dos calvinistas ou no materialismo dos utilitaristas, encontra-se muitas vezes uma atitude ou um padrão que consiste num prazer absurdo na brutalidade ou na blasfémia.

O mesmo exercício, que consistiu em dizer que a maioria dos homens se encontra condenada ou que todos os homens são egoístas, é efectuado ao sugerir, embora de forma absurda, que a santidade da maternidade ou o amor às crianças tem como pano de fundo algo das trevas inumanas de Édipo.

O mesmo paralelo pode encontrar-se em muitas escolas de ética e política do nosso tempo. Tal como a mania de proclamar que tudo era sexo, assim foi a mania de proclamar que tudo era económico. A noção marxista, a teoria materialista da história, tem nela o mesmo tipo de autoconfiança estúpida no centro do seu insuficiente materialismo.

Uma moda concebe tudo acerca do nascimento como sendo sexual, tal como podia conceber ser tudo acerca de apanhar minhocas. Isso seria inadequado até para os pássaros que, apesar de não fazerem mais nada a não ser comer e procriar, ainda não escreveram grandes ensaios do tipo “as acções douradas dos pintassilgos” ou “a vida das cotovias famosas”.

Todo o pensamento reside pois numa confusão entre as condições necessárias à vida e os objectivos de vida.

É óbvio que a vida não poderia continuar se a comida e o sexo não estivessem presentes, mas nada nos diz qual a importância da sua presença. Será como afirmar que, como um homem sempre se apoia nas suas pernas, sempre se desloca nas suas pernas, então as suas pernas são o único interesse da sua vida. Se ele corre para apanhar o comboio é apenas para exercitar as pernas ou, por outro lado, se herdar uma fortuna vai logo comprar um par de botas.

Claro que o homem só consegue progredir na história apoiado nos dois apoios que são a alimentação e a reprodução, mas que ele se preocupe apenas com estas coisas é desmentido por toda a História, e, só assim ele poderia ter alguma história. Se só existissem estes dois apoios não existiriam romances como “O Egoísta”, “O Império Romano”, “As Cruzadas”, “A Revolução Francesa” ou “A Grande Guerra”.





Objecto: o sexo e o subconsciente



A monomania da omnipresença do sexo, tal como a monomania da omnipresença da economia, pode ser refutada claramente pela experiência do mero homem comum. Tal como qualquer homem comum que se tenha apaixonado, que tenha apanhado uma piela com os amigos ou que tenha ido passear no campo, sabe que existem muitos objectivos que não são económicos, assim também qualquer adulto que alguma vez tenha olhado com ternura para um menino de três ou quatro anos, sabe que o complexo do pai é idiota e que o seu carinho faz parte de uma série de coisas que a psicanálise não analisa, entre elas o sentido do absurdo.

Estas modas passam rapidamente mas existe uma consideração a fazer. É característico destas manias que embora nem sempre consigam convencer, elas turvam a mente. Sobretudo escurecem-na. Todas estas descobertas temporárias e tremendas têm a característica singular de que não são apenas degradantes mas também deprimentes. Nenhuma deixa vestígios da verdade e das grandes conclusões deste mundo, mas cada uma deixa feridas graves e profundas e afastamento na mente do homem comum.

O caso contra a nova psicologia é meramente psicológico. Quando não pode ser tomada como ciência, deve ser tomada como doença. Um pesadelo nunca é verdadeiro e nunca dura muito, mas sempre se empina acima das estrelas e envolve o céu e a terra enquanto dura. É nosso dever dar um beliscão ás pessoas, ao passar, para ver se elas acordam.


Claro que existem outras coisas na psicanálise para além da loucura de ver instinto sexual em todos os outros instintos ou ideias. A ideia fixa sobre a influência indirecta do sexo é típica desta tendência. A maior verdade sobre a psicanálise é que não se trata de uma análise. Não é análise porque analisar significa decompor a realidade em todos os seus componentes básicos. No caso da alma, isso não pode ser efectuado de forma perfeita, e estes doutores ainda o fazem de forma mais imperfeita do que deveria ser feito. Eles encontram a sua causa predilecta em casos em que um verdadeiro analista encontraria cinco ou seis causas; portanto os seus complexos continuam complexos. Acima de tudo, lidam com um complexo que deixam mais complexo que o próprio universo.

O outro grande objecto da psicanálise, além do instinto sexual, é o subconsciente. É evidente que ninguém pode analisar o que é inconsciente. Ninguém pode separar o todo nas suas mais pequenas partes elementares, contar esses elementos e estar seguro de que nenhum falta. O máximo que se pode fazer é ter um esboço da coisa, não como os investigadores, que alegam conhecer quando nem sequer sabem se as coisas detectadas são significativas ou insignificantes, comparativamente às coisas que permanecem ocultas. Na verdade, é óbvio que entre as possibilidades do subconsciente se encontram todas as possibilidades psíquicas.

No momento em que uma coisa está fora da luz da consciência, não podemos saber que aliados possui nas trevas. Na verdade, nem podemos tão pouco saber se tem origem em nós ou não. Se algo vem de um local do qual não temos consciência, é óbvio que não podemos ficar seguros de que a sua proveniência apenas reside no nosso subconsciente. Tanto quanto sabemos são eventos de lado algum, pelo que podemos depreender que podem ser manifestações de qualquer lado.

Não podemos imaginar a existência de uma terra incógnita e depois traçar fronteiras entre as suas diversas nações, que desconhecemos. Estamos a melhorar da posição do filósofo que disse que uma “snark” era um “boojum”3, apenas usando a nossa autoridade para afirmar categoricamente que uma “snark” não pode definitivamente ser um “boojum”. Tudo o que podemos afirmar sobre a região além do nosso consciente, é que ela pode conter qualquer coisa, desde o céu ao inferno.


A Mitologia



A poesia de cordel, a ficção da moda, as conversas na sala de estar e alguns títulos de jornal, enchem-se de mitologia ridícula sobre como todo o homem tem dentro dele uma espécie de macaco selvagem, idoso e microcéfalo. Fazem poemas melancólicos sobre como é fascinante o macaco que vive dentro do homem e há, inclusive, debates de natureza ética que visam definir se é o homem que comanda o macaco ou se é o macaco que comanda o homem.



Os homens esquecem-se que a inconsciência é, por natureza, inconsciente, tal como esquecem que o elo perdido sempre esteve por encontrar. Estão a fazer um retrato do homem subconsciente exactamente como fizeram um retrato do super-homem. Neste ambiente intelectual se a coisa não passar como uma moda só pode ficar como superstição. O mundo moderno pode ou pode não recuperar a religião, mas está rapidamente a construir uma mitologia.






A desconstrução moderna




Foi desta mitologia que eu aqui tratei, que ameaça ser uma superstição, ideal para selvagens, mas sem vestígio de qualquer tratamento para a mente humana. Reconheço que, nas mãos de homens verdadeiramente cientistas e de preferência sensatos, muito pode ser feito para que uma pessoa se liberte de memórias mórbidas ou associações bizarras. Mas, não há dúvida de que este lado sensato da análise se encontra no tempo em que o calvinismo iniciou a doença destas monomanias modernas. A nossa civilização, antes da emergência da filosofia calvinista, estava impregnada da filosofia católica. Os puritanos destruíram as instituições da sociedade medieval, uma a seguir à outra, e os modernos estão a restaurá-las uma atrás da outra. A única diferença é que uma coisa que tinha uma forma medieval moderada tem agora uma forma moderna extravagante.

O culto do feminismo tornou ridículo os protestos contra a Mariolatria. Existem seitas protestantes na América, hoje em dia, que recusam terminantemente honrar a mãe de Deus, embora se interroguem por que razão Deus não se chama mãe em vez de Pai.

O culto do esteticismo tornou ridículos os protestos contra o ritualismo. William Morris coloca em papel de parede os símbolos que os católicos foram proibidos de colocar nas suas paredes.

Uma vez que os homens não deveriam recitar a Ladaínha da Virgem com reverência, Swinburne reescreveu-a para que eles a pronunciem como uma blasfémia, dirigida a uma prostituta.

Uma vez que os monges praticavam um comunismo voluntário em pequena escala que era tido como superstição, vieram os bolchevistas impô-lo a todos os homens numa escala colossal.

Uma vez que destruímos as confrarias medievais que eram conservadoras, somos agora compensados com os sindicatos que são revolucionários.

O mundo moderno rejeitou, como inacreditável, os milagres medievais que envolviam relíquias e lugares sagrados e resolveu criar os seus próprios milagres com mesas e pandeiretas4; negou que um morto pudesse vir a adquirir um corpo glorioso e vive para ouvir os seus cientistas dizer que podemos ter um clube de golf glorioso5 e um brandy com soda glorioso.

Não existe uma única instituição medieval que não tenha sido ridicularizada e destruída e que não ressurja agora como paródia na sociedade moderna.

Talvez faltassem algumas que agora aparecem. A psicanálise é o repor do confessionário.

O mundo moderno realmente carrega um fardo pesado de secretismo. Sempre a falar de iluminismo e opinião pública, tem mais segredo, no pior sentido, que qualquer outra época. Os seus políticos conservadores são financiados por fundos de proveniência duvidosa; os seus políticos revolucionários pelas sociedades secretas. Em termos afectivos, desenvolveu-se de forma mais fria e venenosa. O aspecto mais saudável desta nova psicologia é que é apenas mais um surto dessa secreção.

Do ponto de vista prático a comparação permanece. Quer faça ou não todo o bem que o confessionário faz, seguramente fará todo o alegado mal que o confessionário era acusado de fazer. Está de acordo em toda a linha com a velha acusação: a falta de decoro da matéria em questão e a falta de dignidade do destinatário.

Na verdade, a acusação comum é mais evidente contra um experimentalista ocasional do que contra um dedicado celibatário. Um padre pode ser libertino e quebrar os seus votos, mas não é evidente porque razão um libertino inveterado não deveria ter também votos para quebrar.


Mas toda esta comparação vai além da questão aqui em consideração. Basta dizer que também nesta questão o mundo moderno copia de forma enviesada o mundo medieval, que condena furiosamente. E, se é verdade que isso é um defeito, deve dizer-se que este é o modo mais próximo que ele se aproxima da virtude.





1 The South Sea Bubble, foi a denominação que se deu ao crash bolsista na City da cotação da Companhia dos Mares do Sul. Esta companhia financiou a Inglaterra na Guerra de Sucessão Espanhola e, em contrapartida ficou com o monopólio do comércio com toda a América do Sul. Claro que isso tornou a companhia muito atractiva em  bolsa, devido ao potencial de ouro e prata da América do Sul. Após uma especulação selvagem sobreveio o colapso.

2 Complexo materno: grupo de ideias ou sentimentos associados à imagem da mãe. Complexo de Electra: a criança identifica-se tanto com a mãe que deseja matá-la para possuir o pai.

3 Lewis Carrol, autor de Alice no País das Maravilhas, escreveu um poema em que fala de um animal imaginário que não chega a descrever. Disse que não podia explicar, porque nunca o viu. No entanto dizia que o/a snark arranha ou morde. Caça-se o/a snark com força e coragem pois o animal tem um fraco sentido de humor e gosta de acordar tarde. O boojum é um tipo particular de snark que fez com que um padeiro desaparecesse e nunca mais fosse encontrado.

4 Referência à psicanálise e às suas filhas, a hipnose e a hipnose regressa e, provavelmente, também ao espiritismo.

5 Hoje poderíamos dizer um clube de futebol glorioso, pois um clube de futebol tornou-se simultaneamente uma religião e uma seita urbana.