sábado, 23 de novembro de 2013

KANT PARA PRINCIPIANTES – Notas Finais e João Paulo II


“Um homem não nasce homem, torna-se homem, por meio de uma educação apropriada, que o transforme num ser racional livre, orientada para o futuro melhor da humanidade”, Kant.


Uma das objecções ao capítulo que escrevemos sobre a moral de Kant, foi a de considerarmos apenas a primeira parte da formulação do imperativo categórico.
A Segunda Parte do Imperativo Categórico:

“Age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca apenas como um meio.”



Qualquer pessoa que leia a Fundamentação para a Metafísica dos Costumes, de Kant77(mesmo aquelas que não têm necessidade de a ler dez vezes), seguramente se depara com a questão sobre o que terá levado Kant a estender a sua definição de imperativo categórico. Será que esta segunda parte não contém ou não está contida na primeira? O que terá levado Kant a insistir na definição, compondo-a?


À primeira abordagem, o enunciado parece conter muito nobres intenções. Dir-se-ia intenções muito cristãs, pois parece subentendido que todos e qualquer um dos homens são irmãos. Será essa a única interpretação possível ou existe outra interpretação nas entrelinhas, só para “iluminados”?
O nosso Mestre diz que se conhece uma árvore pelos seus frutos. Os de Kant foram o nacional-socialismo, o socialismo, o liberalismo nos costumes e na finança (também por influência de Hume). Em todos, uma elite iluminada põe e dispõe da maioria da população. Ora, isso deve-nos fazer suspeitar…

Dividamos o enunciado em duas partes e apuremos os conceitos. Na primeira parte fala-se de humanidade. Humanidade implica duas dimensões: o conceito de “todos os homens” e o conceito de “valor colectivo”, pois todos os homens são tomados de forma homogénea, como tendo um conjunto de valores partilhado.
Poucas serão as pessoas que acreditarão que a humanidade quanto aos seus valores, à sua tradição, à sua cosmovisão, possa ser considerada como um todo. Por isso existem nações, partidos políticos, confissões religiosas e cepticismo. Quanto à origem, aos caminhos e ao destino último, não podemos falar de humanidade como um todo homogéneo. O mundo encontra-se entre a palma e a espada.

Como disse Chesterton, “O mundo inteiro está em guerra para saber se uma determinada coisa é uma superstição devoradora ou uma esperança divina”78.



Na segunda parte fala-se de homem. Para Kant, ninguém nasce homem. Tal só se consegue por meio da administração de uma educação “adequada”, que “liberte” ou “ilumine” o homem. A saída do homem da sua menoridade faz-se pelo “esclarecimento”, que é a rejeição das “trevas medievais” e do “dogma das religiões”, para fazer uso exclusivo da razão. Hume diria “acordar do sono dogmático”. Só este homem é de facto racional, só este homem é um legislador, só este homem projecta a sua razão no mundo numénico. Na teoria do conhecimento o homem não atinge a coisa em si; mas na moral, este homem numénico, munido de uma razão “emancipada” que está no mundo numénico atinge a coisa em si, ou seja, a sua moral é indiscutível - é um dogma!

Portanto, crianças, analfabetos, homens com crenças religiosas, não atingem o estado de “maioridade” e não poderão ser considerados seres racionais livres - portanto, a maioria das pessoas. Estes homens “devem ser educados”, encontrando-se, por ora, fora do âmbito da humanidade ou do homem, tido como ser racional livre e, deste modo, fora do âmbito do imperativo categórico.

Logo, implicitamente, a maioria das pessoas podem ser usados, não como um fim, mas como um meio. É Kant quem o diz e mais ninguém. Basta ler, pensar e observar qual tem sido o resultado desta filosofia e em que é que ela se distingue da moral cristã.

A crença de Kant de que apenas um indivíduo educado “de certa forma” se torna “homem” aliada à crença de que a educação deve ser orientada para “um progresso universal da humanidade rumo ao melhor”, essa crença cega num futuro fixo e virtuoso e no progresso, remete-nos para uma questão tão cara aos iluministas: a escola pública e os seus limites. Deverão os programas lectivos da escola pública obedecer a um cânone centralizado e orientado pelo Estado? E a que princípios deve obedecer essa orientação? Será lícito ao Estado, por meio de impostos sobre todos os contribuintes, financiar por completo as despesas de uma Escola Pública orientada por valores que consideram os valores religiosos como algo a abater?79 




“Sugere Kant que a forma de um imperativo categórico é que o indivíduo deve agir apenas de acordo com uma máxima que se possa simultaneamente querer como lei universal, i.e., o princípio racional que deve governar a vontade. Isto, deve sublinhar-se, não é uma máxima, ou princípio de ação em si, mas apenas estabelece a forma que tais máximas devem assumir. Daí que a pessoa que argumenta que é correcto romper as suas promessas se quiser, estabelece como lei universal de acção que quebrar promessas é aceitável. Se houvesse essa lei universal, e se fosse seguida, é provável que a instituição da promessa deixasse de existir por causa da sua vacuidade. Não é claro, contudo, que o homem que isso quer, tenha cometido algo parecido com uma contradição. Isto significa que a força da razão prática permanece obscura e a discussão sobre ela e a sua utilidade tem continuado desde então.”80

A segunda nota vai para os iconoclastas. Confesso que faz alguma perplexidade observar na Hagia Sofia (a antiga Catedral de Santa Sofia) em Istambul, a mesma fúria iconoclasta que se observa em Amesterdão ou em Hamburgo. Parece que ela se relaciona de algum modo com o unitarismo. Afinal, Cristo ou Issa, também é venerado no Islão e no mundo da Reforma. Mas algo, na fúria iconoclasta, deve ultrapassar as razões que Kant encontrou – a questão do conceito de Presença e do intelecto intuitivo. Parecem justificações, não razões.

Tudo parece centrado na figura de Cristo.




 Afinal se Cristo for apenas um homem, não existe qualquer razão para estar nos altares; se Cristo for apenas Espírito, Dele não devem ser feitas imagens. Mas, se Cristo for simultaneamente Deus e homem, aí tudo muda de figura. Dele podem ser feitas imagens, bem como de sua mãe e de todos os seus amigos. Tal como na nossa casa. A moral do exemplo pode suplantar a moral do dever. O IV Concílio de Latrão em 1215 concluiu que entre o Espírito Criador de Deus e a nossa razão criada, as diferenças são infinitamente maiores que as semelhanças, mas não ao ponto de abolir a analogia e a linguagem.

Ora, as heresias geralmente rompem este equilíbrio e, ou caem para um homem semelhante a Deus, ou caem para um homem totalmente desvinculado de Deus. Desde que a Igreja se constituiu, ela teve sempre que manter uma tremenda disciplina doutrinal face a várias heresias, sobretudo de origem gnóstica – as mais recorrentes ao longo da História são a de que Cristo é apenas espírito, como a heresia albigense, ou a de que Cristo é apenas homem, como a heresia ariana e o Islão.

Ludwig Fuerbach, na origem do ateísmo marxista, diria que a grande tentação é reduzir o que é divino ao que é humano, mas Paulo81 diria que a “provocação” vem do próprio Deus, pois Ele realmente se fez Homem no Seu Filho e nasceu da Virgem Maria. A auto-revelação de Deus ocorre em especial na sua “humanização”82. “Mostra-nos o Pai? (...) Crede-me ao menos pelas obras. (…) Eu e o Pai somos um.”

“Podia Deus ir mais longe na sua condescendência, na sua aproximação do homem e das respectivas possibilidades cognitivas? Na realidade, parece que Deus terá ido tão longe quanto possível. Mais além não poderia ter ido. Em certo sentido, Deus foi longe demais!
Cristo não se tornou, «escândalo para os judeus e loucura para os pagãos» (1 Cor 1, 23)? Precisamente porque chamava a Deus seu Pai, porque O revelava tão abertamente em Si próprio, não podia deixar de suscitar a impressão de que era demais…

O homem não era capaz de suportar tal proximidade e começaram os protestos. Este grande protesto tem nomes precisos: chama-se Sinagoga e, depois, Islão. “Deus deve permanecer absolutamente transcendente, pura Majestade, nunca ao ponto de pagar pelas culpas da Sua própria criatura.”

Nesta perspectiva, Deus revelou-se até demais, na Sua intimidade. Não olhou ao facto de tal revelação O poder ofuscar aos olhos do homem, porque o homem não é capaz de suportar o excesso de mistério: não quer ser invadido e subjugado”, João Paulo II83.


Terminámos o ensaio sobre Kant. O objectivo deste ensaio não foi o de resolver o intrincado puzzle de Kant, mas antes o de formular novos enigmas, suscitar novas questões. O objectivo não foi, nem nunca será, o da conversão de quem quer que seja. Não temos da conversão uma ideia de imposição externa, nem de inevitabilidade, antes de uma escolha interna em perfeita autonomia e liberdade.
O objectivo foi desarmar todos aqueles que, milhares de anos após o Sinai, após Epicuro e os estóicos, após a discussão entre Paulo e os sábios em Atenas, no Areópago, persistem em colar aos católicos o rótulo de ignorantes.
O objectivo foi demonstrar a esses sofistas que não são mais iluminados que os crentes. Que em Kant se encontram infinitamente mais contradições do que em Cristo.
O objectivo foi demonstrar que um homem que toma a razão como sinónimo de ciência e vice-versa, não só acaba excluído da arte, da música, da filosofia ou da teologia, como acaba limitado nos limites da própria ciência. Por isso este  sofista, dentro da caixa do seu mecanicismo, acaba não só a duvidar da razão, como de si próprio e dos outros; descrente do seu próprio universo, agarra-se à crença em “universos paralelos”.


André Malraux dizia que o século XXI seria o século da religião ou não seria nada. 





Agradecimento:


António Campos

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78 Chesterton, O Homem Eterno, 1925. Edição Alêtheia, Lisboa, 2009.


79 Immanuel Kant, Pedagogia. www.philosophia.cl / Escuela de Filosofía Universidad ARCIS. http://www.ddooss.org/articulos/textos/kant_pedagogia.pdf

O homem deve ter civilidade, ou seja, prudência, simpatia e boas maneiras, por forma a que possa ser influente e possa captar os homens para os seus fins.
Adestram-se os cavalos, os cães e também se podem adestrar os homens.
A primeira fase de educação do aluno deve envolver apenas obediência - é a coacção mecânica. Na segunda fase pode permitir-se-lhe a reflexão, mas submetida a leis – é a coacção moral.

É necessário que os pais cedam toda a sua autoridade aos preceptores. A escola pública é preferível à privada porque esta não faz mais do que prolongar e exagerar os erros da educação em família.

A submissão do aluno pode obter-se positiva ou negativamente. No primeiro caso obrigando-o ao que se lhe à prescrito por aplicação do castigo; no segundo caso impedindo-o de fazer aquilo que ele pretenda fazer.


80 David Walter Hamlyn, Uma História da Filosofia Ocidental, Jorge Zahar Editor, 1990.




O indivíduo deve agir sempre de tal maneira a tratar todos os seres racionais, seja em si mesmo ou em outrem, como um fim e nunca como um meio – porquanto a natureza racional existe como um fim em si mesmo. Define vontade de todos os seres racionais como uma vontade universalmente legislativa, ideia esta que expressa também em
termos na noção de autonomia da vontade.


Um ser racional pertence, como membro, ao reino dos fins quando prescreve nele
leis universais através da autonomia da vontade. Mas está também sujeito a tais
leis e é em tal qualidade de membro que o ser moral individual deve determinar
os princípios de acordo com os quais agirá. Kant alega que essas três versões do
imperativo categórico equivalem à mesma coisa, proporcionando, por seu turno,
a forma, a matéria e caracterização completa de todas as máximas, de acordo
com as categorias de unidade, pluralidade e totalidade. Poucos conseguiram
entender como essas três versões poderiam ser realmente interpretadas como três
versões da mesma coisa, e o apelo às categorias em nada ajuda.



Mesmo que, como pode parecer plausível, as três versões do imperativo categórico sumariem uma concepção de moralidade, que pode realmente ser abstraída de uma consciência moral comum, parece definitivamente mais débil a sua alegação de ter fornecido uma base metafísica a essa concepção de moralidade.



No caso dos princípios do Crítica da Razão Pura, supunha-se que sua objectividade fosse demonstrada pelo facto deles se revelarem como condições de experiência possível. É menos do que claro que acção correspondente seja possível para os imperativos da razão prática.

Kant parece, em vez disso, ter suposto que demonstrar que tais princípios são exigências da razão em geral é suficiente para lhes demonstrar a objectividade – o que quer que isso signifique neste contexto.


81 Cor 11, 23. A Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos), Lisboa, 1992.


82 Jo 14, 8-11. A Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos), Lisboa, 1992.


83 João Paulo II, Atravessar o Limiar da Esperança. Editora Planeta, 1994.

sábado, 9 de novembro de 2013

KANT PARA PRINCIPIANTES – Epílogo: Os Críticos – Bento XVI




A verdade significa mais do que saber: o conhecimento da verdade tem como finalidade o conhecimento do bem72.



BENTO XVI (Joseph Aloisius Ratzinger, 1927 - )73:


“Não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus. A convicção de que agir contra a razão está em contradição com a natureza de Deus é exclusivamente um pensamento grego, ou vale sempre e por si mesmo? Penso que neste ponto se manifesta a profunda concordância entre aquilo que é grego, no melhor sentido da palavra, e aquilo que é fé em Deus, fundamentada na Bíblia. No fundo, trata-se do encontro entre a fé e a razão, entre o autêntico iluminismo e a religião. O Deus verdadeiramente divino é aquele Deus que se mostrou como logos e, como logos, agiu e age – No princípio era o logos e o logos é Deus, diz-nos São João.


A deselenização emerge primeiro em ligação com os postulados da Reforma do século XVI. Considerando a tradição das escolas teológicas, os reformadores vêem-se diante de uma sistematização da fé condicionada totalmente pela filosofia; isto é, perante uma determinação da fé a partir de fora, em virtude de um modo de pensar que não derivava dela. Assim a fé já não se apresentava como palavra histórica viva, mas como elemento inserido na estrutura de um sistema filosófico. 

Aparecendo a metafísica como um pressuposto derivado de outra fonte, seria necessário libertar dela a fé, para fazê-la voltar a ser totalmente ela mesma. Quando Kant afirmou que teve de pôr de lado o pensar para dar espaço à fé, ele procedeu fundado neste programa e com um radicalismo imprevisível para os reformadores74. Foi assim que ele ancorou a fé exclusivamente na razão prática, negando-lhe totalmente o acesso ao conjunto da realidade.



Na base encontra-se a autolimitação moderna da razão, expressa de maneira clássica nas "críticas" de Kant, posteriormente radicalizada pelo pensamento das ciências naturais. Este conceito moderno da razão baseia-se numa síntese entre platonismo (cartesianismo) e empirismo, que o sucesso técnico confirmou.

Por um lado, pressupõe-se a estrutura matemática da matéria, por assim dizer, a sua racionalidade intrínseca, que torna possível compreendê-la e usá-la na sua eficácia operacional: este pressuposto básico é, por assim dizer, o elemento platónico no conceito moderno da natureza.

Por outro lado, trata-se da utilização funcional da natureza para as nossas finalidades, onde só a possibilidade de controlar a verdade ou a falsidade através da experiência é que fornece a certeza decisiva. O moralismo subjectivista de Kant, baseado numa fé desvinculada do pensamento, mas centrada na razão prática, nega à fé todo o acesso à realidade.


Contudo, é importante para as nossas reflexões o facto de que o método como tal, exclui o problema de Deus, apresentando-o como um problema acientífico ou pré-científico. Portanto, com isto, encontramo-nos diante de uma redução do leque da ciência e da razão que é obrigatório pôr em questão. Neste momento é suficiente ter presente que, numa tentativa de conservar o carácter de disciplina "científica" da teologia à luz desta perspectiva, do cristianismo restaria apenas um miserável fragmento. Mas devemos dizer mais: se a ciência no seu conjunto é apenas isto, então é o próprio homem que, com isto, sofre uma redução. Porque nesse caso, as questões propriamente humanas, isto é, «de onde venho» e «para onde vou», as questões da religião e do ethos, não podem ter lugar no espaço da razão comum, tal como a descreve uma «ciência» assim entendida, devendo ser transferidas para o âmbito do subjectivo. 

O sujeito decide, com base nas suas experiências, o que lhe parece religiosamente sustentável, e a «consciência» subjectiva torna-se, em última análise, a única instância ética. Desta forma, porém, o ethos e a religião perdem a sua força de criar uma comunidade e caem no âmbito da discricionariedade pessoal. O que permanece das tentativas de construir uma ética partindo das regras da evolução ou da psicologia e da sociologia, é simplesmente insuficiente”.

Ainda Bento XVI75:

“A Europa desenvolveu uma cultura que, de forma até agora desconhecida da humanidade, exclui Deus da consciência pública. As modernas filosofias iluministas caracterizam-se por ser positivistas, anti-metafísicas. Daí resulta que o homem não admita nenhuma outra instância moral exterior aos seus cálculos e que, o conceito de liberdade que parecia estender-se sem limites, acabe por levar à destruição da liberdade e da vida. Embora pareçam inteiramente racionais, estas filosofias não são a voz da razão, até porque são temporal e culturalmente vinculadas à situação actual do Ocidente. É preciso afirmar que estas filosofias iluministas são incompletas, porque cortam conscientemente as suas raízes históricas, perdendo as fontes nascentes de onde elas próprias surgiram, essa memória fundamental da humanidade sem a qual a razão perde orientação.

A perda da tradição acarreta a perda de normas invioláveis, tudo passa a ser possível. Aquilo que conta é só eu e o instante presente. Quando o homem coloca o seu egoísmo, o seu orgulho e o seu conforto acima da exigência da verdade, aquilo que é adorado já não é Deus, mas sim os ídolos, a aparência e a opinião corrente. Aquilo que é contra-natura torna-se norma; o homem que vive contra a verdade vive também contra a natureza. Os laços entre homem e mulher, entre pais e filhos, dissolvem-se. Já não é a vida que reina, mas sim a morte. Forma-se uma civilização de morte. As palavras de São Paulo em Rom, 1, 21-32 surpreendem-nos pela sua actualidade.76


Hoje não existe um saber fazer separado do poder fazer, pois isso seria contra a liberdade que é o valor supremo absoluto. A separação radical das suas raízes, conduz a filosofia iluminista a um prescindir do homem. No fundo o homem não tem liberdade nenhuma, dizem os cientistas, pois ele não deve acreditar que é diferente dos outros seres vivos e, portanto, deve ser tratado como eles. Esta filosofia não exprime a razão acabada do homem, mas apenas parte dela e, por via desta mutilação da razão, não é possível de modo algum considerá-la racional.

A recusa da referência a Deus não é uma expressão de uma tolerância que pretende proteger as crenças não teístas e a dignidade de ateus e agnósticos, mas antes expressão de uma vontade que pretende ver Deus apagado da vida pública da humanidade e atirado para a esfera subjectiva de culturas do passado. O relativismo torna-se assim um dogmatismo que se julga em poder do conhecimento definitivo da razão e de considerar tudo o resto como um mero estadio ultrapassado da humanidade.


A verdade moral, como verdade do valor único e irrepetível da pessoa feita à imagem de Deus, é uma verdade plena de exigências à minha liberdade. Decidir olhar para o seu rosto é decidir converter-me, deixar-me interpelar, sair de mim, abrir espaço ao outro. “Sereis medidos com a medida com que medirdes.” O olhar que dirijo ao outro decide a minha humanidade.”

“É uma arrogância do intelecto dizermos: Isto tem em si algo de discrepante, de absurdo. Por isso, não é possível77.”





António Campos

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72 http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/january/documents/h _ben-xvi_spe_20080117_la-sapienza_po.html



Bento XVI parte do princípio que toda ação de Deus é razoável. Se Deus é o autor de todas as coisas, e se Ele tudo fez com Sabedoria, a Fé não pode ser oposta à razão e nem às verdadeiras descobertas da ciência.  A oposição entre Fé e Razão, entre Religião e Ciência, é um sofisma do Iluminismo. 

A fé da Igreja sempre se ateve à convicção de que entre Deus e nós, entre o seu eterno Espírito criador e a nossa razão criada, existe uma verdadeira analogia, na qual por certo – como afirma, em 1215, o IV Concílio de Latrão – as diferenças são infinitamente maiores que as semelhanças, mas não até ao ponto de abolir a analogia e a sua linguagem.

O homem quer conhecer; quer a verdade. Esta é primariamente algo que diz respeito ao ver, ao compreender, à theoría, como a denomina a tradição grega. Mas, a verdade nunca é apenas teórica. Agostinho, ao estabelecer uma correlação entre as Bem-Aventuranças do Sermão da Montanha e os dons do Espírito mencionados no capítulo 11 de Isaías, notou uma reciprocidade entre "scientia" e "tristitia": o simples saber, disse, deixa-nos tristes. E realmente quem se limita a ver e apreender tudo aquilo que acontece no mundo, acaba por ficar triste. Mas, verdade significa mais do que saber: o conhecimento da verdade tem como finalidade o conhecimento do bem. Este é também o sentido do questionar-se socrático: Qual é o bem que nos torna verdadeiros? A verdade torna-nos bons, e a bondade é verdadeira: tal é o optimismo que vive na fé cristã, porque a esta foi concedida a visão do Logos, da Razão criadora que, na encarnação de Deus, se revelou conjuntamente como o Bem, como a própria Bondade.

Certamente o amor, como diz Paulo, «ultrapassa» o conhecimento, sendo por isso capaz de apreender mais do que o simples pensamento ( Ef 3, 19).

Esse subjectivismo radical desembocou, na prática, por um lado, numa negação completa do sobrenatural e no ateísmo materialista, e, por outro lado, no fideísmo gnóstico. Em ambos, não há lugar para a harmonização da Fé com a Razão. Deus criador é excluído quer pelo racionalismo panteísta, quer pelo fideísmo gnóstico.



74 O argumento ontológico de Kurt Gödel também parece desmentir o conceito de proscrição do conceito metafísico de Deus para além do conhecimento humano e reservá-lo apenas para o campo da moral, quando a razão humana é numénica - “Para admitir a fé tive que deixar de pensar”, dizia Kant. Gödel, pelo contrário, utilizou o pensar para chegar a Deus69, 70, 71.


75 Joseph Ratzinger, A Europa de Bento na Crise das Culturas, Alêtheia, Lisboa, 2005.

Todos nós, uns mais outros menos, utilizamos produtos de uma técnica cujos fundamentos científicos não conhecemos. Nós acreditamos que tudo isto não é desprovido de fundamento. Essa “fé” permite-nos desfrutar do benefício do saber dos outros. A vida humana torna-se impossível se já não se pode confiar no outro ou nos outros, na sua experiência, no seu conhecimento, naquilo que nos é oferecido antecipadamente. Esta fé faz sempre referência a alguém que está a par da questão, apoia-se na confiança da multidão pela utilização prática das coisas e num certo tipo de verificação do saber (que desconheço) na experiência quotidiana- mesmo não sabendo os fundamentos da electricidade verifico que os meus electrodomésticos funcionam quando ligados à corrente. 

Também assim, a experiência de Deus chega até nós por meio de homens que a ouviram e tocaram. Ninguém conhece tudo, mas, todos juntos, conhecemos aquilo que é necessário saber. A relação com Deus baseia-se também na comunhão entre homens. Também na fé sobrenatural existe uma multidão que vive de um pequeno número, e este pequeno número vive para a multidão. A fé cristã é, na sua própria essência, um participar nessa visão de Jesus que torna possível a sua palavra. Sem o realismo dos santos, sem o seu contacto com a realidade que está em causa, a teologia torna-se um jogo intelectual vazio e perde o seu carácter científico. A fé é portanto um modo de “ser com”, de romper com o isolamento do meu eu, a ruptura da barreira da minha subjectividade. Eu não posso construir a minha fé pessoal num diálogo privado com Jesus. A fé ou vive em nós ou então não vive. Tal como acontece na vida quotidiana, também na nossa relação com Deus só podemos encontrar um caminho participando do conhecimento dos outros.

76 Rom 1, 21-31:


Porque, tendo conhecido a Deus, não O glorificaram como Deus, nem Lhe renderam graças, mas os seus pensamentos tornaram-se fúteis e o coração insensato deles obscureceu-se.

Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos.

E trocaram a glória do Deus imortal por imagens feitas segundo a semelhança do homem mortal, bem como de pássaros, quadrúpedes e répteis.

Por isso Deus os entregou à impureza sexual, segundo os desejos pecaminosos do seu coração, para a degradação do seu corpo entre si.

Trocaram a verdade de Deus pela mentira, e adoraram e serviram a coisas e seres criados, em lugar do Criador, que é bendito para sempre. Ámen.

Por causa disso Deus os entregou a paixões vergonhosas. Até as suas mulheres trocaram as relações sexuais naturais por outras, contrárias à natureza.

Da mesma forma, os homens também abandonaram as relações naturais com as mulheres e inflamaram-se de paixão uns pelos outros. Começaram a cometer actos indecentes, homens com homens, e receberam em si mesmos o castigo merecido pela sua perversão.

Além do mais, visto que desprezaram o conhecimento de Deus, Ele os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem o que não deviam.

Tornaram-se cheios de toda sorte de injustiça, maldade, ganância e depravação. Estão cheios de inveja, homicídio, rivalidades, engano e malícia. São bisbilhoteiros,

caluniadores, inimigos de Deus, insolentes, arrogantes e presunçosos; inventam maneiras de praticar o mal; desobedecem a seus pais;

São insensatos, desleais, sem amor pela família, implacáveis.   


77 Bento XVI, Luz do Mundo: O Papa, a Igreja e os Sinais dos Tempos, Ed. Lucerna, Cascais, 2010.


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

KANT PARA PRINCIPIANTES - Epílogo: Os Críticos – Popper e Balmes





A realidade física existe independentemente da mente humana e é de uma natureza diferente da experiência humana - e, por essa razão, nunca poderá ser directamente apreendida, K. Popper






KARL POPPER (1902-1994): É impossível provar, definitivamente a verdade de qualquer teoria científica ou colocar toda a ciência ou toda a matemática em bases absolutamente sólidas, porque a certeza é algo que não se encontra disponível63.


Para Popper, a indução não existe.
Karl Popper propõe o seu critério de falseabilidade como critério de demarcação entre ciência empírica e não-ciência: uma teoria pertence à ciência empírica apenas se puder ser desmentida ou falseada (tornada falsa) pelos factos.

“A indução repetitiva (ou indução por enumeração), possui uma óbvia falta de validade desse género de raciocínio: nenhum número de observações de cisnes brancos é capaz de estabelecer que todos os cisnes são brancos (ou que é pequena a probabilidade de se encontrar um cisne que não seja branco). Portanto, a indução por enumeração está fora de questão: não pode fundamentar nada.

Uma ideia ingénua ligada à teoria de indução é a de que, na análise de factos, nós não devemos ter preconceitos, devemos ser uma tábua rasa. Ora, a verdade é que nós somos uma tábua plena, cheia de sinais que a tradição ou a evolução cultural deixaram escritos. Purgada de preconceitos, a mente não será mente pura, mas apenas mente vazia. Nós operamos sempre com teorias, ainda que frequentemente não tenhamos consciência disso.”


Se não for possível extrair de uma teoria consequências passíveis de verificação factual, ela não é científica64. É fácil de ver como teorias empiricamente irrefutáveis são criticáveis. Assim, por exemplo, se o determinismo kanteano é fruto da ciência da época (o mundo-relógio de Newton), e se a ciência posterior transforma o mundo-relógio num mundo-nuvem, então cai por terra aquele saber de fundo sobre o qual se erguia o determinismo de Kant, e essa derrocada leva consigo também a teoria filosófica do determinismo.


"As formas indesejáveis e indefensáveis de sociedade moderna são aquelas em que é imposto um planeamento centralizado e se proíbem as divergências. A criação e perpetuação de um estado ideal de sociedade não é uma opção para nós, porque nós temos que gerir um processo rápido e interminável de mudança65.

A sociedade aberta é dirigida por instituições que permitem a convivência do maior número possível de ideias, de ideologias, de valores, de visões do mundo, filosóficas ou religiosas. O futuro não é previsível também porque não são previsíveis os desenvolvimentos da ciência, dos quais depende, em grande parte, a ordem da sociedade."


O que se opõe à Fé não é a Razão, mas o delírio da Razão. O racionalismo - quer o do Renascimento, quer o do chamado Iluminismo do século XVIII, que originou o cientificismo moderno - é, de fato, irracional. É irracional porque não admite a fé na razão dos outros. Pois, se toda razão é limitada, se toda razão individual reconhece sua limitação, então, a razão humana é limitada. Portanto, crer na omnipotência da razão individual ou de um determinado grupo, como prega o racionalismo, o iluminismo, é um acto de fé irracional na razão66.

Diz Popper: “A atitude racionalista fundamental baseia-se numa decisão irracional, ou numa fé na razão. A fé na razão, inclusive na razão dos outros, implica a ideia de imparcialidade, de tolerância, de rejeição de toda pretensão autoritária.

A pergunta justa de teoria da política não é: Quem deve comandar?, porque nenhum homem, nenhum grupo, nenhuma raça e nenhuma classe pode arrogar-se o direito natural de domínio sobre os outros. A pergunta certa será antes: Como é possível controlar quem comanda e substituir os governantes sem derramamento de sangue?"67


JAIME BALMES (1810-1848):

As funestas teorias de Kant não poderiam deixar de provocar efeitos desastrosos. Data desde então o extravio filosófico da Alemanha: por um lado, o cepticismo mais dissolvente; por outro lado, o dogmatismo mais extravagante exposto por meio de sistemas monstruosos. 

Kant reduz toda a ciência a fenómenos sensíveis e, como a estes não confere sequer a autoridade da extensão e da sucessão, uma vez que faz do espaço e do tempo meras formas subjectivas, decorre que toda a ciência é subjectiva, sem objectividade adicional que a da mera aparência ou puramente fenomenal. Assim tudo se resume ao “Eu”; o entendimento é que confere a lei: “Não é apenas a faculdade de estabelecer leis comparando fenómenos; é mesmo a legislação para a natureza, quer dizer, sem o entendimento não existiria natureza ou unidade sintética da diversidade dos fenómenos segundo certas regras…”19

“Todos os fenómenos como experiência possível estão a priori no entendimento e dele extraem a sua possibilidade formal; de igual modo, estão a título de puras intuições na sensibilidade, e apenas por meio dela adquirem forma.”19

Quaisquer que sejam as explicações com que Kant tenha pretendido atenuar as consequências dos seus princípios, a verdade é que neles se encontra a semente do erro. O germinar dessa semente já não iria ser impedido pelo filósofo de Königsberg. No estudo das suas obras fundaram-se os metafísicos alemães; a filosofia do “Eu” estava na Crítica da Razão Pura. De Kant a Fichte vai apenas um passo68


António Campos

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63 Karl Popper, O realismo e o objectivo da Ciência. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987.

A assimetria lógica que existe entre verificação e falseabilidade de uma teoria (milhões de confirmações não tornam certa uma teoria; um só facto contrário logicamente a destrói -um só pedaço de ébano que é madeira e que afunda, falseia a teoria "todas as madeiras flutuam na água"); todo o controlo sério de uma teoria se resolve numa tentativa de falseá-la.
A descoberta do erro coloca a comunidade cientifica na necessidade de propor e
pôr à prova uma teoria melhor do que a precedente, uma teoria com maior poder
explicativo e previsível.

Uma experiência, ou prova ou pressupõe sempre alguma coisa a experimentar ou a comprovar. E esse algo são as hipóteses (ou conjecturas, ideias e teorias) que inventamos para resolver os problemas.

Do ponto de vista histórico, é um dado de facto que, ao lado das ideias metafisicas que obstaculizaram a ciência, há outras que representaram fecundos programas de pesquisa (a teoria atómica de Demócrito, a ideia de um princípio físico ou elemento último, a teoria do movimento da terra, a teoria corpuscular da luz, a teoria da electricidade como fluido, etc.); e existiram metafísicas que, com o crescimento do saber de fundo, se transformaram em teorias verificáveis.

Esse facto histórico demonstra claramente que, do ponto de vista lógico, o âmbito do verdadeiro não se identifica com o âmbito do verificável.

64 A explicação do problema da indução, no método científico, efectuado por um amigo nosso, matemático:

Imagine que os geneticistas comecem a estudar um ser humano X1. Descobrem, em X1, que X1 tem a propriedade P no seu código genético. Seguidamente, descobrem que o ser humano X2 também tem a propriedade P. E o X3, X4, X5, X6,....,Xn, também. Logo, os geneticistas concluem que TODOS os seres humanos possuem a propriedade P no seu código genético.

O que aconteceu aqui não foi dedução. Foi indução. O que aconteceu, não foi um processo cognitivo lógico; isto é, NÃO há razão alguma para que isso seja verdadeiro. Ainda mais problemático, é notar que isto é um método recorrente em ciência. Na verdade está na base do método científico TODO. 

Isto é um problema filosófico chamado "Problema da Indução" que, por sua vez, ficou conhecido nas mãos de David Hume.

O que Popper tentou fazer, através do princípio de falseabilidade, foi tentar traduzir princípios de falseabilidade da lógica para o método científico.
Em lógica, quando usamos, numa afirmação, o quantificador universal “para todo” (aquele 'A' de cabeça para baixo), o que precisamos de fazer para negar tal afirmação é utilizar a negação do quantificador “para todo” que é, nesse caso, o quantificador “existe”. Por exemplo: 

P = TODO homem é mortal. 
¬P = EXISTE um homem que não é mortal.

Perceba que P e ¬P NÃO podem ser mutuamente verdadeiras. Isto é denominado, em lógica, “Princípio da não contradição”. 

Na tentativa de resolver o problema da indução, Popper aplicou estes conceitos ao método científico. O princípio da falseabilidade de Popper diz que, para uma asserção científica ser falseável, em princípio será possível fazer uma experiência que comprove tal falseabilidade. Por exemplo, a asserção "Todos os Cisnes são Negros" é falseável se encontrarmos um "Cisne Branco". É importante realçar aqui os quantificadores, "existe" (relativo à existência de um Cisne Branco) e "para todo" (TODOS os cisnes são negros).

(Perante uma afirmação ou teoria científica é possível imaginar sempre um achado que, se for encontrado, a colocará em causa, por ex: encontrar um esqueleto de Homo sapiens com a mesma datação dos primeiros esqueletos humanóides e a Teoria da Evolução, encontrar uma velocidade superior à da luz e a teoria da Relatividade, etc. Se não for possível imaginar um achado hipotético que, a ser encontrado, colocará em questão a formulação científica, então essa formulação não é de natureza científica).

Relativamente ao princípio da falseabilidade para a existência de Deus, não é no sentido empírico que as provas se dão, mas no sentido lógico. O que Plantinga69,70,71 sugere é:

O ateu tem que negar a proposição: "EXISTE um ser com grandeza máxima." De salientar aqui o quantificador "existe". Negar isso logicamente, significa atribuir o quantificador universal "para todo"; isto é, o ateu PRECISA provar a proposição "PARA TODO ser X, X NÃO tem grandeza máxima."

65 Karl Popper, Sociedade aberta, Universo aberto. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987.

Popper critica o historicismo, ou seja, todas as filosofias que pretendem ter captado o sentido da história humana: o futuro não é previsível porque não são previsíveis os desenvolvimentos da ciência, dos quais depende, em grande parte, a ordem da sociedade.

O materialismo histórico (é a "estrutura económica" que determina a "superestrutura ideológica") é urna absolutização metafisica de um aspecto da realidade; a dialéctica é um mito; e, além disso, os próprios marxistas proibiram as componentes teóricas do marxismo, que eram científicas, de se desenvolverem como ciência, urna vez que, diante das refutações históricas da teoria, eles procuraram proteger a teoria com hipóteses ad hoc, comportando-se como o médico que, em vez de salvar o doente, procura salvar com vários subterfúgios o seu diagnóstico, matando o doente.

66 Karl Popper, A sociedade aberta e os seus inimigos, Itatiaia-Edusp., Belo Horizonte, São Paulo, 1974.

67 G. Reale, D. Antiseri, História da Filosofia, vol. III, cap. 7, O Racionalismo Crítico de Karl R. Popper, Paulus Editora, São Paulo, 2005.

Claro que o que vai na mente de Popper é a recusa de todas as formas de totalitarismo político, não a recusa de sistemas de organização política como o monárquico - Popper é Sir e cavaleiro do Império Britânico. A imparcialidade também deve ser tomada no contexto de respeito pelas crenças dos outros, pois, como escrito anteriormente, para Popper, todo o ser humano age fundado em valores ou preconceitos.  Entende-se o sentido de "Como é possível controlar quem comanda?", mas a questão encerra em si algum grau de ingenuidade. De facto, na sociedade moderna, essa é a forma de agir do poder financeiro e económico sobre o poder político, através dos mass media e do financiamento , sobretudo por meio da rede de influência das sociedades secretas.

Obviamente que Popper se encontrará mais perto do sincretismo do que de uma crença religiosa específica, mas tem o mérito de criticar o dogmatismo de Kant e dos seus sucedâneos marxistas. 

68 Jaime Balmes, Historia de la Filosofía, cap. LV, Imprenta Sáez Hermanos, Madrid, 1935: http://www.e-torredebabel.com/Balmes-Historia-Filosofia/Indice.htm  

Encontra-se esta doutrina no idealismo de Berkeley; e Kant revela-se numa passagem da sua Crítica da Razão Pura e que transcrevo como prova da minha imparcialidade e para demonstrar o estilo deste filósofo:

“Quando digo: no espaço e no tempo a intuição dos objectos exteriores e a do espírito representam estas duas coisas tal e qual como elas afectam os nossos sentidos, não quero dizer que os objectos sejam uma pura aparência, porque no fenómeno, os objectos, e as propriedades que nós lhes atribuímos, são sempre considerados como alguma coisa dada realmente; embora esta qualidade de ser dada dependa unicamente do modo de perceber do sujeito na sua relação com o objecto dado, este objeto, como fenómeno, é diferente de si mesmo como objeto em si. 

Eu não digo que os corpos pareçam simplesmente ser exteriores, o que a minha alma pareça simplesmente ter sido dada na minha consciência: quando eu afirmo que a qualidade do espaço e do tempo (mediante a qual eu ponho o corpo e a alma como sendo a condição da sua existência) existe unicamente no meu modo de intuição e não nos objectos em si mesmos, cairia em erro se convertesse em aparência pura o que devo tomar por um fenómeno; no entanto isto não ocorre se se admitir o meu princípio da idealidade de todas as nossas intuições sensíveis.

Pelo contrário, se se atribui uma realidade objectiva a todas essas formas das representações sensíveis, não se pode evitar que o todo se converta em pura aparência; porque se se consideram o espaço e o tempo corno qualidades que devam encontrar-se quanto à sua possibilidade nas coisas em si, e se se pensa no absurdo em que então se cai, uma vez que duas coisas infinitas que não podem ser substâncias, nem nada inerente às substâncias, e que são, não obstante, alguma coisa existente e até condição necessária da existência de todas as coisas, todavia subsistem, mesmo quando tudo já se encontra adicionado, e, nesse caso, não se pode censurar o excelente Berkeley por ter reduzido os corpos a uma mera aparência.”19

Admite que o mundo é uma aparência, embora não uma pura aparência. Duvido muito que Berkeley quisesse dizer mais; o filósofo irlandês não negaria a realidade dos seres que nos afectam, não negaria que os fenómenos da sensibilidade dimanassem de objectos reais; apenas queria dizer que estas coisas não eram, como nós pensávamos, objectos realmente extensíveis, o que bastava para a sua teoria idealista. 

Tudo isto admite Kant, uma vez que a extensão ou forma do espaço o reduz a um facto puramente subjectivo, a que não corresponde na realidade nada externo, excepto uma coisa em si que ignoramos o que é; por conseguinte, admite a possibilidade do idealismo, e como acrescente que a transposição do espaço para o exterior conduz a absurdos, não só admite a possibilidade do idealismo, mas mesmo a necessidade.

E, como por fim, aplica ao tempo o mesmo que ao espaço, resulta que o seu idealismo é, porventura, mais refinado que o de Berkeley, pois destrói a existência e a possibilidade não só da extensão, mas também da sucessão.