domingo, 20 de maio de 2018

Wittgenstein Para Principiantes: A Confluência Holística de Chesterton e Wittgenstein







“Diga-lhes que tive uma vida maravilhosa!”1, são as últimas palavras de Wittgenstein para a
Sra Bevan. Esta alegria, este sentido de maravilha com a existência não é o único paralelo com Chesterton.

Ambos possuíam a consciência de que o cristianismo não é uma doutrina ou filosofia, mas sim o testemunho de um encontro, tal como o facto de que a doutrina do pecado original é a única que pode explicar o problema do mal e a consciência humana: “O cristianismo não é uma doutrina; quero dizer com isto que não é uma teoria sobre o que aconteceu ou pode vir a acontecer à alma humana; mas, antes pelo contrário, trata-se de uma descrição de algo que ocorre de facto na vida humana. Na verdade, a "consciência do pecado" é um facto existencial (event), tal como o são o desespero a a salvação pela fé. Aqueles que falam de tais coisas (Bunyan por exemplo) apenas estão a contar o que lhes aconteceu, independentemente do prisma à luz do qual outros o interpretem.” 2

Ambos tiveram amigos católicos junto de si no dia da despedida deste mundo. ”Diga aos meus amigos católicos que rezem por mim”, pediu Wittgenstein à Sra Bevan. Elisabeth Anscombe não só rezou pelo homem que a precedeu na cátedra, como compilou e traduziu para o inglês as Investigações Filosóficas.

A renúncia e o serviço aos outros foi uma marca de ambos. No caso de Wittgenstein, desde abdicar da sua colossal fortuna, talvez a maior da Europa na sua época, passando por servir voluntariamente na I Grande Guerra, até terminar com a renúncia à cátedra para trabalhar como voluntário no Guy’s Hospital na II Grande Guerra.

Ambos consideravam estar fora do espírito da sua época, num estado que se pode definir como o de “remar contra a maré”: “O meu trabalho está em oposição ao espírito que caracteriza a corrente da civilização anglo-americana na qual todos vivemos.”3

A esse espírito da nossa época podemos chamar cientismo ou cientifismo: a crença de que toda a questão inteligível tem uma solução na ciência.

Wittgenstein e Chesterton concordam sobre o papel da ciência. A ciência, enquanto medida da natureza, tem que usar réguas objectivas, fenómenos observáveis e mensuráveis. No entanto, a ciência quando aplicada ao estudo do homem, retira dele toda a sua dimensão não científica, i. e., artística, mística, ética,…enganando-se entrondosamente: “A menos que se considere primitivo não nos maravilharmos com as coisas e, nesse caso, os homens de hoje são verdadeiramente primitivos (como Renan), se pensam que são as explicações científicas que podem aumentar o deslumbramento. Como se um relâmpago fosse mais rotina ou menos surpreendente hoje do que há dois mil anos. O homem tem que acordar para o maravilhamento - e os povos provavelmente também. A ciência é apenas um meio de os colocar de novo a dormir.”4

Era esta natureza “outra” que Wittgenstein afirmava “estar fora do mundo”, “tudo o que realmente interessa não pode ser dito” (usando a lógica e proposições da ciência).

“- O que sei eu deste mundo e de Deus?

Que eu fui colocado nele como o meu olho no meu campo de visão.

Que algo nele é problemático: o seu sentido.

Que o seu sentido se encontra fora dele.

Que a vida é o meu mundo.

Que a minha vontade penetra o mundo.

Que a minha vontade pode ser boa ou má.

Que o bem e o mal têm que ver com o significado do mundo.

Ao sentido da vida ou do mundo podemos chamar Deus.”5



“O homem de ciência é um estudioso da natureza; quase nunca um estudioso da natureza humana. (…) O mesmo espírito frio e distante que leva ao sucesso no estudo da astronomia ou da botânica, conduz ao desastre no estudo da mitologia ou das origens do homem. É necessário deixar de ser homem para fazer justiça a um micróbio; não é necessário deixar de ser homem para fazer justiça ao homem. A mesma supressão da compaixão, o mesmo afastamento de intuições e suposições que tornam um homem sobrenaturalmente inteligente quando trata do estômago de um aranha, fará dele sobrenaturalmente estúpido ao tratar do coração do homem.

A ignorância sobre o outro mundo é motivo de vanglória de muitos homens de ciência; mas neste assunto, o erro surge, não pelo desconhecimento do outro mundo, mas pela ignorância deste.

Dizer, «Os nativos de Mumbo Jumbo acreditam que os mortos se alimentam e precisam de comida na jornada do outro mundo. Isso está comprovado pelo facto de colocarem comida e utensílios de cozinha nos túmulos funerários», seria o mesmo que afirmar «o inglês do século XX acreditava que os mortos podiam sentir cheiros. Isso é comprovado pelo facto de que os túmulos eram sempre cobertos com rosas, violetas e outras flores».



É a ideia que Chesterton expressou ao afirmar que a ciência encontra factos na natureza mas nada nos diz sobre a natureza em si mesma: “A ciência diz-nos quanto fósforo e proteína existe numa bifana, mas a ciência não consegue analisar o desejo humano por uma bifana. Não sabe dizer quanto desse desejo é fome, quanto é hábito, quanto é ansiedade e quanto é um assombroso amor pelo belo.”6



O uso extrapolado da ciência para finalidades que não pertencem a esse campo é uma ideologia. A sua utilização é uma nova fonte de metafísica, como referiria Wittgenstein a propósito da crítica a Descartes.



“Possivelmente a mais patética de todas as ilusões dos modernos estudiosos das crenças primitivas é a noção que têm sobre o que chamam de antropomorfismo. Acreditam que os antigos atribuíam aos fenómenos um deus com forma humana a fim de os explicar.

Qualquer pessoa descobrirá muito rapidamente que os homens retratavam algo de semi-humano por detrás de todas as coisas por um motivo bastante diferente. Não era porque tal pensamento fosse natural, mas porque era sobrenatural; não para as tornar mais compreensíveis, mas mais incompreensíveis e misteriosas.

Um homem que ande pela rua à noite pode perceber o facto evidente de que, enquanto a natureza seguir o seu curso, ela não tem poder sobre nós. Enquanto uma árvore for uma árvore, é um desengonçado monstro de centenas de braços, milhares de línguas, e somente uma perna. Enquanto uma árvore for uma árvore, não nos amedronta. Começa a ser algo estranho ou alienígena, somente quando se parece connosco. Quando uma árvore se parece com um homem, os nossos joelhos começam a tremer. E quando todo o universo se parece com um homem, prostramo-nos em reverência.”

Os homens primitivos faziam personificações antropomórficas dos factos da natureza, não porque quisessem explicar a natureza usando regras da física, mas precisamente pelo contrário, para sublinhar que sobreposto aos dados da observação existia um lado de mistério.

Chesterton e Wittgenstein também defendem que no mundo existe um lado mágico, que nele existe um sentido e que esse sentido aponta para alguém. Que a ética, a beleza, a filosofia e a religião estão para além do campo da ciência (do mundo, nas palavras do Wittgenstein do Tractatus) e que, por conseguinte, usando o raciocínio da ciência, sobre elas nada poderemos dizer. A existência da ética, contudo, é a prova de que existe uma bondade subjacente à existência.

Ambos retiram esta conclusão, não num sentido “Tomasino” de “prova”, mas mais num sentido “agostiniano” ou “platónico” de “imagem”, de testemunho:

“…E o que é Deus? Perguntei à Terra e ela disse: «Eu não sou»…Perguntei aos ventos e todos os ares e os que nele habitam responderam: «Anaximenes estava errado. Eu não sou Deus»…E perguntei a todas as coisas que se encontram no limiar da porta dos meus sentidos: «Falem-me de Deus, vós que não sois ele. Contai-me algo dele». E eles gritaram em coro: «Ele fez-nos!». A minha questão residia na sua contemplação e a sua resposta estava na sua beleza.”7



Chesterton distingue factos de associações ou relações mentais, i.e., matérias de facto versus relações entre ideias. Para Chesterton, a “necessidade” (ou obrigatoriedade) não se aplica aos factos mas sim às relações mentais ou conceptuais. Nas palavras de Wittgenstein, “devemos distinguir as relações entre ideias das matérias de facto.” Como exemplo da relações entre ideias, «dois mais dois igual a quatro»; exemplos de factos, «aquela macieira tem 4 maçãs ou aquela cerejeira tem cerejas». Note-se que dois mais dois tem que ser obrigatoriamente igual a quatro, ontem, hoje e amanhã, enquanto que uma macieira pode não ter nenhuma maçã ou ter mais do que quatro e que, nas palavras de Chesterton, uma cerejeira poderia muito facilmente não dar cerejas mas dar outra coisa qualquer:

“Não se imagina que dois mais um não dêem três, mas pode imaginar-se que as árvores não dêem fruto. Que dêem, por exemplo, candelabros. (…) O mundo moderno encontra-se cheio daquilo que denominaria como fatalismo científico: tudo é como é e nunca poderia ter sido de outra maneira. As folhas das árvores são verdes porque não poderia ser de outra maneira. Ora, o filósofo dos contos de fadas fica feliz por as folhas serem verdes, precisamente porque elas poderiam ter sido escarlates.”8



É precisamente a mesma ideia que Wittgenstein expressa no Tractatus: “toda a necessidade é uma necessidade lógica.”

“A concepção moderna do mundo assenta na ilusão de que as leis da natureza são a explicação dos fenómenos naturais. A causalidade não se aplica a toda a Natureza, mas apenas é a forma na qual se exprimem as leis da ciência. Desse modo, na Antiguidade o pensamento era mais claro, porque impunha um limite; nós, os modernos, é que acreditamos que tudo tem explicação. 

A crença no nexo causal é superstição."9

O lado perverso de ver tudo como nexo causal é que ele nos leva a afirmar: «Claro que tinha que ser desse modo». Mas, na verdade, deveríamos pensar que poderia ter acontecido desse modo tal como de muitos modos diferentes.

O homem tem que se despertar para o maravilhamento. A ciência é um modo de o pôr de novo a dormir.”4

Ao representar factos ligados entre si apenas por regras, como o princípio da causalidade, a ciência diz-nos «como o mundo é», algo que nos ajuda a responder a muitas questões. Mas nós sentimos que mesmo quando todas as questões científicas forem respondidas, os problemas da vida continuarão por responder, nomeadamente as questões éticas relacionadas com «o modo correto de viver» e «o sentido da vida».9

Estes persistirão para além da ciência e da tecnologia. A busca pelo místico ocorre devido à não resolução dos nossos desejos/objectivos apenas pela ciência.10 Contrariamente à «maravilha científica», a «maravilha mística» relaciona-se, não «como as coisas estão no mundo», mas «que ele existe».9 É por ver os factos do mundo contra o pano de fundo do «milagre da existência», que o sentido da vida se torna claro.

Ao sentido do mundo, i.e., ao sentido da vida, podemos chamar Deus. Ligado a isto encontra-se a comparação de Deus a um pai. (…) A consciência é a voz de Deus.” 11

Para Chesterton, tentar definir a atitude última perante a vida é tentar exprimir o intangível; para Wittgenstein, “o sentido da vida pertence a coisas que estão para além das palavras.” 9

Wittgenstein afirma que quando falamos de Deus usamos analogias que o antropomorfizam. Contudo, essas analogias não se apoiam em factos:

“O que pretendemos ao usar essas analogias é ir além do mundo.12 (…) O mundo é a totalidade de factos…Acreditar em Deus significa reconhecer que os factos do mundo não são o fim da questão.”8

Essa lealdade para com a vida faz com que ambos descartem o suicídio como uma solução de qualquer tipo perante o fardo das circunstâncias, em oposição às ideias de Hume expressas no ensaio “Of Suicide”. 13

“Se existe algo que se deva proibir é o suicídio. Isto ilumina a natureza da ética, porque, por assim dizer, o suicídio é o pecado elementar. (…) Se o suicídio é permitido, então tudo é permitido.”11

Chesterton condenaria o suicídio como a «quebra do patriotismo cósmico» ou como uma «falta de lealdade para com a vida».8

E aqui reside a crítica de ambos à corrente ética mais comum na modernidade: o utilitarismo e o consequencialismo. A ideia de ver a ética como um balanço matemático entre o maior prazer e a menor dor ou como a apreciação do resultado final a alcançar, independentemente dos meios que se utilizam para tal.

 O mundo, a vida com todas as suas circunstâncias, seria algo por que se deveria dar graça e do qual não se deveria desistir, fossem quais fossem as circunstâncias:



“O universo é uma jóia única, sem par nem preço, porque não temos outro.” 8

“Ver o mundo como uma sub specie aeterni é vê-lo como um todo – um todo limitado.

Sentir o mundo como um todo limitado – é isto que é místico.” 9, 14



Na verdade, há muitas questões que não possuem uma resposta científica, apenas por não serem questões de natureza científica. São questões relacionadas com a tentativa de nos conhecermos melhor: o amor, a arte, a história, a música, a cultura,…Grande parte das tentativas “científicas” para definir a “consciência” ou o “eu” acabam por originar uma nova metafísica, à semelhança do que já tinha ocorrido com Descartes.

Creio que a resposta de Wittgenstein a este tópico foi o seu maior e mais negligenciado contributo.














António Campos











1 James C. Klagge. Wittgenstein in Exile, MIT Press, 2010.

2 Wittgenstein. Culture and Value, cadernos de notas de Wittgenstein publicado por G. H. von Wright em 1977, Ludwig Wittgenstein, "Ethics, Life and Faith," The Wittgenstein Reader, ed. Anthony Kenny (Oxford, Blackwell Press 1994).

3 Ray Monk. Scientism, Prospect Magazine 1999 (autor da biografia de Wittgenstein, The Duty of Genious).

4 Wittgenstein, Ludwig. Cultura e Valor; editado por George Henrik von Wright; - Lisboa: Edições 70, 1980.

5 Heaton J, Groves J. Wittgenstein for Beginners, Penguin Books, London 1994.

6 Hereges, cap. XI, A Ciência e os Selvagens, 1905. Em português por Ecclesiae (CEDET), Campinas SP, Brasil, 2011.

7 Santo Agostinho. Confissões. Livro X, cap. VI, Rex Warner, New York, 1963.

8 Chesterton. Ortodoxia, cap. IV, A Ética dos Contos de Fadas.


10 Wittgenstein L. Notebooks 1914-16, New York 1951, p. 51.

11 op.cit., p. 73-75.

12 Wittgenstein L., A letter of Ethics, Philosophic Review, 1965.

13 Brenner W. Chesterton, Wittgenstein, and the Foundations of Ethics. Philosophic Investigations, 14:4, 1991.

14 Wittgenstein L. Notebooks 1914-16, New York 1951, p. 83.