domingo, 23 de novembro de 2014

HEGEL Para Principiantes – Crítica Dialética, parte II



A nossa época é em grande medida kantiana, hegeliana e marxista, no sentido em que 
predomina o cepticismo, a suspeita ou hostilidade para com o homem comum, o egocentrismo, a construção de sistemas para encaixe da realidade e finalmente a negação da possibilidade de alcançar a verdade. O que caracteriza os filósofos da moda é o materialismo e o anti-cristianismo. No entanto, o cristianismo aparece sempre em pano de fundo; estas filosofias parecem sempre construídas em relação a e em negação. Mas o facto de a discussão entre ateus e crentes continuar, tantos anos após o iluminismo, parece provar que acreditar em milagres não é próprio de uma mente menor (como afirmava Arnold Bennett) e que nenhum homem suporta morrer fora da verdade. Se tudo acaba na morte para quê discutir se existe vida para além da morte? Nenhum homem suporta morrer no erro. A ânsia pela verdade está profundamente inscrita em toda a alma humana. A verdade tem uma natureza tal, que quando um homem não segue apenas guiado pela vaidade da sua mente e do seu ego, desligado da experiência do viver quotidiano, em comunhão com os outros homens, ela acaba por se tornar evidente ao seu espírito.  Terminamos a crítica à dialética de Hegel, incidindo sobre a natureza da realidade.


Realidade Multiforme em viagem: determinismo, probabilidade, mistério4


– Determinismo e Probabilidade

O universo matemático independe do tempo. Os teoremas de Euclides e de Pitágoras já existiam antes destes matemáticos os terem formulado porque eles são reais, encontram-se por todo o lado no universo. E continuarão a existir depois de nós. Todo o universo se desenrola sobre o tapete da matemática. A ordem matemática racional precedeu o Big Bang. A origem do Universo não é de natureza física, é matemática. A matemática está fora do tempo5.

No universo físico a correspondência não é tão exacta como na matemática, na medida em que as substâncias sofrem transformação. No entanto, nunca alguma coisa surge do nada, tudo se conserva e transforma. O universo físico sofre a influência do tempo, mas mantém um elevado grau de determinismo. À medida que nos aproximamos da sua natureza mais fundamental, como a ultra-estrutura e a natureza da radiação, a obtenção de graus de certeza têm apenas natureza probabilística, como o demonstram a teoria quântica e a teoria da relatividade.

No universo biológico o grau de incerteza é muito superior. Não só os descendentes herdam apenas um dos pares do ADN dos progenitores, como podem existir fenómenos de crossing-over, de inactivação génica, ou toda a variabilidade que a epigenética pode conferir.




No universo psicológico, acentua-se a incerteza e o subjectivismo, o que expõe a sua interpretação ao espírito da época. Primeiro acreditava-se que tudo era aprendido por educação: Rousseau e Bernard Shaw. Basta ver qual o assunto de fundo da obra de Shaw, Pigmalion ou My Fair Lady ou de O Emílio de J.J. Rousseau. Depois passou a acreditar-se que eram os traumas da infância que determinavam o comportamento adulto ou um misterioso id incognoscível, irracional, aético, submerso no interior do ser, a que se opôs o behaviorismo ou comportamentalismo. Seguiu-se que tudo era genético. Agora pensa-se que existe um componente genético e um componente ambiental. Enfim, neste universo o grau de incerteza aumentou. 
Dizia Bernard Shaw sobre o seu pessimismo: “Eu não tenho culpa, caro leitor, que o meu estilo seja a expressão de uma certa perversidade moral e intelectual, mais do que um sentido de beleza. Passei a maior parte da minha vida em cidades modernas, onde o meu sentido de beleza definhou e o meu intelecto se afundou em problemas como o das favelas.” G B Shaw, The Bodley Head Bernard Shaw. Chesterton poderia dizer algo semelhante e somar umas quantas desgraças pessoais e familiares; porém não optou pelo mesmo tom.

O universo moral é ainda mais complexo: porque perdoamos, porque protegemos os fracos, porque tratamos dos doentes e dos velhos, porque temos sentido de culpa, porque temos um ordenamento moral e jurídico? Porque nos causa angústia a errónea avaliação dos fracos e dos feios?



No universo religioso o grau de previsibilidade é ainda menor. Na altura em que o homem somava deuses e mitos, deu-se a inversão monoteísta e a alegoria. Na altura em que se fazia a apologia dos fortes e do auto-fortalecimento, deu-se a religião do “outro” e dos fracos. Na altura dos demónios implacáveis, veio o Deus que chora, que vacila e que reza.

À medida que o nosso universo versa sobre uma realidade mais complexa, o seu determinismo diminui e o grau de previsibilidade também. Como dizia Heisenberg, o universo foi concebido de tal forma a que o improvável seja concebível. A armadilha para os lógicos é que embora o universo pareça inteiramente lógico por se desenrolar sobre o pano de fundo da matemática, foi nele introduzido um pequeno grau de imperfeição, de incompletude, de variabilidade, que o tornam sempre maravilhosamente novo e inesperado, sem deixar ser familiar.




Uma Realidade apreensível mas não na sua totalidade


Por a realidade não ser disponível em sua totalidade, tal não significa que não seja apreensível pelo ser humano. Por uma realidade ser multiforme, sendo apenas apreensível por uma miríade de olhos, tal não significa que dois olhos não apreendam uma das múltiplas faces constitutivas da realidade poliédrica. Ninguém pode dominar simultaneamente a matemática, a medicina, a arquitectura, a física, a música, etc. Tal não significa que não conheçamos aquilo que conhecemos. Por nem da natureza humana sermos senhores, isso não faz de nós menos humanos.

Por eu ser analfabeto musical não significa que eu não guardo capacidade de avaliação de uma peça musical ou de uma melodia. Por eu ignorar conceitos matemáticos como o de números imaginários não significa que eu não sou confiável no uso da aritmética. Por eu ser um zero em pintura não significa que não posso apreciar um quadro. Será que Mozart não era músico por não conhecer a música rock? Ou será que Münch não era pintor por não pintar como Delacroix?




A realidade incomunicável também é conhecimento


Hegel afirmava que o que é incomunicável não é conhecimento, é o mero acreditado. Mas sem ir para o campo da metafísica, não é difícil de provar que existe algo na realidade de incomunicável e intangível que é conhecimento. Por exemplo quando tentamos traduzir uma língua estrangeira, existe algo do saber comum de um outro povo que não conseguimos colocar por completo na nossa tradução, mesmo que compreendamos do que se trata, pela falta de equivalentes precisos. Há algo nos conselhos que nos dão que não os torna completamente credíveis, porque eles não passaram pelo fogo da nossa própria experiência. Há algo naquilo que os nossos pais fizeram por nós que, por mais que o tenhamos admirado, nunca valorizamos completamente; é, por sua vez, quando, nos tornamos pais que compreendemos melhor a acção dos nossos próprios pais, as suas angústias, ânsias e alegrias. É quando tentamos descrever fisicamente uma pessoa que compreendemos que falta algo na linguagem que só a arte pode melhor expressar. Hegel foi traído pelo seu anti-empirismo radical. A realidade é apreensível mas tem uma dimensão intangível.


A posse esgota o desejo; é a liberdade que o mantém


Hegel dizia que o desejo se esgotava com a posse do objecto e que a posse era essencial ao homem no processo de identificação. Todos temos a experiência do brinquedo abandonado ao fim de uns dias de uso quando éramos crianças; ou, em adultos, do automóvel que perdeu aquele brilho que possuía quando chegou à garagem pela primeira vez. No entanto, se amamos uma pessoa, ela nunca é o objecto que se possui, o desejo nunca se esfuma; é na sua liberdade que se funda o nosso desejo. Como não conseguimos englobar toda a realidade cognoscível – matemática, ciência, arte, etc. – o nosso desejo de conhecer não se esgota. Também a desproporção que existe entre o intelecto criado e o Criador não cessa o desejo: “Tal como a corça suspira pelas torrentes de água, assim eu anseio por Vós, ó meu Deus.”





O que é real é a particularidade


Os testes de ADN, as impressões digitais, o número de poros/cm2, a leitura da íris, todos nos indicam uma realidade e unicidade no que é individual. Até por características tão triviais como o som que se faz ao caminhar, se pode reconhecer uma pessoa próxima. E o que dizer da especificidade do olfacto dos cães que seguem um rasto de uma pessoa específica às vezes com sete dias de intervalo? É exactamente ao ”tudo” que falta consistência e concordância. É mais fácil descrever as características objectivas de uma pessoa determinada do que as características do povo a que pertence, sobre o qual haverá sempre opiniões contraditórias. O próprio Deus indicou essa realidade ao comunicar sempre por meio de indivíduos concretos.


O Tempo como desenvolvimento de uma realidade incompleta


O tempo determina todo o pensamento da lógica hegeliana. No sentido em que o processo em si é a realidade enquanto que as coisas são apenas estados, meras ilusões. Mas devido à incompletude da vida, à sua natureza particular e única em cada coisa, parece que o tempo é apenas uma etapa para a necessária interacção entre as pessoas, os seres e as coisas, e para a sua completude. Como se a presença de realidades concretas tão dissemelhantes servissem para limar arestas e fazer realçar vícios e virtudes. As coisas serão assim as realidades e o tempo um processo, em que elas se revelam e se transformam, como acontecimentos numa fita de cinema.





O Progresso como Retorno


Os ciclos que são presentes em toda a biologia são meios para se chegar a qualquer lado. O ciclo de Krebs, o ciclo da ureia, o ciclo da água, são como as rotundas do trânsito, soluções práticas para escoar coisas. Aceitarei imediatamente que o ciclo é a finalidade em si mesmo quando alguém me disser que o objectivo de uma rotunda é circular continuamente à volta dela, em vez de escoar o trânsito com uma determinada ordem e finalidade. Aceitarei que a viagem é mais importante do que a chegada a um determinado local, quando alguém me disser que o melhor de uma viagem a Londres é a estadia no avião.

Se a dialética se fecha apenas em tese-antítese-síntese, é possível como princípio de acção política, ao desejar uma determinada síntese, agir de forma inversa e preparar as respectivas tese e antítese. Este mecanicismo ou esquematismo é encerrado em si mesmo, e ignora o quanto a acção histórica e a própria vida decorre a partir de acontecimentos e personagens inteiramente inesperados e imprevisíveis.

Se o progresso é uma finalidade, então nunca existe ponto de partida nem ponto de chegada, existe sempre o processo e não as coisas, existe apenas fluxo. Como diz Chesterton, não existindo objecto sobre o qual pensar, não existe pensamento (porque não existe alteridade). A lógica de Hegel inicia-se com um ataque à fé e termina com um ataque à razão. Desse ponto de vista é a estrada da crença moderna, da moderna filosofia. C’ést la folie!


Mas…”Eu renovo todas as coisas.”6!



António Campos


Notas 4 e 5 retiradas de Olavo de Carvalho


4 Não existe uma correspondência exacta entre o edifício matemático e a ordem da natureza. Existe um elo, mas não tão firme quanto o da fundamentação lógica, porque na relação causa-efeito foi introduzida a dimensão do espaço e do tempo. É uma correspondência real, mas aproximada (hiato). Não existe a mesma nitidez nem inexorabilidade, não existe uma correspondência perfeita. A realidade matemática não depende do universo físico, mas o universo físico obedece, com esse hiato, à ordem lógico-matemática. Ela é algo, ela não é um nada. Aristóteles tinha razão.

5 Conceito - diferença entre os conceitos matemáticos e os de qualquer outra coisa. Um conceito matemático é sempre fechado em si mesmo e imutável (imutabilidade do objecto: 2, 3, etc.). O significado esgota-se completamente no conceito – é a estabilidade dos entes matemáticos de Platão. Este facto nem é dado pela ordem externa nem é invenção da mente humana. Formas independentes da realidade física existente mas que não são inexistentes. Não são inventadas porque são acessíveis a qualquer homem, são universais. Estas entidades ideais estruturam-se coerentemente no edifício da aritmética. Existe relação lógica entre a premissa (o fundamento) e a conclusão (o fundamentado) numa dedução matemática. A aritmética é inteiramente dedutível.


6 Ap., 21, 5-6.


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