sábado, 22 de novembro de 2014

HEGEL Para Principiantes – Crítica Dialética, parte I




A dialética hegeliana como sistema, pode ser criticada quanto ao conteúdo e quanto à forma.
Quanto ao conteúdo, estamos perante uma ontologia que assume que a única realidade é a mudança, não a verdade, que as coisas são meras ilusões porque se estão sempre a modificar, que a potencialidade é mais autêntica do que a realidade (porque esta está sempre em mudança), que o homem concreto, tal como as coisas concretas são meras ilusões ou abstrações, que o espírito não tem uma diferente natureza da matéria, nem a matéria tem autonomia face à mente, nem a mente é diferente na sua natureza do espírito.

Quanto à forma, a dialética assenta num raciocínio que aparentemente avança em triangulações sucessivas de contraditórios que não descarta, mas cujo avanço e forma são apenas aparentes, uma vez que o avanço consiste num retorno ou reconhecimento, nunca numa renovação, e a forma consiste num círculo.


O Erro de Pilatos

Talvez uma das mais importantes demonstrações da necessidade da dialética no sentido socrático, i.e., o apuramento ou clarificação conceptual, esteja inscrito numa histórica interpelação:

 Quid est Veritas (O que é a verdade)?”, a questão contraditória em si mesma. A verdade, verĭtāte, por definição, significa a realidade, a conformidade das coisas com aquilo que a mente pensa delas, o conhecimento certo e inquestionável. Conformidade entre o pensamento (ou a sua expressão) e o objecto do pensamento. Pressupõe que a realidade existe, que a existência é o tiro de saída do universo. Que a vida existe, que não é mera ilusão. Se admitirmos que não existe possibilidade de encontrar a verdade nas coisas, se a realidade for imperceptível ou incomunicável, não existe diálogo, porque as palavras nada significam. A pergunta de Pilatos esconde uma afirmação e uma crença, tão actual no seu tempo cosmopolita e civilizado como no nosso: “A verdade não existe. Esta é a verdade!” Contraditório…voltamos a Hegel1.

Deve dizer-se que Hegel nunca pretendeu conduzir alguém à clareza conceptual, justamente porque ele próprio via virtudes na obscuridade. Além disso jamais se poderá considerar que pela junção de opostos, por exemplo a verdade e a falsidade, se possa clarificar seja o que for. Colocar sujo no limpo jamais poderá originar brancura. A lei da não contradição é um princípio basilar do pensamento racional2. Não se pode dizer que Hegel fosse irracional, portanto o que se pode concluir é que Hegel ao falar de lógica está na verdade a falar de ontologia, i.e., do desenvolvimento natural e cultural que faz as coisas serem o que são… até o pensamento filosófico. Todavia, parece encontrar-se na filosofia de Hegel muito daquilo a que hoje se chama “wishful thinking”.

O erro assume duas versões básicas:

– O conhecimento da verdade, mas a comunicação de algo não conforme com ela, a mentira. É a ocultação. Os sofistas actuais esconderam a mentira debaixo de um neologismo: “inverdade”. Estas coisas acontecem quando se é ignorante ou presunçoso e não se tem vergonha na cara.

– O conhecimento de algo que não é conforme à realidade das coisas, que é questionável, mas que o indivíduo crê firmemente ou deseja fervorosamente tratar-se da realidade e comunica-o como tal. É um engano nos sentidos ou na mente (no processo de pensamento) que conduz a erro de percepção da realidade. É a ilusão.

 – Se, como afirmava Hegel, a verdade e a mentira são momentos e não afirmações de certeza, como acreditar que as afirmações de Hegel são a verdade? Trata-se de uma impossibilidade, do mero acreditado, como dizia o próprio Hegel, de um não conhecimento. À “luz” de Hegel, é igualmente válido afirmar que Hegel foi um grande filósofo, como afirmar que foi um psicopata, um charlatão, um mentiroso, um dogmático, ou que nem sequer existiu. A menos que concluamos que para Hegel, como princípio de delimitação da acção, não exista uma moral prévia, mas um modo de se fazer aquilo que se quer fazer (os meus objectivos ditam a minha moral). Hegel nunca se livrará do rótulo totalitário; a sua árvore produziu o fruto dogmático, socialista e nacional-socialista.


Uma matéria instrumental


Resulta bastante evidente que a dialética como sistema hegeliano já estava presente na Fenomenologia, escrita 6 anos antes do primeiro dos três livros da Dialética. Também é evidente a sua estrutura gnóstica ou cabalística: raciocínio triádico circular ou helicoidal, exposto em três livros, cada um com três secções, cada secção com três capítulos. Mas o mais importante aspecto é que o sistema de Hegel resulta na compartimentação do infinito como finito, do espírito como matéria, pois nada há de abstracto que não seja concreto. Hegel nega a natureza distinta entre o espírito e a matéria, vendo esta apenas como “materialização” do espírito, sem existência autónoma. Ao confundir propositadamente mente com espírito, usando-os indistintamente, Hegel apaga a própria possibilidade de caracterizar as premissas. A existência individual de cada homem é uma mera ilusão ou uma abstracção. A ideia de Shelling (e de Kant) da impossibilidade de definir precisamente o infinito, foi denominada por Hegel como “a noite escura de Schelling onde todas as vacas são negras”, o que motivaria a ruptura entre os dois homens.


Matéria finita vs Espírito infinito

Nós sabemos que a matéria é finita. A massa total do universo é da ordem de 2x1052 a 1054 Kg. Equivalê-la ao espírito é sem dúvida um materialismo. Não é portanto de surpreender a remoção do conteúdo lectivo de Hegel da Universidade de Berlim logo após a sua morte, sob a acusação de panlogicismo, i.e., ateísmo. Nem é de surpreender que ainda hoje os seus seguidores oscilem entre uma metafísica panteísta e um materialismo pós-kantiano ateu tout court. Aliás, o próprio Hegel parece ter evoluído de uma concepção mais panteísta na fase mais precoce da sua vida, i.e., a Fenomenologia, para uma concepção mais ateísta, i.e., a Dialética e a Filosofia do Direito. A sua última vontade, ser sepultado ao lado de Fichte, expulso da Universidade de Berlim por ateísmo, é simbólica.


A Natureza do Pensamento Racional

– Junção de Contraditórios: Ao constituir a síntese e afirmar a dupla negação como a junção de contraditórios, Hegel nunca conseguiu o respeito dos matemáticos. Em lógica uma dupla negação equivale à afirmação inicial (não é falso = verdadeiro). Ao negar a antítese, Hegel deveria regressar à tese inicial e analisar o erro cometido. Em lógica existe um princípio que se chama o princípio do terceiro excluído: Uma afirmação ou é falsa ou verdadeira, nunca pode ser simultaneamente verdadeira e falsa tal como também não pode ser nem falsa nem verdadeira. De outro modo, todo e qualquer código de linguagem deixa de expressar a realidade e passa a conduzir ao absurdo. Se a verdade e a falsidade se podem reunir numa síntese, como se pode saber onde está o conhecimento ou a mera opinião? O princípio da não contradição é o núcleo basilar do pensamento racional.

Foi Kant, quem ao tratar das suas antinomias, afirmou que a uma tese que não resultasse de conhecimento sintético a priori, i.e., científico, se poderia opor sempre uma antítese (no conhecimento religioso a um acredito pode sempre opor-se um não acredito). No entanto, embora admitisse poder um dia encontrar-se uma síntese para esta antinomia, jamais foi ao ponto de dizer que a síntese incluiria contraditórios mutuamente exclusivos.


A Dialética como instrumento para o apuramento conceptual


– No processo de conhecimento científico, ou de indução, a contradição não pode ser permitida, porque derruba o edifício construído e deve conduzir à sua reformulação – o achado de um único cisne negro derruba a máxima de que todos os cisnes são brancos. Se não eliminarmos as contradições, o progresso detém-se, não progride. Esse parece ter sido o objectivo de Hegel. Ao afirmar que as contradições não só são inevitáveis, como permitidas e altamente desejáveis, Hegel pretendeu acabar com a ciência e com a contra-argumentação racional. Ao tornar a crítica impossível ele ergue a sua filosofia ao nível do dogmatismo.


No Princípio Era o Verbo3

Um monte de tijolos, cimento, madeira e tinta não é uma casa. O que faz as casas diferentes não é o total de tijolos, telhas, madeira e tintas de cada uma. A explosão original não foi a origem real do universo. O universo obedeceu ab initio às leis da física e da matemática. Essa ordem racional precedeu-o, da mesma forma que a concepção do arquitecto precede a casa.


Opostos e Complementares

– Contrários e complementares: o interno e o externo não são contrários, são complementares. Os complementares não se anulam, ambos constituem uma realidade. O meu casaco para ser casaco tem necessariamente que ter um interno e um externo que em nada se antagonizam. O mesmo posso dizer do meu próprio corpo ou de um homem e de uma mulher.

– O ser e o não-ser: nesta primeira premissa da dialética esconde-se um dos maiores colapsos da filosofia de Hegel. Em primeiro lugar, tudo o que existe é. Pode transformar-se, mas nunca se perde. De Lavoisier recebemos a máxima da química moderna: na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Entre os seres vivos, inclusive, esta qualidade de estar vivo só se adquire por transmissão, não vem do nada, o que é absurdo.

A morte como não ser: Na morte, aquilo que era ainda é, apenas se transformou. Desse ponto de vista morrer é complementar e não o contrário de nascer. O contrário de nascer será não-nascer, o aborto, a interrupção do ciclo. Mas até o aborto é. Quer Parménides na filosofia quer Lavoisier na ciência, expressaram que para algo se tornar, ou seja, se transformar, teria que provir de uma substância prévia, nunca do nada!

– O Tudo e o nada: O que é tudo? Como sabemos os filósofos estão longe de concordar quanto à plena caracterização da realidade. Será “tudo” apenas a quantidade física de matéria e energia contida no Big Bang? O nada existe do mesmo modo na lógica e no mundo concreto? O nada matemático existe, sabemo-lo: 0, { }. Mas o nada físico existe? Existe algo que nada contenha? No vazio espacial não se aplicam as dimensões do espaço, não decorre o tempo, não é atravessado por radiação cósmica? O nada físico não existe!

Os opostos perfeitos não existem no universo físico, apenas no matemático e no lógico. Precisamente naquele que está fora do tempo, do devir. Portanto não existe nenhuma dialética de opostos no mundo real; fora da lógica abstracta não existe dualismo perfeito, apenas aproximado.

Demos alguns exemplos: é perfeitamente consensual que +3 é o oposto ou simétrico de -3 e que verdade é o oposto de mentira, como falso o é de verdadeiro.

Mas no mundo da realidade física não é assim. Por exemplo, o cloro reage com o sódio para originar cloreto de sódio. No ADN, citosina e guanina interagem ligando-se entre si tal como a adenina com a timina. Mas sódio e cloro, citosina e guanina, adenina e timina, não são contrários mas complementares. O que caracteriza complementares é que da sua interacção surge algo de novo, tal como de um homem e de uma mulher se renova o mundo.

A água parece o oposto do fogo. No entanto, algo da sua natureza é idêntico. A água contém energia em si mesma e originou-se dessa primeira energia original do Big Bang.

O feio parece o contrário do belo, mas inúmeras vezes a aparência do belo esconde o feio. Podemos pensar nos oficiais SS, com os seus graus de PhD e os seus olhos azuis, em comparação com os desdentados e esqueléticos judeus. Essa penumbra é ela mesma instrumento de sedução e fonte de equívoco.


A Chave do Universo: Da Oscilação entre Opostos ao Equilíbrio Paradoxal

O segredo do universo não é tanto uma oscilação entre opostos mas o equilíbrio paradoxal. Muitas vezes existe uma terceira via que ela sim é antagónica com as duas apresentadas, ex: capitalismo e socialismo versus doutrina social da Igreja ou distributismo. A dialética hegeliana não é tanto uma dialética mas mais uma interacção. Mas nem sempre uma síntese é possível e outras vezes mais do que uma síntese diferente é obtida; por exemplo, os filhos e as respectivas diferenças. O contrário de nada não é apenas tudo; alguma coisa também é contrário de nada.

Os bonitos por vezes são feios e os feios bonitos. Pôncio Pilatos deveria estar mais belo do que Jesus Cristo no tribunal romano. Os jovens revolucionários que queriam demolir a Notre Dame mais bonitos do que o Corcunda, cuja história serviu para a salvar. Este paradoxo do belo e do feio, do bom e do mau, encontra-se na literatura na descrição do grotesco, como variabilidade natural, em oposição à perversidade, a deformação. O ditado português afirma: “Quem feio ama bonito lhe parece.” Chesterton dizia: “A menos que amemos o feio em toda a sua fealdade, nunca o transformaremos em bonito.”






António Campos


Notas:


(Nota 3 de Olavo de Carvalho).


1 A pergunta certa seria onde ou qual a origem da verdade. A verdade é a realidade sobre qualquer coisa. A realidade das coisas remete à origem última da realidade. Essa origem última da realidade não é o universo, nem um local. A origem última da realidade é um intelecto, uma pessoa que lhe deu origem. Desse modo a natureza da realidade expressa de algum modo a natureza dessa pessoa: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Ao desancorarmos da realidade última ou original, desancoramos da realidade próxima ou concreta, o objecto do conhecimento, e da sua expressão clara, na arte e na linguagem. Chesterton expressou bem esta ideia: “Sabíamos que ao colocar a fé em questão acabaríamos por deitar a razão abaixo do seu trono. Ambas são processos demonstrativos que não podem ser demonstrados.”
2 Na Cruz Azul diz Flambeau: Estes infiéis modernos apelam à razão, mas quem pode olhar para essa miríade de mundos e não imaginar que podem existir universos maravilhosos acima de nós onde a razão seja completamente irracional?”
Após a sua captura, o Padre Brown explica: “ Ele atacou a razão…E isso é má teologia.”


3 A origem do cosmos e a da realidade são completamente diferentes. Antes da construção do cosmos a realidade já estava determinada racionalmente, a lógico-matemática, independe do tempo e é eterna – é a estrutura da eternidade. Antes do início do universo já 2+2=4. O universo físico não é a origem das coisas. Nada existe no cosmos que não esteja incluído na estrutura da possibilidade que é organizada internamente pela lógica-matemática; não aleatória mas racionalmente – o universo é uma realização racional, compreensível e dedutível. A ciência é uma mera perseguição ao que já foi realizado – a ciência segue as pegadas de um universo que já está todo lá. Existe uma estrutura racional que contém todas as possibilidades que se manifestaram no tempo e não é determinada por elas – tudo está contido na estrutura da possibilidade. O desenvolvimento estocástico é absurdo. A razão pré-existe à realidade física, o logos pré-existe ao universo, no princípio era o verbo.
Qual a origem da estrutura da realidade? Não da realidade manifesta que depende da anterior, mas da realidade, porque a lógica matemática precede a realidade física. A razão precede o universo. A sucessão temporal não possui a inexorabilidade da lógica matemática. A natureza física está dentro da lógica matemática mas não a reproduz inteiramente. As discussões sobre a origem do cosmos actuais nunca levam em conta o facto de que a ordem lógica matemática precede a origem física. O cepticismo actual é um materialismo pueril.


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