domingo, 8 de maio de 2016

A Cidade Vermelha





A escola do pensamento moderno é sem dúvida norteada pela moda e pela fugacidade. É
a marca dos próprios meios de comunicação onde nasce para o público, se expressa e se torna lucrativa. A transitoriedade é a sua natureza. Os ensaístas do nosso dia preocupam-se muito com a forma, mas pouco com a substância; muito com a moda, mas pouco com a consistência.


Vem isto a propósito de um ensaio que li de Chesterton. A forma como expressa o seu saber, faz-se no sentido etimológico do termo, sapere, i.e., saborear, sentir o gosto e o cheiro. Saber é assim uma forma de comer e de partilhar, de ter alegria pela posse e pela partilha. É um conceito tomista, mas para dizer a verdade, ainda mais alargado, uma vez que é a marca do verdadeiro idealismo, da verdadeira religião: “Todas as grandes escrituras se encontram plenas do convite, não para testar, mas para saborear; não para analisar, mas para comer.”


Por exemplo, a forma como GK desmonta a doutrina socialista construída a partir de uma teologia formal, pós-reforma e pós-liberal, encontra-se expresso num dos seus mais famosos trocadilhos ou paradoxos: “Deus não existe e Marx é o seu profeta.” Ou seja, o socialismo é uma teologia formal.


No entanto, a finalidade deste texto é enfatizar a mestria colocada em The Red Town. Neste ensaio encontra-se expressa, numa linguagem pictórica, uma ideia recorrente em Chesterton: a escola do mundo moderno não se fundamenta num todo significante, mas numa única ideia da moda que segue sozinha fazendo escola, desequilibrada e louca, como se o seu autor, na pressa, desatasse a correr e se esquecesse da cabeça. Este decapitado já não necessita mais da sua cabeça, já produziu a sua ideia. Ele sofreu uma decapitação espiritual, ele perdeu todas as outras ideias. Ele não é um Saint Denis; ele é o pedante que se contempla. Ele não pode dar a sua cabeça, caput, por reconhecer estar enxertado num culto ou cultura, por reconhecer que não chefia. Ele na sua pressa, esqueceu-se de tudo o resto; vive a ilusão da chefia. 




É significativo que o símbolo da revolução fosse a guilhotina: a morte da ideia e da identidade. Só a Igreja e não o Estado defende a singularidade: a ideia e a identidade. Uma única crença, mas uma variedade de expressões, conforme as nações, conforme a individualidade. GK: “Um credo fixo é indispensável para possuir liberdade. Enquanto que os homens são e devem ser diferentes, deve haver alguma comunicação entre eles, se querem retirar alguma alegria da sua variedade. Uma fórmula intelectual é a única coisa que pode construir uma comunicação que não dependa de classe, raça, sangue ou capricho social.”

“Vi também as almas daqueles que tinham sido decapitados por terem dado testemunho de Jesus e por terem acreditado na palavra de Deus…voltaram à vida e reinaram com Cristo…” Ap 20, 4.







The Red Town:


«Quando um homem diz que a democracia não resulta porque a maioria das pessoas é estúpida, eu responderia que é estúpido afirmar que “a maioria” é estúpida. Seria como afirmar: “A maioria das pessoas é alta.” Neste sentido, “alta”, significa mais alto do que a maioria. A maioria da humanidade não pode estar acima da média da humanidade.

Foram as pessoas comuns que atribuíram o nome às flores, que variam, não só de país para país, como de baldio para baldio. De facto, não se poderia ilustrar melhor todo o cristianismo do que chamar a uma pequena flor branca, silvestre, insignificante, “estrela de Belém” (ornithogalum narbonense ou leite de galinha). Pelo contrário, o pedante que se contempla a si próprio é pior que o canalha que só quer obter prazer. Ele é bem a imagem de uma iluminura do século IX, em que Satanás distribui penas de pavão pelos seus seguidores, durante a revolta no céu – a imagem do vil orgulho.





Tomemos então o caso do pedante. Ele pretende encher o mundo com a sua ideia, mas atribui à sua ideia a noção de cor. O vermelho é a coisa mais maravilhosa e terrível no universo físico. Ele é a nota mais feroz, a luz mais alta, o lugar em que as paredes deste nosso mundo são mais finas e de onde algo queima. Brilha incandescente no sangue que nos dá vida e no fogo que nos destrói, nas rosas do nosso romance e no cálice da nossa religião. Ele representa toda a felicidade extática como na fé ou no primeiro amor.


O devasso é aquele que quer disseminar este carmesim de alegria genuína sobre todas as coisas; obter excitação contínua; pintar tudo de vermelho. Ele rebenta mil barris de vinho para tornar todas as ruas encarnadas. Às vezes, na sua loucura, ele massacra homens a animais para mergulhar a sua escova gigantesca no seu sangue. Porque o que marca o carácter sagrado do vermelho na natureza, é ele ser secreto mesmo quando é ubíquo; como o sangue no corpo humano, que é omnipresente mas invisível. O sangue que vive encontra-se escondido; é apenas o sangue a morrer ou morto que se vê.





Pintar toda a cidade de vermelho é excelente apenas enquanto não se faz. Seria esplêndido ver uma cruz de São Paulo tão vermelha como a cruz de São Jorge e litros de tinta vermelha a escorrer da cúpula ou a gotejar da coluna de Nelson em Trafalgar. Mas quando o trabalho estiver terminado, quando se tiver pintado toda a cidade de vermelho, acontece algo de extraordinário: nunca mais se vai conseguir ver o vermelho.


Consigo vislumbrar, numa espécie de visão, o artista bem-sucedido de pé, no meio dessa cidade assustadora, pendente por todo o lado com o escarlate da sua vergonha. É então, quando tudo for vermelho, que ele ansiará por ver uma rosa encarnada numa cerca verde e ansiará em vão; sonhará com uma folha escarlate de um ácer e será incapaz de a imaginar sequer. Dessacralizou a cor divina, e deixou de a vislumbrar, embora se encontre por toda a parte. Observo-o, uma figura de negro, solitária, contra esse inferno vermelho e cálido que ele acendeu, onde os pináculos e as torres se erguem como chamas imóveis: ele encontra-se teso numa espécie de agonia orante.


E é então que afrouxa a misericórdia do Céu, e eu vejo um ou dois flocos de neve que lentamente começam a cair...”







G. K Chesterton, tradução António Campos



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