sábado, 23 de dezembro de 2017

Wittgenstein Para Principiantes – Introdução: No Início Era o Verbo




Conhecer um homem implica analisar o seu pensamento e conduta; compreendê-lo
necessita conhecer a sua circunstância. Ludwig Josef Johann Wittgenstein (26 de Abril, 1889 – 29 de Abril, 1951) combina a característica complexidade alemã com a genialidade pura, por vezes na fronteira da sanidade. O mais novo de oito irmãos, nascido de uma das famílias mais ricas de Viena, exibe traços da ascendêndia judaica de seu pai Karl, convertido ao protestantismo, com o catolicismo de sua mãe “Poldy”. Os Carnegie da Áustria viviam num palácio, na actual Argentinergasse. Os fins-de-semana e férias eram repartidos entre a mansão nos arredores de Viena e a magnífica quinta no campo. Viena era uma das capitais culturais do mundo: da psicanálise à moderna arquitectura, do nacional-socialismo ao socialismo e sionismo, tudo passava pela Viena de fin de siècle.1



A casa dos Wittgenstein possuía sete pianos de cauda e era visitada regularmente por Brahms, Mahler e pelo jovem Pablo Casals. Educado em casa, num ambiente formal e distante, com perceptores e professores particulares, o jovem Ludwig exibia um talento prático, o que o colocava na óptica de seus pais como o menos intelectualmente dotado da prole. Concluiu a licenciatura em engenharia mecânica em Berlim e aos 19 anos vai para Manchester fazer uma pós-graduação em matemática, uma vez que se interessava por propulsores. Foi assim que começou a estudar os fundamentos da matemática. Escreveria um livro sobre os fundamentos da lógica e da matemática que mostraria a Gottlob Frege, o filósofo e matemático, que imediatamente o “despacharia” para Bertrand Russell, no Trinity College, Cambridge. Wittgenstein tinha 22 anos e era um “alemão” muito rico; Russell tinha quarenta e era um aristocrata inglês típico, herdeiro de uma família que enriquecera exponencialmente com a guerra do ópio, uma guerra em que as potências ocidentais humilharam a China.2 Acabara de escrever Principia Mathematica, um dos livros mais importantes e intragáveis da filosofia da lógica.3



Esta não é uma história vulgar de sucesso. Três dos quatro irmãos de Wittgenstein cometeriam suicídio. O fio de prata da vida e o fio de ouro da sanidade estiveram sempre em risco de ruptura na vida de Ludwig, mas a bilha de barro não quebrou. Desde a universidade, aos 17 anos, que o jovem Wittgenstein mantinha uma espécie de diário, onde anotava os seus pensamentos. A sua preocupação fundamental, talvez por recear o seu próprio intelecto, era a de manter sempre uma estreita conexão com a vida real: “O meu bloco de notas deve estar sempre pronto a passar a porta para a vida; e não ter que trepar para a luz como se tivesse que subir à cobertura de um celeiro ou descer à terra como se andasse na lua.”



Embora seja mais conhecida a influência de Russell em Wittgenstein, foi G. H. Moore, professor de filosofia no Trinity, quem primeiro notou a excentricidade do aluno austríaco e quem mais tarde o proporia para doutoramento, já após ter escrito o Tratactus Logico-Philosophicus. Russell ficou profundamente persuadido da genialidade de Wittgenstein após o final do primeiro ano em Cambridge: “Ele era, que eu tenha tido conhecimento, o exemplo mais perfeito de um génio como tradicionalmente concebido: apaixonado, profundo, intenso e dominante.” Wittgenstein aparecia na casa de Russell a meio da noite sem avisar, para discutir problemas de lógica ou simplesmente para deambular para trás e para a frente como uma fera enjaulada. No entanto, Russell viria desenvolver uma consideração filial por Wittgenstein, que não seria perturbada pelas críticas ferozes que Wittgenstein terá feito a um ensaio de Russell sobre teoria do conhecimento.



Entre os amigos que fez em Cambridge contam-se David Pinset, com quem manteve uma relação homossexual em 1912, e o economista J. M. Keynes, a quem dedicaria o Tratactus. No entanto, o feitio de Wittgenstein era algo que facilmente se consideraria insuportável. Em 1913, abandona Pinset e decide passar dois anos completamente só, na Noruega, para evitar a influência dos intelectuais de Cambridge. Convidado para ir à Noruega, Moore lembra-lhe a necessidade de obter o grau académico, para o qual não bastaria o seu trabalho Logik, mas também a necessidade de apresentar um prefácio e referências, conforme as regras da universidade. Wittgenstein responderia mais tarde a Moore numa carta crítica e desdenhosa. Não obteve a graduação e os dois homens não voltaram a falar-se até 1929. Embora Moore fosse um catedrático em Cambridge, Wittgenstein considerava-o como um exemplo gritante de como um medíocre pode chegar a um lugar de topo, e não hesitava em o usar como secretário enquanto ditava as suas notas. As características bem alemãs da busca pela pura consciência de si, o eu, o bem verdadeiro, encontravam-se marcadas em Wittgenstein. No Natal de 1913 escreve a Russell: “Como posso ser um lógico sem antes ser um ser humano? Porque a coisa mais importante é estar bem consigo próprio.”4



Em 1914 alistou-se como voluntário no exército austríaco na Primeira Grande Guerra. Encontrava-se persuadido que a proximidade com a morte faria dele um ser humano mais decente e julgava que não tinha o direito de viver se não fizesse um trabalho meritório. Assombrado pela maldição familiar, a ideia da morte permanecia sempre próxima na sua mente. Foi nesta altura que leu o Evangelho de Tolstoi (Uma Curta Exposição do Evangelho) e Os Irmãos Karamasov de Fiódor Doistoievski, do qual sabia várias passagens de cor, sobretudo envolvendo o stárets Zóssima que admirava particularmente. Pediu para ser colocado na frente russa, onde o exército austríaco sofria perdas humanas maciças: “Talvez a proximidade da morte me traga a luz da vida. Que Deus me ilumine. Sou um verme, mas pela mão de Deus torno-me um homem. Que Deus esteja comigo. Ámen.” Mais do que as medalhas por bravura que obteve, considerava o seu maior presente ter compreendido que todo o seu pensamento sobre lógica se relacionava com a absoluta necessidade de viver correctamente: “O meu trabalho ganhou amplitude, desde os fundamentos da lógica à essência do mundo.”

O ano de 1918 seria para ele um autêntico annus horribilis: a morte do seu tio Paul, o suicídio do seu irmão Kurt, a morte de Pinset e a recusa da publicação do Tractatus, cujo nome à altura era Der Satz (proposição ou frase, mas também "salto"). Prisioneiro de guerra, não aceitou a mediação da sua família e de Keynes para obter a sua libertação; recusou-a até que o último dos seus homens fosse libertado. É nesta altura que termina o Tractatus Logico-Philosophicus. Russell consideraria que Wittgenstein regressara da guerra muito mudado, asceta e místico. No final da guerra, Wittgenstein tinha-se tornado num dos homens mais ricos da Áustria ao herdar a fortuna de seu pai, que a colocara na América, em títulos de dívida americana. O pai morrera em 1913, mas teve a inteligência de entender as consequências da guerra que se avizinhava. Ludwig decide abdicar de tudo a favor da família e viver apenas dos seus rendimentos, começando a dar aulas como professor primário, do que desistiria em 1926, num mar de polémica e insucesso.







Todas as editoras recusaram a publicação do Tractatus, incluindo a imprensa da universidade de Cambridge. Em 1922, consegue a publicação com a ajuda de Moore, mas teve que abdicar dos direitos de autor. O livro incluía uma introdução de Russell, como imposição de Moore contra a vontade de Wittgenstein, uma vez que as relações com Russell  tinham gelado. Wittgenstein considerava que a filosofia de Russell era pura mecânica e que ele não tinha entendido o Tractatus no fundamental. Em breve, o livro seria um clássico.
Retorna a Cambridge em 1929. Como não possuía um título académico, trabalha como bolseiro. No final de 1929, obtém o seu doutoramento, num júri que incluía Moore e Russell. Moore, revelando que o juízo que Wittgenstein fizera sobre ele estava errado, escreve como nota de avaliação na tese (o Tractatus): “Do meu ponto de vista, trata-se de um trabalho genial, mas se eu estiver completamente enganado, pelo menos é bem mais do que se requere a uma tese de doutoramento.” Wittgenstein torna-se professor associado em Cambridge.

Em 1931 volta à Noruega com a sua noiva suíça, Marguerite, mas por passar grandes períodos de solidão e abandono, Marguerite parte após duas semanas e decide romper o noivado. De volta a Cambridge conhece Francis Skinner, um promissor estudante de matemática do Trinity, que sob a influência de Ludwig abandonaria os estudos para se tornar um simples mecânico de automóveis. Morreria de poliomielite em 1941. Em 1946, inicia outra relação homossexual com Ben Richards, estudante de medicina bastante mais novo, que manteria até final da sua vida. Desde 1939 que era catedrático em Cambridge, mas como começasse a guerra, considerou indigno dar aulas enquanto existisse uma guerra em curso. Cidadão britânico desde o Anschluss, decide ir trabalhar para o Guy’s hospital em 1941, durante o blitz. Em 1947, demite-se da cátedra, uma vez que queria escrever e considerava irrelevante dar aulas. Em 1949, já muito famoso, dá uma série de aulas nos Estados Unidos, vestido de forma andrajosa.




Não é apenas a sua filosofia da linguagem que fascina o leitor; a sua vida foi um verdadeiro romance, ou um filme, como hoje diríamos. Wittgenstein morreu a 29 de Abril de 1951, três dias após o seu aniversário. Sofria de cancro da próstata já há alguns anos. Em Fevereiro de 1951 desistiu da hormonoterapia e da radioterapia. O seu amigo Dr. Bevan e Mrs. Bevan convidaram-no para viver em sua casa os seus últimos dias. Em Março, a capacidade de escrever e a inspiração voltaram. Escreveria a última metade do livro On Certainty. Cumpriu-se assim a sua vontade expressa a seu amigo Paul Engelmann em 1925: "Gostava de morrer num momento de brilho!" A 28 de Abril o seu estado deteriora-se e Mrs. Bevan avisa os amigos. Wittgenstein é informado que os seus amigos vêm visitá-lo na manhã do dia seguinte. Perde a consciência a 29, antes de os amigos chegarem: Ben Richards, Elizabeth Anscombe, Yorick Smythies, Maurice O'Connor Drury e o dominicano frei Conrad Pepler. Pronuncia em inglês as suas últimas palavras: "Diga-lhes que tive uma vida maravilhosa!"5 Como tinha sido a sua vontade expressa  de que esperava que os seus amigos católicos rezassem por ele, Anscombe, Smythies e Pepler assim fizeram.


A sua obra-prima, Investigações Filosóficas, sairia postumamente em 1953, o Blue Book em 1958, Culture and Value em 1977. Foi sempre uma espécie de católico adversativo (nas suas palavras, “com dificuldade em ajoelhar”), embora fosse um amigo confesso de Elisabeth Anscombe, a professora católica que lhe sucederia na cátedra de filosofia em Cambridge, e tivesse o dominicano Conrad Pepler como seu guia espiritual. Terá sido também um homem em exílio e, simultaneamente um pensador em exílio da zeitgeist moderna. Mas terá sido o seu amigo Paul Engelmann, quem lhe fez um melhor retrato da alma, num poema que muito o impressionou, dando um bom retrato do seu tipo de religiosidade, da noção de uma missão na vida, de julgamento, de autoridade ética e espiritual última, do primeiro momento do orgulho ao momento final do arrependimento:6


"Licitada pela sombra do anjo da morte
Voa a alma, pelos abismos da noite
E ele leva-a ao Juiz.

Pela noite de terror, pela corrupção mais perversa
Olho brilhante em olho brilhante, debatem-se:
“Sois culpada? Confessais?”

Não tenho culpa, não possuo culpa
Por mor de meu Criador que me fez
O meu Criador assume a culpa.

Precipitado no abismo mais profundo,
Envolvido por anéis de fogo ardente
Arde a alma e arde seu orgulho.

E a alma no meio do fogo ardente do Inferno
Exclama “E Aquele ali, tem prazer
E com os seus anjos de mim troça.

Se O pudesse ver, eu poupá-Lo-ia,
Nem uma única faísca O atormentaria
Como eu sofro livre de culpa.”

Eis que um ribombar de asas descendo
Voa para a fornalha do inferno
E convida a alma a seguir.

Conduzem-na ao mais alto dos céus,
Onde anjos enlutados e velados,
Se reúnem em volta de um trono vazio.

“Falai, onde está Ele, anjos velados,
Ele evita-me, esconde-se?”
“Não, Ele arde no Inferno abrasador.”

Então a alma acorda da sua visão
Foi um acordar profundo
Do sonho que ela sonhara no Inferno.

E entre o furioso fogo do inferno
Canta a alma: “O que me queima e cauteriza
É o amor de Deus, porque eu pequei.”

Irrompe um ribombar de todos os Céus
As minhas mãos são agarradas por anjos,
E eles clamam: «Deus é Todo-poderoso!»”



António Campos




Referências:






1 John Heaton and Judy Groves. Wittgenstein for Beginners. Penguin Books, London. ISBN 1 874166 17 X.


2 Armindo Abreu. O Poder Secreto. Kranion Editorial, 2005, pp. 245.


3 Biletzki, Anat and Matar, Anat, "Ludwig Wittgenstein", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/fall2016/entries/wittgenstein/>.

4 https://en.wikipedia.org/wiki/Ludwig_Wittgenstein

5 James C. Klagge, Wittgenstein in Exile. Cambridge, MIT Press, 2011.

6 Ann Guinee, John Henry Newman and Ludwig Wittgenstein: On Certainty and Faith. Mary Immaculate College, University of Limerick, 2013.






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