sábado, 22 de fevereiro de 2014

Chesterton, os amigos e…Dostoiévski



“Tudo é bom e belo porque é verdadeiro…Uma vez que a Palavra é para toda a criação, e toda a criatura e toda a pequena folha obedecem à Palavra, cantando louvores a Deus, chorando as mágoas a Cristo, sem terem de tal consciência plena, alcançam esse desiderato pelo mistério da sua existência sem pecado.”

F. A. Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, 1879


“O homem é mais ele próprio, mais humano, quando a alegria é o seu traço fundamental, e a tristeza é apenas superficial. A melancolia deve ser um interlúdio, uma moldura leve, transitória e inocente da mente; a gratidão deve ser o ritmo permanente da alma…A alegria é o mecanismo tumultuoso pelo qual todas as coisas vivem.”

G.K. Chesterton, Ortodoxia, 1908




É curioso como quem descobre Chesterton (1874-1936), descobre outros autores de língua inglesa como Stevenson (1850-1894) ou Dickens (1812-1870), autores de língua francesa como Vítor Hugo (1802-1885) e autores de língua russa, como Tolstoi (1828-1910) ou Dostoiévski (1821-1881). De Stevenson, Chesterton disse que ele parecia ter sempre a palavra certa na ponta da sua caneta como um homem que joga mikado1. "Talvez o ponto que Stevenson melhor sublinhou é que nós devemos admirar a virtude (o Bem) pelo seu próprio valor intrínseco e beleza, e não pelo valor que se lhe atribui numa dada época ou num dado local"2. Stevenson diria sobre Dostoiévski: “Raskolnikov é, sem sombra de dúvida, o melhor livro que eu li nos últimos dez anos. Muitos pensam que é maçudo; Henry James não o conseguiu acabar: pela minha parte, o que eu posso dizer é que ele quase acabou comigo”3.

De Vítor Hugo, Chesterton escreveu: “A verdade é que Hugo representa todas as coisas últimas e fundamentais: o amor, a ira, a compaixão, a reverência, o ódio e, consequentemente, entre outras coisas, a vaidade”4. Se pensarmos que Hugo não era cristão, nem possivelmente baptizado, que fez experiências ocultas para contactar com a sua falecida filha Leopoldine, que era um deísta, como a maioria dos intelectuais franceses da sua era, que afirmou que Paris devia mudar de nome em sua honra, entendemos melhor o mundo maravilhoso de G. K. Chesterton. Chesterton não esqueceu que Hugo salvou a catedral de Notre Dame de Paris e a Sainte Chapelle da demolição, após terem sido armazéns de farinha. Mas, Chesterton sobretudo não esqueceu Jean Valjean, Cosette, Os Miseráveis, essa obra extraordinária que ilumina a alma humana para sempre. Sem a ler, ninguém poderá jamais avaliar correctamente Vítor Hugo.

Thomas Merton sintetiza essa atitude: “Nós somos suficientemente sensatos para perceber que um autor pode ser profundamente bíblico no seu trabalho sem ser crente ou um frequentador da igreja e nós também percebemos que no nosso tempo é muitas vezes um artista só e isoladamente, enfrentando os problemas da vida sem a consolação da religião, que realmente sofre, em toda a sua profundidade, os problemas existenciais da criatura humana”5. Chesterton concluiria profeticamente sobre Hugo: “…Hugo é uma figura distante e vaga, um autor polémico e pouco conhecido. No entanto, ele foi, sem sombra de dúvida, um dos maiores homens de letras que alguma vez existiram na Europa; o dia do seu retorno ao triunfo intelectual estará longe com efeito, mas é certo”4. A West End e a Broadway, com Les Misérables, fariam jus a estas palavras.


Vós que chorais, vinde a este Deus, porque Ele chora.

Vós que sofreis, vinde a Ele, porque Ele cura.

Vós que tremeis, vinde a Ele, porque Ele sorri.

Vós que passais, vinde a Ele, porque Ele perdura.


(Vítor Hugo, Écrit au bas d’un crucifix).


De Tolstói, Chesterton criticaria a sua falta de fé na bondade humana; no valor da vida; na dicotomia farisaica entre o que dizia e o que fazia; na adoração da humanidade vilipendiando homens, mulheres e crianças, o homem concreto; no puritanismo contra os pequenos pecados dos homens num homem a quem não faltavam pecados; a descrença dos valores da Pátria ou da família. Tudo reside, para Chesterton, no equilíbrio entre a lógica e o misticismo, ausente em Tolstoi: “Na verdade, desde que o tempo é tempo, o misticismo manteve a sanidade no homem. O que enlouqueceu o homem foi a lógica. A única coisa que manteve o homem longe dos extremos do convento e do navio pirata, do clube nocturno e da câmara de gás, foi o misticismo” – a crença de que a lógica nos pode enganar e de que as coisas não são o que parecem. Tudo isto pode ser encontrado no livro que lhe dedicou6 e no livro anterior, Twelve Types7. Mas, também para ele, Chesterton deixou a sua apreciação final, cheia de cavalheirismo: “Não sabemos o que fazer a este pequeno e ruidoso moralista que habita num canto de um homem grande e bom”.



Para Dickens, Chesterton citou Dante, paradoxalmente: “abandonai todo o desespero, vós que entrais aqui” (nas obras de Dickens)8. E ainda “A camaradagem e a alegria não são interlúdios na nossa viagem…antes, a nossa viagem é um interlúdio na camaradagem e na alegria, que, por meio de Deus, durarão para sempre. A estalagem não aponta para a estrada, mas a estrada para a estalagem. E todas as estradas apontam finalmente para uma última estalagem, onde encontraremos Dickens e todas as suas personagens. E quando bebermos de novo, será pelos grandes jarros da taberna do fim do mundo”9. “Dickens era mais preciso quando era mais fantástico…Ele exagerava quando tinha encontrado uma verdade, para a exagerar…Em certo sentido, só a verdade pode ser exagerada, nada mais pode suportar a pressão”. 


É sabido que Dostoiévski tinha em Vítor Hugo, o herói literário da sua juventude. Foi mesmo convidado a ir ao Congresso Internacional de Escritores de Língua Francesa, presidido por Hugo, mas não compareceu por problemas de saúde. Enviaria uma nota em que dizia. “Ao grande poeta cujo génio exerceu sobre mim uma enorme influência desde a minha infância”. Dostoiévski escreveria sobre Hugo: “A ideia de Hugo é a ideia básica da arte do século XIX…Esta ideia é cristã e profundamente moral; a sua fórmula é a da regeneração dos homens caídos, esmagados injustamente pela força das circunstâncias e pelo poder do preconceito social. Esta ideia é da justificação dos párias da sociedade, humilhados e repelidos por todos”. Esta admiração não o impediu de criticar Hugo quanto às suas descrições de origem burguesa, quer dos personagens republicanos, quer dos personagens amorosos. Escreveria a uma sua leitora, Sofia Lurye: “É onde os seus seres miseráveis emergem que nós podemos observar a humanidade, o amor e a magnanimidade de Vítor Hugo”10.


Dostoiévski, chamou a Dickens o seu mestre e também lhe chamou “o grande cristão”. Ele confessou à sua sobrinha ter lido Dickens na prisão e os dois homens realmente encontraram-se em Londres em 1862, onde tiveram oportunidade de discutir a dualidade intrínseca à natureza humana. Ambos, contrariamente a Tolstói, sentiram o espírito de Rousseau, como retratado por Shakespeare em King Lear: o príncipe das trevas é um cavalheiro! Viam em Rousseau um aristocrata burguês, um filósofo, que criticava o amor-próprio ou o sentir individual, nutrindo um ódio ao indivíduo concreto que se traduziu em misantropia, acompanhada por uma adoração platónica à humanidade.

Quer Dostoiévski quer Dickens compreenderam e retrataram este tipo de personalidade, repugnante e mesquinha, egoísta e diletante, nas suas obras. Tal como criticaram o utilitarismo, recusando que uma teoria filosófica ou política, assente no puro interesse individual, pudesse ser o sustentáculo de qualquer ética11. Existia ainda um poderoso factor que identificava estes dois homens: Dostoiévski esteve preso; o pequeno Dickens, de doze anos, todos os domingos atravessava a ponte de Blackfriars a caminho da prisão de Marshalsea para visitar os seus pais, que se encontravam detidos (o pai detido e a mãe e filhos mais novos a viver na prisão, como era hábito na época). O pequeno Charles vivia com uma amiga da família e trabalhava dez horas por dia numa fábrica, a pintar e rotular potes de graxa preta, num local imundo e cheio de ratos. Dickens escreveria mais tarde: “É incrível como alguém pode ser um pária numa idade tão jovem”12.



Chesterton diria que Dickens, sabia melhor que ninguém que o sentido fundamental da fraternidade humana só poderia existir no âmbito de uma verdadeira religião1. O papel da Polónia na queda do muro de Berlin dar-lhe-ia razão.

Chesterton referiu-se a Dostoiévski, publicamente, por duas vezes: uma em 191213 e outra em 193414. Claro que todo o ambiente de Crime e Castigo o envolvia, pelo menos desde 1908, tal como acontecia com os seus amigos, admiradores e promotores de Dostoiévski, Gissing15 e Edward Garnett16, com quem ele escreveu um ensaio sobre Tostoi, em 1903, e Maurice Baring, que escreveu vários livros sobre a sua permanência na Rússia, entre os quais, Landmarks in Russian Literature, metade do qual é dedicado a Dostoiévski. Em 1910, o teatro Garrick apresenta a dramatização de Crime e Castigo sob o título de A Lei Não Escrita, cuja tremenda popularidade torna Dostoiévski conhecido em toda a Inglaterra3. É neste ano que é publicada a primeira história de O Padre Brown, A Cruz Azul. É possível que Crime e Castigo tenha influenciado Chesterton em obras como as histórias do Padre Brown, O Homem Que Era Quinta-feira (1908), O Homem Que Sabia Demais (1922) e O Poeta e os Lunáticos (1929). Mark Knight afirma que Chesterton terá conhecido o trabalho do escritor russo entre 1898 e 190615.


Ambos partilham o gosto pelas histórias de detectives17, o uso do grotesco18,19,20 e das personagens metafóricas, o recurso aos duplos21,22, o fascínio pela insanidade23 e a centralidade na liberdade humana, o livre arbítrio21.

Muitos alegam que o paralelo Chesterton – Dostoiévski não assenta num pressuposto sólido24. Por um lado, Chesterton nunca escreveu romances com a profundidade e a densidade psicológica de Dostoiévski; por outro lado, nos contos policiais, Raskolnikov não encontra paralelo em Flambeau. Adicionalmente, personagens com um cunho existencialista, frio e desvinculado, como Raskolnikov em Crime e Castigo, Ivan em Os Irmãos Karamazov e o homem subterrâneo em Cadernos do Subterrâneo, não têm paralelo em Chesterton (aquela gratidão pela existência que vemos no Innocent Smith de Manalive), mas sim uma espécie de revolta pela existência e uma vitimização. O homem subterrâneo admite que só quis humilhar e abusar de Lisa: “Era só pelo poder, eu queria sentir o poder, esse fascínio de um jogo. Eu queria as tuas lágrimas, a tua humilhação, sentir-te destroçada, era isso que eu queria”.

O culminar do tributo de Chesterton a Dickens vem com uma espécie de bandeira: “Há grandes homens que fazem com que todos se sintam pequenos, mas o verdadeiro grande homem é aquele que faz com que todos se sintam grandes”9. Ora, esta frase poderia ter sido aplicada a Dostoiévski por Chesterton e todo o esforço deste artigo consistirá em defender esta tese.



 António Campos



Referências:




1 – G. K. Chesterton. The Victorian Age in Literature. Henry Holt and Co., 246, London, 1917.

2 – G. K. Chesterton. Twelve Types: A Collection of Mini-Biographies: Stevenson.1902.  IHS Press, Norfolk, VA, 2002.

3 - Helen Muchnic. “Dostoevsky English Reputation 1881-1936”. New York, Octagon Books, 62-110, NY, 1969.

4 - G. K. Chesterton. “Victor Hugo, Pall Mall Magazine,1902”, reprinted in A Handful of Authors: Essays on Books and Writers, ed. Dorothy Collins, Sheed and Ward, 1953.

5 – Thomas Merton. Opening the Bible, Collegeville, Minnesota: The Liturgical Press, and Philadelphia, Pennsylvania, Fortress Press, 1970.

6 – Gilbert K. ChestertonGeorge H. PerrisEdward Garnett. Leo Tolstoy, Hodder and Stoughton, 1903.

7 – Chesterton. Twelve Types: A Collection of Mini-Biographies, 1902. Leo Tolstoy. IHS Press, Norfolk, VA, 2002.

8 – G. K. Chesterton, Charles Dickens, 1906.

9 - G. K. Chesterton. The Flying Inn, 1914.

10 – Kenneth A. Lantz. The Dostoevsky Encyclopedia. Greenwood Press, 2004.


12 – J. Forster. The Life of Charles Dickens [1872–1874]. Diderot Publishing London 2006.

13 - G. K. Chesterton, The Collected Works, Illustrated London News, 269-70, 1911-1913. Ignatius Press, SF, 1988.

14 – G. K. Chesterton, “Revolutionists and Revivalists of the 19th Century”, The Listener (14 November 1934), 836.

15 – George Gissing. Born in Exile, Hogarth Press, London, 1985.

16 – Mark J. Knight. "Dostoevsky & England." English Literature in Transition, 1880-1920, 43.4: 471-474, 2000.

17 - Anthony Cross. “A People Passing Rude. British Responses to Russian Culture”. Open Book Publishers, 2012.

18 - John Coats, “The Return to Hugo, A Discussion of the Intellectual Context of Chesterton’s View of the Grotesque”. ELT, 1880-1920, 25:2, 1982.

19 – Mark J. Knight, “The Concept of Evil in the Fiction of G. K. Chesterton: With Special Reference to his Use of Grotesque. University of London, PhD Thesis, 1999.

20 – Donald Fanger. “Dostoevsky and Romantic Realism: A Study of Dostoevsky in Relation to Balzac, Dickens and Golgol. University of Chicago Press, Chicago, Il, 228-240, 1965.

21 – Mark Knight. “Chesterton, Dostoevsky and Freedom”, English Literature in Transition 1880-1920, 43.1: 37-50, 2000.

22 - Dmitri Chizhevsky. “The Theme of the Double in Dostoevsky”, Dostoevsky: A Collection of Critical Essays, ed. Rene Wellek, New Jersey: Prentice-Hall, 1962.

23 – Russell Kirk. “Chesterton, Madmen and Madhouses”, Myth, Allegory and Gospel, ed. John Warwick Montgomery, Minnesota: Bethany, 1974.

24 – Gary Wills. Chesterton: Man and Mask, Sheed and Ward, NY, 1961.

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