domingo, 5 de abril de 2015

UMA APROXIMAÇÃO A CHESTERTON (parte I)


Foucault afirmou que o sujeito está irremediavelmente preso aos predicados do seu próprio
tempo, ou seja, delimitado pelas características paradigmáticas da episteme e moldado pelas suas respetivas consequências cognitivas e linguísticas do pensar e do dizer - ao seu quadro reflexivo e ao seu enquadramento epistemológico. Assim, seria tão paradoxal avaliar um cientista, um autor ou um artista, pelo seu aparecimento prematuro como pelo seu cariz reacionário, pois afinal, ele não é mais do que um mero produto da sua época - um mero recipiente passivo.
Apesar de G. K. Chesterton defender uma posição ontológica diferente, é lícito colocar uma questão logo de início. Será o autor de Ortodoxia um indivíduo fora de época? Um homem ultrapassado pelos acontecimentos, completamente desfasado do seu tempo? Um género de vingador do espírito medieval, desse vil espírito convenientemente massacrado e irremediavelmente varrido do mapa europeu pelos ventos impiedosos da História? Ou então encarnará uma espécie de príncipe nostálgico da idade das trevas, um protótipo esquisito, onde se combinam de forma harmoniosa e escandalosa, o tipo dogmático, o tipo simpático e o tipo bonacheirão? Como classificar esse estranho ser, disposto a trazer de volta os obscurantismos religiosos esmagados pela modernidade e pelo martelo de Nietzsche? Não passará, enfim, de um simples e simplório – embora extremamente erudito -  inquisidor tardio?
 
 
Pois um facto parece certo. Tivesse nascido três séculos antes, e certamente não teríamos sido brindados com e pelo fenómeno Chesterton. De facto, a sua obra só se compreende perspetivada a partir de uma cultura europeia secularizada, já totalmente alheada e estranha ao espírito religioso (ao espírito, vá). Após os efeitos devastadores perpetrados pelo protestantismo, pelo Iluminismo, pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial, o cristianismo – nomeadamente na sua versão católica – viu-se apeado novamente para as catacumbas – quando não para as masmorras e guilhotinas. Se nos tempos medievos, as pessoas nasciam num ambiente cristão, cresciam, fortaleciam-se e tornavam-se adultas no seio familiar, aconchegante e firme dos valores cristãos, seguras da compreensão de si, da dos seus vizinhos e da do seu mundo, repousando serenamente e confiadamente na equivalente retribuição por parte dos demais, nos dias de Chesterton a cosmovisão era outra. Na ausência dessa aura, o autor sentiu-se obrigado a levar a cabo a tarefa de levantar o pó do catecismo, de aclarar e esclarecer a história dos combates da Igreja, de iluminar e eliminar as falsas lendas negras que se foram construindo em torno do Magistério e do seu percurso milenar, de polir as vetustas verdades, e de separar, navegando-as, as águas turvas do ateísmo militante nas suas variadas e multiformes facetas – quando não a andar sobre elas.
 
Qual Pedro, qual Paulo, dois mil anos antes, o criador do Padre Brown sentiu necessidade de evangelizar os contemporâneos, de mostrar a beleza, a justiça, o bom-senso, a verdade eterna dos dogmas preservados na Santa Igreja. Em vez de fariseus e saduceus, em vez de gregos e romanos pagãos, em vez de gregos romanizados ou de romanos helenizados, deparou-se com comunistas, socialistas, ateus, evolucionistas, relativistas, orientalistas, espiritistas, capitalistas – e até neo-pagãos fascistas e nazis. Nos seus célebres debates e disputas acalorados, trouxe ao panorama intelectual moderno conceitos esquecidos e considerados inapropriados - quando não ofensivos ou risíveis, consoante a sensibilidade, a tolerância, a disposição e o humor dos oponentes – tais como a Queda, a Ressureição, a Verdade, a Heresia, o Milagre, o Senso-Comum – Deus.
 

Haverá sempre aqueles que confortavelmente sentados (alguns decerto deitados) nas suas cátedras, apontarão o dedo ou cerrarão os punhos, enquanto consistentemente esperneiam de raiva, indignando-se e rangendo os dentes, rasgando as vestes com tais apologéticas: afirmarão que se trata de nebulosidades retrógradas, estados de alma petrificados e putrefactos, desenlaces inevitáveis da caricata, desastrosa e desumana falta de educação e de escolaridade; resultado eminente da ausência de cultura e de formação académica – sintoma inequívoco de analfabetismo.
 
Neste instante, somos compelidos a condescender com esses: definitivamente, não é nos curricula atuais que vamos encontrar a Salvação – nem sequer um salvamento momentâneo. No entanto, por caridade, e apenas por breves momentos - comprometemo-nos desde já -, vamos fazer-nos seus convidados e combinar acertar agulhas; vamos pois então, quais inapropriados e indignos penetras, consentir na sua tese – anunciaremos que professar e defender a fé cristã é sinal inequívoco de superstição, ignorância e estultícia. Por conseguinte, com toda a humildade de que somos capazes, com todo o reconhecimento e respeito que essas entidades nos provocam, invocaremos a sua sagaz sabedoria e faremos um apelo à sua paciência para connosco: através das nossas parcas e difusas capacidades de expressão, ousaremos questionar as venerandas sumidades com duas ou três perguntas acerca do catecismo - algo ao nível da catequese da nossa adolescência. Ou então, ainda recorrendo às nossas toscas palavras, elaboraremos de forma grosseira uma ou duas questões relacionadas com a história da Igreja; ou outra hipótese, tentando não abusar do imerecido beneplácito para connosco, colocaremos, sem qualquer retoque polido pelo verniz da douta sofisticação, uma singela demanda acerca de um marco histórico da Idade Média.
 
- Oh, meu Deus! Mas não é que tais eruditos desconhecem aquilo que nós – os incultos e atrasados - na nossa infância já tínhamos como adquirido?! Que ignoram por completo o mais básico fundamento do catecismo?! Que são incapazes de destrinçar entre uma simples ideia relacionada com a fé e uma matéria do foro da história? Que não dominam sequer os mais imberbes acontecimentos dos Evangelhos? Que colocam palavras ditas por Pilatos na boca de Jesus?! Que trocam Pedro por Paulo, mesmo quando o sujeito em causa é Judas Iscariotes? Ou que – mais grave - assumem poses de um alto gabarito e de uma sobranceria intelectual, quais detetives do Iluminismo, sobre aspetos supostamente escondidos da incauta massa popular, que qualquer edição bíblica contém?! Estes catedráticos do livre-pensamento chegam ao cúmulo de ser bíblicos em matéria histórica e históricos em matérias de fé! Como se a explicação sobre a Santíssima Trindade radicasse numa pedra solta da Muralha de Adriano! Tais vendilhões da sabedoria seriam mais apreciados por nós se ao menos dominassem os princípios fundamentais do cristianismo e discernissem os principais fenómenos históricos da – afinal - sua própria civilização.
 
 
 
 
Invocar superioridade intelectual e moral em temáticas onde se aventuram como que em terra incógnita, é um comportamento, que apesar de merecer o epíteto de temerário, é igualmente capaz de aguentar o de infeliz e o de ridículo – além de ser desonesto por inteiro. A dura expressão “como um boi a olhar para um palácio” arroja à superfície da mente, e não será completamente desajustada nem sem sentido. “Mas um bovino não argumenta”, poderão retaliar com toda a justiça e propriedade; ao que responderei: – “se bem que é capaz de permanecer dias a fio sem emitir qualquer som”. “Com as devidas distâncias, reparem no caso de São Tomás, alcunhado como o boi mudo”. E a santidade sabe perfeitamente que o silêncio pode ser de ouro.
 
 
Em cristalino contraponto, os defensores da Igreja sempre conheceram extremamente bem os seus adversários. Alain de Lille, por exemplo, o autor de De fide catholica contra haereticos, nos seus veementes ataques aos cátaros e valdenses, aos judeus e muçulmanos no século XII, refutou-os de forma brilhante no terreno das suas teses, ideias e valores. Claro que para tal é necessário esforço e entrega – e nestes tempos que vão correndo só se tem coragem para pedir e reclamar, e nunca para oferecer (mas a isso não se chama coragem, mas cobardia). Que não restem dúvidas: oferecer um combate cerrado é uma forma quase sublime de homenagem; um reconhecimento de capacidade e de humanidade no outro - inclusive quando os confrontos aparentam a agressividade dos campos de batalha e os fiéis parecem vestidos com uma armadura agressiva e ofuscante – dir-se-ia intolerável! Permitam que vos assegure: os cristãos jamais perderiam tempo com monstros ou bestas. Ao invés, encaram a disputa como um arrufo fraterno entre irmãos – embora sobre pressupostos de assumida importância. São implacáveis para com os pecados e compreensivos para com os pecadores.
 
 
Neste momento, gostaríamos de invocar as palavras de consolo do abade Foulques de Deuil ao recém castrado Abelardo, que por muitos clérigos seus contemporâneos era tido como herético: “faz pouco tempo, a glória deste mundo te cumulava de seus favores e não se imaginava mais que estivesses exposto aos reveses da sorte. Roma te enviava seus filhos para os instruíres, e ela, que outrora inculcava em seus ouvintes o conhecimento de todas as ciências, mostrava, enviando-te seus escolares, que tua sabedoria era superior à dela. Nem a distância, nem a altura das montanhas, nem a profundidade dos vales, nem as estradas repletas de perigos e infestadas de bandoleiros nos impediam de se apressarem em ir até a ti. A multidão dos jovens ingleses não temia nem a travessia do mar, nem suas terríveis tempestades; a despeito de todo o perigo, desde que ela ouvia o teu nome pronunciado, acorria até a ti. A longínqua Bretanha te enviava seus filhos para os educares; os angevinos te prestavam homenagem com os deles. Os poitevinos, os gascões e os espanhóis, a Normandia, a Flandres, o alemão, o suábio não cessavam de proclamar e louvar o poderio do teu espírito. Não digo nada de todos os habitantes da cidade de Paris e das partes mais distantes, como mais próximas, da França, que estavam sedentas de teu ensino como se não houvesse ciência que não fosse possível aprender contigo”.
 
Pode vir como uma surpresa, mas o ensino era tido em muita boa conta nos tempos medievais. Tem-se o péssimo hábito de abusar duma ideia feita à pressa acerca deste ponto, como se rebolando variadas vezes em cima do falso ele se tornaria verdadeiro. Obviamente, que comparando com os dias atuais, o ensino, além de estar extremamente longe do regime de obrigatoriedade, não se encontrava massificado. Partes consideráveis da população não podiam despender do tempo, dar-se ao luxo de abandonar a família, de sonhar sequer em esquecer os deveres para com a comunidade – estava-se num era do cumprimento do dever e do respeito das obrigações! Mas não se pode esquecer que incontáveis indivíduos se acotovelavam em frente ao Mestre, colados às suas sábias palavras – em muitas ocasiões, desconfortavelmente sentados nas frias e ásperas ruas, enquanto as pernas descansavam das muitas dezenas de quilómetros percorridos e com os estômagos a insistir em emitir ruídos estranhos com a fome de dias. E que marcantes professores a Idade Média (e os seus alvores) nos deixou: Santo Ambrósio, Santo Agostinho, Santo Anselmo, São Vítor, São Bento, São Boaventura, São Bernardo, São Alcuíno, o já referido Alain de Lille, entre muitos outros - além do infeliz Abelardo. Universitas, a universidade, orgulho tremendo dos pais dos nossos jovens e de onde jorram fornadas de mentes livres e seculares a torto e a direito, nasceu nestes séculos católicos – o Papa Inocêncio III é o fundador da prestigiadíssima Universidade de Paris no século XIII.
 
Paulo Pinto
 
 

2 comentários:

  1. Olá, Gostaria de saber de qual livro retiraram essa citação do Chesterton:
    "Todo o Mundo Moderno se divide entre Progressistas e Conservadores. O papel dos Progressistas é cometer erros continuamente. O papel dos Conservadores é evitar que os erros sejam corrigidos."

    Quero coloca-la em minha monografia.

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  2. Caro Lucas,

    Aqui vai:

    "The Blunders of Our Parties", Illustrated London News, 1924-04-19.

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