quinta-feira, 19 de março de 2015

O Escarnecedor

 
 
 
 
 
Em O Sonho de Platão e em Cândido e o Optimismo, Voltaire ataca o conceito optimista de que tudo
está certo no melhor mundo possível. Incapaz de dar uma resposta satisfatória ao problema do mal, o optimismo iluminista lida deste modo com o problema de justificar a presença do mal perante uma divindade benevolente. A resposta só pode ser uma: o mal não existe, tudo está no seu devido lugar. O mundo não podia ser melhor atendendo àquilo de que a sua existência depende e, no cômputo geral, é um mundo bom. Ora, este tipo de resposta iluminista ao problema do mal é atacada pela outra resposta iluminista, numa dialética, o pessimismo: se tudo é bom, se tudo está no seu devido lugar, porque há terramotos, porque sofrem as crianças? Não nos iludamos, não sejamos idiotas: o mundo é bastante mau e há que abrir os olhos para essa realidade, de forma a que o homem possa sobreviver, competindo, para vencer. Destas duas posições se originaria o cientismo-romantismo, realismo-simbolismo, positivismo-naturalismo.

 
Ambas as posições diferem fundamentalmente daquilo a que Chesterton chama o realismo metafísico, a noção de que a criação é inteiramente boa e que é uma atitude espiritual, ao fazer mau uso dela, que origina a entrada do mal. Tal como numa peça de que não se conhece o final, é a liberdade dos encenadores e actores que assegura a intensidade, originalidade e autenticidade do enredo. O mundo material não é mau, muito pelo contrário, é uma criação artística sublime que deve merecer a nossa reverência e uma atitude de alegria. É uma parte do mundo espiritual e, consequentemente do próprio homem, que faz entrar o mal no mundo pelo uso do livre arbítrio. Mas é essa mesma liberdade que, podendo originar o mal, por outro lado torna tudo tão apaixonante e inesperado, como se a criação fosse contínua e sempre com um elemento ex nihilo.
 
 
Em O Sonho de Platão analisa-se criticamente se de facto a Terra está bem dimensionada para a vida. A análise é indirecta, como sempre em Voltaire. Tudo ocorre durante um sonho de Platão, em que o Demiurgo cria o cosmos. O Demiurgo dos gnósticos oscila entre a fonte do próprio mal e um deus subordinado ao Grande Arquitecto. A ideologia gnóstica supõe que a matéria é má, a criação é má, tudo o que há de material no homem é mau. O homem deve ansiar por se livrar do corpo para libertar a alma. Este Grande Arquitecto, acima do Demiurgo, é que ilumina e conduz o homem ao conhecimento perfeito, de natureza filosófica, por ascese ou iluminação, a gnosis, de forma a que o homem se livre da acção do Demiurgo para sempre.

 
 
Voltaire, deísta, coloca a criação nas mãos do Demiurgo, que por sua vez subcontrata um demogorgon ou demiurguinho para fazer a Terra. Feita a Terra, os outros génios ou demogorgons troçam daquele que a fez com o argumento de que ela não é perfeita, nem completa, nem completamente bem adequada à vida e se encontra repleta de incongruência, inconsistência, insuficiências e defeitos (desertos, plantas venenosas, doenças, cobras e aranhas, desavenças e toda a espécie de malícia). A resposta do demogorgon que fez a Terra é um tanto surpreendente, uma vez que desacredita o próprio argumento dos que sustêm o pessimismo: “ela é muito boa, sobretudo se compararmos com tudo o resto, aquilo que vocês fizeram. (…) Pensas que é fácil fazer um animal que seja sempre razoável, que seja livre e que jamais abuse da sua liberdade?”

 
Este tropeço de Voltaire é muito típico dos escarnecedores, melhores a criticar do que a construir, cegos à inconsistência em casa própria. Voltaire extrai os argumentos para a sua teodiceia deísta do livre arbítrio e da necessidade, com uma estratégia para expor a sua fraqueza, mas ao fazê-lo, mais por uma defesa inconsistente do que por um ataque fundamentado, mina a sua própria credibilidade. Talvez isso apenas expresse a sua hesitação.
 
O demogorgon usa a ciência para provar quanto o universo se encontra afinado para a vida, seja por ser criado, seja por ser estocástico, ele é de facto o melhor dos mundos possíveis até onde a ciência nos dá a conhecer. Mas mesmo que este seja o melhor dos mundos que conhecemos, atendendo à imensidão do universo não existe nenhuma razão para supor que o homem seja algo de importante. Esta tinha sido uma ideia de Micromegas (1752). Neste conto, os extra-terrestes de Sirius têm 40 quilómetros de altura e vivem mil e duzentos anos. Um destes, Micromegas, vai até Saturno onde encontra um saturniano com mil e oitocentos metros e ambos se dirigem à Terra. Apercebem-se então de que existem umas minúsculas partículas vivas e inteligentes na superfície do minúsculo planeta.

 
Claro que Voltaire não é tão tolo como muitos dos seus seguidores que se renda à vertigem do tamanho: "Reconheço, mais do que nunca, que nada devemos julgar por sua grandeza aparente. Ó Deus, que destes uma inteligência a substâncias que parecem tão desprezíveis, o infinitamente pequeno vos custa tão pouco como o infinitamente grande; e, se é possível que haja seres ainda mais pequenos do que estes, podem ainda ter um espírito superior ao daqueles soberbos animais que vi no céu e cujo pé bastaria para cobrir o globo a que desci."

 
Mas logo à frente Voltaire trai o seu próprio argumento ao achar ridículo que os homens lutem desde tempos imemoriais por “uma porção de lama do tamanho do vosso calcanhar” (a Palestina). Pode concluir-se que a paixão de Voltaire pela religião, sobretudo pelo clero católico, é tão grande que o faz trair a consistência das suas próprias conclusões: “Aliás, não é a estes que é preciso punir, mas sim a esses bárbaros sedentários que, do fundo de seu gabinete, ordenam, durante a digestão, o massacre de um milhão de homens, e em seguida o agradecem solenemente a Deus.”
 
 
G. K. Chesterton também sublinha a fraqueza do argumento da vertigem do tamanho:
“Aquele argumento de que o homem parece menor e vulgar face ao universo físico, nunca me menorizou, porque se trata apenas de um argumento sentimental e não racional.
Eu posso sentir-me aterrorizado se observar um homem de quinze metros a caminhar pelo meu jardim, mas mesmo no pico do meu terror eu nunca teria qualquer razão para supor que tal homem fosse vitalmente mais importante do que eu, ou mais elevado na escala ontológica, ou mais próximo de Deus, ou mais próximo do que quer que seja a verdade.
O sentimento de um cosmos imenso e todo-poderoso é um sentimento agarotado e histérico, embora muito natural e humano.
Mas se queremos realmente discutir se o homem é, de facto, o centro moral deste mundo, ele não se encontra menorizado pelo facto de não ser a maior estrela ou por não ser o maior mamífero. A menos que se tenha como a priori que a Providência tem que colocar a maior alma no maior corpo, tornando o centro físico sinónimo do centro moral, "a vertigem do infinito" não tem mais valor espiritual do que a vertigem de uma escada ou a vertigem de um balão."
 

 
Ao conferenciar com os minúsculos terráqueos, os extra-terrestres surpreendem-se perante a sua incapacidade de definir a alma e, mais uma vez, Voltaire trai o argumento deísta:
“(…) perguntou-lhe o que era a sua alma, e o que fazia.
- Absolutamente nada - respondeu o filósofo - é Deus que faz tudo por mim; vejo tudo em Deus, faço tudo em Deus: é Ele quem faz tudo, sem que eu me preocupe.
- É o mesmo que se não existisses - tornou o sábio de Sírio.”

 
 
Ora o objectivo de Voltaire não é a vertigem do tamanho mas a afirmação da existência de vida extraterrestre. O ataque à afirmação tomista de que tudo foi feito para ficar à disposição do homem. Perante tal argumento os extra-terrestres desmancham-se a rir e acusam criaturas tão pequenas de serem muito arrogantes. Aparentemente tal afirmação cai por terra se houver vida extra-terrestre.
 
Ou não…
 
A ciência, ao sublinhar as tremendas exigências para a existência da vida no universo, reafirma o quanto a Terra está adequada à vida, i.e., a sua singularidade. A ciência jamais provou até hoje a existência de vida extra-terrestre. Nem sequer afirmou que é provável, pois não tem dados para cálculo de probabilidade. O que a ciência afirma é que é possível.
 
Voltaire falha no seu escárnio pela superficialidade da argumentação. Se a nossa existência é uma causalidade contingente, então é miraculosa, porque até agora, tanto quanto conhecemos, é única; se a nossa existência depende de uma inevitabilidade evolucionista, então é criação. Isto significa que a questão do significado e do nosso lugar no universo não é uma questão científica, o que apenas pode preocupar os devotos do cientismo.
 
Voltaire, em Micromegas, reflecte a mente de Locke; o seu Deus resultante do pensamento puramente humano: “Eu não sei como penso, excepto que nunca penso sem que seja por sugestão dos meus sentidos. Não duvido que haja substâncias imateriais e inteligentes, mas duvido seriamente que Deus possa fornecer a capacidade de pensar à pura matéria. Eu não afirmo nada, limito-me a afirmar que tudo é mais possível do que as pessoas supõem.” Voltaire aplaude mais a viagem do que o destino, mais a busca em si do que a verdade. Este pensamento é tipicamente gnóstico e relativista:
 

 

 
“Prometeu-lhes que redigiria um belo livro de filosofia, escrito bem miudinho, para seu uso, e que, nesse livro, veriam eles o fim de todas as coisas. Com efeito, entregou-lhes esse volume, que foi levado para a Academia de Ciências de Paris. Mas, quando o secretário o abriu, viu apenas um livro em branco.”

 
Esta controvérsia relativista persegui-lo-ia até à morte. Defensor da tolerância atacava os cristãos e os escritos bíblicos. Mozart diria da sua morte: “Esse grande canalha finalmente chutou o balde (os suicidas pela forca tinham que chutar o balde para ficarem suspensos pela corda).”
 
António Campos

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