quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Carta a Chesterton



Caro Senhor Chesterton,


Tive oportunidade de o conhecer muito recentemente. Admiro a forma e o conteúdo do que escreve, a sua atitude perante a vida e perante os outros, numa palavra, o seu
exemplo.
Pensei oferecer-lhe uma prenda, uma vez que se aproxima o dia de Reis. Como não me parece fácil entregar-lha pessoalmente, pelo menos para já, pensei em oferecer-lhe algo que o dinheiro não pode comprar. Primeiro ocorreu-me cantar uma sonata ou uma canção popular. Acontece que sou um péssimo cantor. Aliás, já pedi ao meu Senhor, que numa próxima oportunidade, faça de mim uma harpa que plane ou um címbalo que tine. Ocorreu-me também dançar um tango ou uma sevilhana. Acontece que nem uma valsa consigo dançar; sou membro do grupo dos pés de chumbo. Depois pensei em escrever. Mas que poderia eu oferecer escrito a um dos príncipes da escrita sem que ele não evite sorrir até chegar às lágrimas?

Então, em desespero de causa, e tentando cumprir o meu intuito, mergulhei nos seus escritos. É verdade que a sua Ortodoxia já há muito fez derrubar a minha, aquela que eu tão pacientemente tinha construído, num fervor revolucionário estudantil, erigida entre debates e noitadas, enfeitadas de filmes de Fassbinder, de Herzog, teatro de King Lear com Kenneth Branagh, de revistas que iniciei na faculdade, escritas sobre os meus heróis musicais - o esteticismo lírico e deprimente de Ian Curtis ou de Jim Morrison, a loucura planante de Robert Smith. O percurso entrecortava com serenatas e copos, namoros breves e muito estudo, porque tinha que fazer pela vida. Para dizer a verdade, antes de o conhecer, já João Paulo II tinha feito tremer o meu compacto edifício racionalista e, quando vi o Papa em 1982, os vidros estilhaçaram e pouco restou dos seus alicerces.


Tenho lido alguma coisa do que escreve. Reparei que entre dedicatórias, ensaios, livros, peças dramáticas e cómicas, sátiras e poemas, também se encontram críticas literárias. Recentemente li o seu livro Twelve Types na sua língua materna, com a qual guardo alguma afinidade. Afinidade porém feita de amor e uso, de esforço e trabalho, não da espontaneidade e naturalidade que o meu caro amigo possui, uma vez que, pelo que lhe terão dito, terá nascido nessa terra de heróis e vilões, de crianças de pés nus e narizes sujos da fuligem da miséria, de piratas que são Sirs, de forcas para reis e fidalgos, de imperialistas e mercadores, de honra e vaidades, de folhas caídas e de ventos irados, de chuvas pletóricas e nevoeiros perenes, de Jane Austen e William Shakespeare, de diplomatas e carácter, de orgulho e tradição.


Pensei fazer uma crítica e sinopse dos seus Doze Tipos. Talvez o faça, talvez o deva fazer, mesmo que mal. Tenho este defeito muito feminino, usando as suas palavras, de que para uma mulher se existe alguma coisa que se deva fazer, então ela deve ser feita, mesmo que mal. Mandou a prudência que para oferecer algo a alguém tão culto e sabedor, algo que lhe pudesse prender a atenção, ainda que por alguns breves instantes, pedisse a ajuda a alguém mais culto e sabedor do que eu e, para o caso em questão, muito melhor escritor. Foi assim que conheci José Ramón Ayllón, perdido numa livraria do meu país, numa daquelas livrarias de que nunca ninguém ouviu falar. Após a primeira abordagem, contou-me que também ele tinha sentido o apelo de escrever sobre tipos, na verdade dez tipos que mudaram do ateísmo para o cristianismo, e que o senhor era um desses tipos. Talvez não lhe esteja a contar nenhuma novidade… Mas não é verdade que algumas das prendas que recebemos nada têm de novidade?


Lembro-me de uma prenda, tão imaterial como esta, que o senhor escreveu no Outono de 1896 a uma mulher, Frances Blogg. Nessa noite, no silêncio da sua casa, escreveu: “Qualquer actriz conseguiria parecer-se com Helena de Tróia, mediante uma pintura nos lábios e uma pequena maquilhagem, mas nenhuma poderia parecer-se contigo sem ser uma bênção de Deus”. Que grande prenda, sobretudo dada por um agnóstico! Claro que é muito possível que Frances tenha comentado com sua irmã, a propósito dos olhares que lhe lançava, em casa dos pais: “Meu Deus, nunca pensei que pudesse sentir tanto com tão pouco!”

Lembro-me, assim de repente, de umas quatro prendas que recebeu, da mesma natureza imaterial: Um telegrama do cardeal Eugenio Paccelli, futuro Papa Pio XII, num momento particularmente dramático da sua vida, uma carta de Albino Luciani, futuro João Paulo I, e mais duas citações de dois Papas, Bento XVI e Francisco. Tenho a certeza de que foram prendas que seguramente apreciou; creio mesmo que as terá colocado debaixo da árvore de Natal, juntinho ao Presépio. Ainda há quem vislumbre encantos para além da matéria.





Recordo, em 1910, Bob Dell, que criticara o seu livro, A Esfera e a Cruz, nestes termos: “O homem que se faz católico, deixa a sua responsabilidade no átrio e crê nos dogmas para se livrar da angústia de pensar”.

A sua resposta foi limpinha, sem espinhas:
“Euclides, ao propor definições absolutas e axiomas inalteráveis, não isenta os geómetras do esforço de pensar. Pelo contrário, propõe-lhes a árdua tarefa de pensar com lógica. O dogma da Igreja limita o pensamento da mesma maneira que o axioma do sistema solar limita a Física: em vez de parar o pensamento, oferece-lhe uma base fértil e um estímulo constante.”

E pouco mais tarde, no Daily News
“Eu creio, porque assim o afirmam fontes autorizadas, que o mundo é redondo. Que possa haver tribos que creiam que ele é triangular ou oblongo não altera o facto de que, sem sombra de dúvida, o mundo tem que ter uma determinada forma e não outra. Portanto, não digais que a variedade de religiões vos impede de crer numa. Não seria uma atitude inteligente”.

Em 1922, após a sua conversão, escreveu no Daily News: “Segundo você, confessar os pecados é uma coisa doentia. Eu responder-lhe-ia que doentio é não os confessar. O doentio é ocultar os pecados, deixando que lhe corroam o coração. Tal é o estado em que vive a maioria das pessoas das sociedades ditas civilizadas”.

Tenho a certeza de que gostou que a ideia repetidamente afirmada ao longo do seu livro, O Homem Eterno, a ideia de que o cristianismo não é uma teoria mas sim um acontecimento, a história de que o misterioso Criador do mundo visitou o seu mundo em pessoa, tenha sido enfatizada pelos três últimos Papas: o cristianismo é um encontro com uma pessoa concreta! 

“Estou orgulhoso de me ver atado por dogmas antigos e escravizado por credos profundos (como dizem os meus amigos jornalistas com frequência), pois sei muito bem que são os credos heréticos aqueles que morreram e que só o dogma razoável vive o tempo suficiente para ser chamado antigo.”

Em busca da sua orientação e auxílio, lembro-me sempre das suas palavras em verso: “Nunca ninguém se riu da vida como eu me rirei da morte”.

Poder-nos-à deixar uma mensagem, uma mensagem que rompa o muro da morte e do cepticismo, um bilhete que traga entendimento ao coração sem passar pelo intelecto?

Desde aquele dia de Outubro, chuvoso e frio, em que nos encontrámos, senti que nos deixaria este bilhete, que nos anima e nos guia, que nos consola e nos alenta, senti que nunca deixaria de estar connosco, meu amigo. Dizem que este bilhete que nos deixou é de Santo Agostinho, mas a mim parece-me que a sua formosura é um apelo que nos acorda e que nos resgata desta espelunca onde vivemos. Chamemos-lhe carta de uma criança a sua mãe e aqui fica para todos os que percorrem o vale das sombras, para que digam: “Assim como a corça suspira pelas correntes de água, assim também a minha alma suspira por Vós, oh meu Deus”:


"Não chores se me amas. Se conhecesses o dom de Deus e o que te espera no Céu!
Se pudesses ouvir o canto dos anjos e contemplar-me no meio deles!
Se, por um instante, pudesses contemplar como eu, a Beleza diante da qual se desvanecem todas as belezas!
Amaste-me no país das sombras, e não te resignas a ver-me no das realidades eternas?
Crê em mim: quando chegar o dia que Deus fixou para vires para este Céu, para onde te precedi, voltarás a ver aquele que sempre te ama e encontrarás o meu coração com todas as ternuras purificadas.
Encontrar-me-às transfigurado, não como quem espera a morte, mas avançando contigo pelos caminhos da luz.
Por isso, enxuga as tuas lágrimas e não chores, se me amas".

Escrevi uma vez num jornal, a propósito da morte de um conhecido historiador e professor universitário, que não lamentava a sua morte, antes dava graças a Deus pela sua vida, pelo muito que nos deu a conhecer. Meu caro amigo, essas palavras, que lhe envio, não poderiam ser mais apropriadas.







António Campos

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