domingo, 14 de julho de 2013

Introdução ao Livro de Job

Porque acontecem coisas más a homens bons?











Ao debater com o céptico arrogante, não é um método correcto tentar fazer com que ele cesse de duvidar.

O melhor método é mergulhá-lo num mar de dúvidas, que duvide um pouco mais, que duvide em cada dia de novas coisas, até que, por uma inesperada iluminação, comece a duvidar de si próprio.



Confesso que nunca nutri particular admiração pelo Livro de Job, dentro de todos os livros do Antigo Testamento. Para mim tratava-se de uma lamúria circular e de uma mortificação estéril que pareciam juntar Deus e o diabo num mesmo propósito: fazer sofrer o pobre Job para ver qual o seu limite. O meu desinteresse foi tão pronunciado que, mesmo o ensaio de Chesterton, Introduction to the Book of Job, de 1916, nunca despertou a minha atenção. Foi por uma coincidência estranha, como um raio de sol num dia cinzento, que uma conversa e um lema desse livro, me fizeram a ele retornar, pela mão de Chesterton. Do local onde me encontrava não conseguia descortinar o brilho, o enlevo, a luz e a cor, que se encontram encerrados nesse poema. Não conseguia sequer vislumbrar o seu paradoxo: porque acontecem coisas más a homens bons?

 
Creio que esta introdução de Chesterton explica um paradoxo: como acontecem coisas más a homens bons? A resposta encontra-se no problema do mal, na questão da fé e na questão do que é realmente justo.
Chesterton fez uma desmontagem admirável e, cuidadosamente, voltou a unir as peças mais importantes, para chamar a atenção de como Deus permite aos homens que O vislumbrem, num ápice, por entre a cortina inefável do seu manto.



Dos pontos sublinhados por Chesterton, escolhemos doze:

1 - A AUTENTICIDADE:

Não tem qualquer interesse discutir se o livro foi escrito de uma só vez ou de várias vezes, por uma ou várias pessoas, quer se chamassem Job ou não. Esta é uma questão irrelevante. Irrelevante porque o livro se insere harmonicamente no ambiente e narrativa do Velho Testamento. No tempo antigo um homem deixava a seu filho uma obra para acabar, assim como deixava um campo para cultivar. A Ilíada pode ter sido escrita só por Homero ou não, mas o seu espírito está lá. Chesterton diz:

“Havia mais unidade em tempos antigos em cem homens do que existe hoje num só. Então, uma cidade era como um só homem. Agora um homem é como uma cidade em guerra civil.”
 

2 - A UNIDADE

Os livros do Velho Testamento guardam algumas características em comum:

2.1- Os homens como servos, não como filhos; os homens como meros instrumentos de Deus:
 
“A ideia do Velho testamento é muito terrena e prática: a ideia de que poder é poder, astúcia é astúcia, sucesso é sucesso.”
 
“Os heróis do Velho Testamento não são filhos de Deus, mas sim servos de Deus. Servos gigantes e terríveis, como os génios, que eram os servos de Aladino.”

“Aqueles que sublinham as atrocidades e perfídias dos juízes e profetas de Israel realmente têm uma noção muito desfasada das circunstâncias.
Eles são demasiado cristãos.
Eles transpõem para as escrituras pré-cristãs uma ideia puramente cristã - a ideia dos santos, a ideia de que os principais instrumentos de Deus são pessoas particularmente misericordiosas.
Esta é uma ideia mais profunda, mais radical e mais interessante do que a velha ideia judaica. É a ideia de que a inocência tem nela um tal poder que faz e refaz impérios e o próprio mundo.”

“Espera-se dos santos da Cristandade que sejam como Deus, da sua própria natureza, como pequenas estatuetas Dele.”

2.2- A solidão de Deus:

“O herói do Velho Testamento não é suposto ser mais da mesma natureza de Deus que um martelo ou um serrote são da natureza do carpinteiro".
 
“O sentido geral da escritura do tempo hebraico é de que não só Deus é mais forte do que o homem, não só Deus é mais misterioso do que o homem, mas, sobretudo, Ele tem muito mais importância, Ele entende melhor o sentido do que faz. Comparado com Ele, nós temos algo da futilidade, da irracionalidade, do deambular das bestas perecíveis.
Ele senta-se acima da Terra e os seus habitantes são, portanto, como gafanhotos.”


 

3 - A PERSONALIDADE DE DEUS:

“O livro é tão assertivo na descrição da personalidade de Deus, que quase afirma a impessoalidade do homem. A menos que esta imensa mente cósmica conceba uma determinada coisa, esta fica vazia e à deriva; o homem não tem tenacidade suficiente para assegurar a sua continuidade. A menos que o Senhor edifique a casa, todo o trabalho será em vão. A menos que o Senhor vele pela cidade, o sentinela vigia em vão.”

4 - A SINGULARIDADE:

Todo o Velho testamento realça o apagamento do homem em face do plano de Deus. O livro de Job é o único em que ele questiona:

-Qual é a proposta de Deus?
 
-Vale a pena o sacrifício, mesmo sendo a nossa existência miserável?
 
-Vale a pena abdicar da nossa vontade, mesmo que insignificante, em prol de uma vontade superior e mais bondosa?
 
-Será que é mesmo superior e mais bondosa?
 
-Deixemos Deus usar os seus instrumentos; deixemos Deus partir os seus instrumentos. Mas o que é que Ele anda a fazer e porque é que eles são partidos?

É por isto que o enigma do Livro de Job é um enigma filosófico.
 

5 - A BELEZA INTELECTUAL:

Todo o Livro de Job é um impulso de querer conhecer a novidade; de ter o desejo de conhecer o que é e não apenas o que parece.
 
“O hábito moderno de afirmar: cada homem tem a sua própria filosofia; esta é a minha filosofia e considero-a adequada, só demonstra fraqueza de espírito. Uma filosofia cósmica não se ergue para iluminar um homem; uma filosofia cósmica é formulada para se adequar a um universo. Um homem pode tanto possuir uma religião privada como pode ter um sol ou uma lua exclusivamente para si.”


 

6 - O OPTIMISMO DE JOB:

Job interroga, mas interroga como quem admira Deus. Como uma mulher que interroga o marido, como alguém que interroga alguém por quem tem consideração.
 
“Ele abana as fundações do mundo e atira loucamente aos céus; ele açoita as estrelas; não para as silenciar, mas para as fazer falar.”
 
Por outro lado aqueles que confortam Job são pessimistas: eles dizem que Deus é bom mas não estão convencidos disso. A verdade é que pensam que Deus é tão poderoso que é mais prudente chamar-lhe bom." Uma atitude muito humana…

7 - A RESPOSTA DE DEUS: 

Todos os homens ao longo da narrativa fazem perguntas a Deus. A atitude permanece…Seria de esperar que Deus respondesse, uma espécie de raciocínio convergente. Mas, na verdade, o que acontece é uma atitude divergente, isto é, Deus também interroga. Deus traz, por sua parte, ainda mais questões. Faz o que Sócrates fez, vira o racionalismo contra si próprio. Tal como Deus viria a fazer no diálogo com a samaritana, Deus aceita as condições dos homens, mas revela-lhes que, no que concerne a colocar questões, ele tem questões para colocar que reduzem o calibre das questões humanas.

“Neste drama do cepticismo, Deus adopta o papel do céptico.”

Deus aceita a igualdade de tratamento. Deus aceita mesmo o papel de réu. Mas como qualquer réu ele formula a pergunta que qualquer réu tem o direito de fazer: Quem és tu? E Job, que é um homem intelectualmente honesto, após um pequeno momento de reflexão, responde: Não sei!

8 - A LIÇÃO DE DEUS:

Todo o homem céptico se encontra rodeado por um infinito cepticismo. Interrogá-lo é a atitude recorrente que todos os místicos utilizaram.
 
“Sócrates demonstrou que se usasse muita sofística poderia destruir todos os sofistas. Jesus Cristo utilizou o mesmo método quando demonstrou aos saduceus que se eles não compreendiam a natureza do casamento no Céu, não compreendiam a natureza do casamento em si.”
 
Deus deixa-nos esta enorme lição. O propósito de uma discussão religiosa não é tentar revelar os mistérios, mas sim propor novos enigmas: 

“Ao debater com o céptico arrogante, não é um método correcto tentar fazer com que ele cesse de duvidar. O melhor método é mergulhá-lo num mar de dúvidas, que duvide um pouco mais, que duvide em cada dia de novas coisas, até que, por uma inesperada iluminação, comece a duvidar de si próprio.”




9 - A RESPOSTA DE JOB: 

Outra grande surpresa é que Job fica satisfeito e tranquilo apenas por saber que existe algo de impenetrável na natureza de Deus. Nada lhe foi respondido, mas ele sente a atmosfera grandiosa e arrepiante de algo bom demais para ser revelado. A recusa de Deus para desvendar os seus desígnios é em si própria, uma insinuação ardente do seu desígnio."

“Os mistérios de Deus são mais gratificantes do que as propostas dos homens.”

10 - O JULGAMENTO DE DEUS:

Deus repreende quer quem o acusava quer os que o defendiam. O problema dos amigos de Job é que no esforço de encontrar uma explicação para os problemas de Job, eles nunca o tomam verdadeiramente como ser humano, nem a Deus como Deus, mas a Deus como apenas uma parte integrante de um silogismo moral superior.

Job recusa as suas explicações porque compreende a necessidade de servir o próximo e de tomar a Deus como uma pessoa e não como um princípio moral.

Os seus amigos não estavam verdadeiramente preocupados com ele mas sim com a sua teologia. É por esta razão que Job não acredita que Deus vá permanecer silencioso para sempre. É por esta razão que Deus nos manda amar o nosso próximo, incluindo os nossos inimigos, independentemente das suas ideias.

“O optimista mecânico esforça-se por explicar o universo apenas numa base racional, assente em padrões repetitivos. Afirma que uma coisa boa do mundo é que ele pode ser explicado.”
“Deus replica que se existe uma coisa boa no mundo, é que ele não pode ser totalmente explicado: porque chove no deserto se não existem lá homens que disso possam beneficiar?” 
Poder-se-ia dizer, porque nasce o sol sobre os homens bons e os homens maus?

"Para chocar o homem Deus torna-se por um momento blasfemo; poder-se-ia dizer que Deus se tornou, por um momento, ateu."

Deus desfila perante Job os animais que povoam a Terra; poder-se-ia dizer que o Criador de todas as coisas está maravilhado com as próprias coisas que criou.
Job interroga; Deus responde com uma exclamação. Em vez de demonstrar a Job que se trata de um mundo explicável, Ele insiste em que se trata de um mundo muito mais estranho do que ele alguma vez imaginou.

 

11 - A EXPLICAÇÃO DE DEUS:

Deus sugere que os seus impenetráveis mistérios são alegres e não tristes. Pergunta a Job onde estava ele quando as fundações do mundo foram colocadas. Deus fala da neve e do granizo, não como meros fenómenos físicos, mas como maravilhas da natureza. Nada se compara a esta alegria, a este optimismo que penetra no mais escuro pessimismo. Como se estas coisas tivessem sido colocadas no mundo para aquele momento final em que as lágrimas vão ser enxugadas de toda a face, em que todo o mal será retirado.

12 - O PARADOXO:

A Cristandade impõe aos seus heróis um paradoxo: um paradoxo de grande humildade, no que concerne aos seus pecados; de grande tenacidade, no que concerne às suas ideias.

O livro de Job, se teve alguma influência no pensamento judaico, foi o de impedir a sua decadência e colapso. Neste livro responde-se à questão se Deus pune o vício durante a vida terrena e se recompensa a virtude com a prosperidade material. Se a mentalidade judaica tivesse dado uma resposta errada a esta questão, não existiria nenhuma razão para que subsistisse às outras civilizações que entretanto se afundaram.

"Quando as pessoas acreditarem que a prosperidade é a recompensa da virtude, ela será tomada como sinónimo de virtude. Os homens desistirão da tarefa difícil de fazer dos homens bons homens de sucesso e adoptarão a tarefa mais fácil de dizer que os homens de sucesso são homens bons."

Este desvio ético é o paradoxo do nosso tempo.

Chesterton sublinha que o livro de Job é admirável porque ele não conclui que o sofrimento de Job se deva aos seus pecados ou a qualquer plano para o seu melhoramento. Job sofria não por ser o pior, mas sim o melhor dos homens.

“A melhor lição que poderemos extrair é que o homem é melhor confortado por paradoxos.”





“Aqui reside o mais negro e estranho dos paradoxos; e é pela experiência humana o mais reconfortante.
Não necessito mencionar a história superlativa e estranha que se desenrolaria sob este paradoxo do melhor dos homens com a pior das sortes.
Eu não necessito de dizer no sentido mais livre e filosófico, que existe uma personagem do Antigo Testamento que é realmente um padrão; ou seja, não necessito de dizer quem se encontra prefigurado nas feridas de Job.”


Obrigado Chesterton! Agora obtive mais claramente uma resposta que já intuía: não é nesta vida que vemos brilhar a luz da justiça. O nosso propósito é, citando madre Teresa de Calcuta, “colocar uma gota de água num oceano de sofrimento.”

Não devemos pensar no que já fizemos, mas no que nos falta fazer. Só os medíocres pensam que já fizeram muito.




António Campos

Anália Carmo

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