sábado, 17 de janeiro de 2015

Chesterton Para Principiantes – Ortodoxia Alta Dialéctica



O sentido original da filosofia é o amor à sabedoria. A filosofia tem não apenas sistema, mas uma
organização coerente. No entanto, se lhe faltar visão, i.e., penetração na vida humana concreta e no mistério do ser – o facto misterioso e fascinante de que existe algo que não é o nada – o filósofo falha o seu papel de ser uma grande alma.


É precisamente aqui que a filosofia cristã tem um vazio para preencher, um contrapeso que equilibre a balança no sentido da sanidade. Chesterton, ao nunca procurar ser sistemático porque não era um académico, nunca pretendeu ser um filósofo profissional, mas seduz-nos pelo seu pensamento, convidando-nos a segui-lo e a sistematizá-lo; dir-se-ia que construiu uma via em aberto.

Em contrapartida, ele sempre seguiu a distinção fundamental expressa por Platão entre o filosofar responsável e irresponsável. Filosofar irresponsavelmente é conduzir a busca pela sabedoria divorciada das exigências da experiência quotidiana, baseada apenas na mera abstracção, abandonando o sistema assim construído à condição de um puzzle, estático, não possuindo mais movimentos do que um peixe num aquário.1


Se as provas da existência de Deus se encontrarem na natureza e na experiência prática quotidiana, à medida que nos separamos delas por abstracção excessiva, adquirimos uma visão distanciada, fria e seca, dessas mesmas provas, reduzindo-as a um mero jogo conceptual ou retórico. Nós apenas podemos provar aquilo que está ausente, o que está presente deve ser revelado, não provado.

A Santa Igreja ensina que Deus, sendo o princípio e o fim de todas as coisas, pode ser conhecido pela luz natural da razão humana, como é afirmado em Rom 1:20, “As suas perfeições invisíveis, tanto o Seu eterno poder quanto a Sua divindade, tornam-se visíveis quando as suas obras são conhecidas pela inteligência”.







FILOSOFIA E TEOLOGIA


Na medida em que um crente baseie as suas afirmações apenas na Revelação permanece como crente; mas quando o crente defende as suas afirmações com base na razão, torna-se um filósofo de uma filosofia cristã: a ortodoxia. Esta foi a posição de Chesterton que tratou de colocar sempre as suas afirmações no território da razão e para fora do terreno de uma Igreja a que, até 1922, não pertencia. Como ele dizia “Eu estou no adro e indico a quem passa o caminho para dentro da Igreja”.


 

A filosofia tem que levar em conta que nenhum homem pode pensar sozinho, porque isso o afasta de um princípio fundamental da vida: nenhum homem é uma ilha. Portanto, a comunhão dos santos é não só um conceito teológico como inteiramente filosófico.


Uma outra ideia de Chesterton, a democracia dos mortos, é não apenas teológica, como inteiramente filosófica, porque inteiramente humana. Nas palavras de T. S. Eliot, a comunicação dos mortos é uma projecção flamejante para além da linguagem dos vivos

Quem hoje poderá afirmar que a sua imaginação, imaginário ou ideário, as suas imagens da vida nada têm que ver com alguns pensadores mortos? Aristóteles, Platão, Heráclito, São Tomás, Kant, Marx, Freud, Wittgenstein, Foucault, etc., continuam a determinar o pensamento ou os pensamentos modernos. O presente carrega sempre a lição do passado. O crente é um homem precedido e tem consciência disso, porque toda a época tem a sua miopia e a sua mancha cega. É o crédulo que, sendo um homem precedido, não admite a precedência.


A história não é a noite escura em que todos os gatos são pardos nem é um elevador gigante que conduz os homens à época em que por acaso nos encontramos. Estes dois erros de Hegel são claramente apontados por Chesterton.

A tradição é exactamente a arma mais poderosa que esta geração possui para relativizar os relativistas. O dogma relativista bem expresso de dentro, por G.B. Shaw - “a única regra de ouro é que não existem regras de ouro” - não é um paradoxo, é uma contradição. Todo o relativista é um dogmático.2


A civilização cristã europeia foi construída com base numa imagem, numa pessoa, numa face, Jesus Cristo. Os princípios da dignidade humana fundam-se exactamente neste princípio imagiológico: cada homem é uma máscara de Deus.

Deste conceito resulta uma enorme dissonância com Hegel: não só o estadista é um mero homem, sujeito a todos os erros e limitações dos outros homens, conceito a que Chesterton chama a Doutrina da Queda (o que o leva a ter aversão por todas as formas de despotismo e a defender a democracia), como as críticas do seu mordomo são inteiramente válidas, porque o seu mordomo vive no mundo dos homens e não no mundo artificial da política e dos gabinetes (e não é legítimo afirmar, como Hegel, que as críticas do seu mordomo, tal como as dos professores, ao carácter das figuras históricas, parte apenas da inveja ou da mesquinhez).





O MÉTODO


Qual a atitude correcta para se apreender a realidade? A resposta é esquecê-la e voltar a olhá-la com os olhos de uma criança. “Se não fores como crianças não entrareis no Reino dos Céus!”

A percepção vence o argumento. Assim, na descrição da realidade, a ilustração é superior à argumentação, porque, como dizia Dostoiévski pela boca de Raskolnikov, a um argumento sempre se pode contrapor outro argumento, mas nada se pode opor à evidência, ao absurdo, à iluminação ou “insight”.


Chesterton, atendendo à sua hermenêutica (interpretação) da realidade, seguiu uma epistemologia (teoria, método e validade do conhecimento): descreveu o seu estilo como a descrição de coisas familiares a partir de ângulos insuspeitos, acendendo novas luzes na imaginação, por forma a que as possamos ver com a inocência da surpresa.

O seu método consistia em fazer ver, não em demonstrar logicamente, e é por isso que sentimos um estremecer, “um acordar”, quando o lemos. Ele acreditava que o melhor que podia fazer pelo seu semelhante era pô-lo a pensar de tal modo que ele conseguisse ver da mesma maneira que Chesterton via, era portanto “mostrar”, não “demonstrar”, “porque o mais forte dos desejos de conhecimento é o desejo de saber qual o propósito do universo e qual o nosso propósito.”


A sua preocupação fundamental era relacionar qualquer verdade com o sentido da vida humana e, ao fazê-lo, estava a pensar filosoficamente, no sentido em que estava a encontrar o sentido de ser humano. Chesterton preocupava-se com as ideias porque “não podes virar uma coisa do avesso se não sabes qual é o lado direito” e porque para agir, primeiro tem que se pensar no que se vai fazer e como se vai fazer, de outro modo pode sair asneira.

Chesterton não foi um filósofo que tenha feito uma contribuição original para a história do pensamento humano sobre a realidade do real, no sentido em que o foram Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Kant, Hegel ou Kirkegaard. Mas ele fez pelo menos duas grandes contribuições que continuam de plena importância na actualidade:


- Ele foi insuperável no modo como satirizou os pontos fracos da filosofia da sua época.


- Embora a sua filosofia não fosse original, o modo de a expressar era inteiramente original.


Ele esteve sempre interessado nas ideias mais importantes, nas coisas últimas; ele não era apenas um amante da sabedoria, ele possuía uma sabedoria intuitiva. Ele tinha um pensamento que Hegel caracterizou como “especulativo”, i.e., pensava num assunto no sentido em que entrava nele, o via de dentro e o virava do avesso para detectar incongruências. Chesterton nunca utilizava a razão como sinónimo de lógica, uma vez que via o que “ligava” as coisas em vez de provar essa ligação. Sobretudo porque utilizava o senso comum, a chamada “convergência de probabilidades” (de J. H. Newman). A “certeza” de Chesterton assenta naquilo de que nenhum homem são duvida.


E a concordância com esta atitude vem de um lado insuspeito, Bertrand Russell. Em Os Problemas da Filosofia, Bertrand Russell discute a realidade; afirma que realmente existe um mundo exterior. Por outras palavras, que existe uma realidade para além dos nossos sentidos e dos nossos pensamentos. Após concluir que tal realidade existe, Russell escreve:

“O argumento que nos trouxe a esta conclusão é sem dúvida menos consistente do que desejaríamos, mas isso é uma característica de muitos argumentos filosóficos; e, portanto, vale a pena determo-nos um momento no seu carácter geral e na sua validade. Todo o conhecimento tem que ser construído sobre as nossas convicções instintivas, algumas mais fortes do que outras, enquanto que outras foram, por hábito e associação, enredadas noutras crenças, não realmente instintivas, mas no que é falsamente suposto pertencer ao que é aceite instintivamente.

A filosofia deve mostrar-nos a hierarquia dos nossos credos instintivos, começando por aqueles em que acreditamos mais firmemente, e mantendo-os tão livres de misturas irrelevantes quanto possível. Deve ser evidente que na sua formulação final as nossas crenças instintivas não se contradigam; antes formem um Sistema harmonioso. Só se pode recusar uma crença instintiva na medida em que ela colida com outras; portanto se elas se harmonizarem entre si, todo o sistema é confiável.”


Com a ressalva de ser, naturalmente em Russell, um argumento que exclui a fé na transcendência, com ele lá se vai Descartes e a dúvida metódica, Kant e o idealismo alemão…


Chesterton não tinha o raciocínio ordenado, progressivo e sistemático de um académico como Lewis. Isso é certo. Mas Foi Chesterton quem levou Lewis até ao argumento ontológico de Jesus Cristo. O Jesus Cristo resumido por Lewis na tríade, mentiroso/louco/Deus, é indicado por Chesterton em três páginas do capítulo A História Mais Estranha do Mundo do livro O Homem Eterno. Chesterton viu e levou lá Lewis. Lewis compreendeu, sistematizou e explicou-nos para que víssemos claramente.3





A Ética e a Lei


O episódio do diabolista trouxe a Chesterton a necessidade imperiosa de traçar limites, porque de outro modo não existe modo de delimitar e julgar a acção do mal. Esses limites são essenciais à existência da liberdade, não a anulando mas libertando-a. 

Ao definir limites, o homem é absolutamente livre dentro e fora desses limites, sabendo no entanto que ao ultrapassar os limites, terá que pagar o preço da responsabilidade. Este preço pode ser de natureza moral, religiosa, legal ou social. Mas sem estes limites à liberdade individual, não existe modo de respeitar a liberdade de todos. Em O Poeta e os Lunáticos, G. Gale interroga-se sobre o que é a liberdade, concluindo que ela é a capacidade que alguém pode ter de ser ele próprio. A liberdade consiste na auto-limitação. Encontramo-nos limitados do meio exterior físico pela nossa pele e do meio existencial pela nossa mente.


Esta necessidade de traçar uma linha, define a individualidade, a propriedade e a liberdade. Mas ela é também a solução para um outro problema: o problema do julgamento. Nenhum homem está em posição de julgar, mas o julgamento é absolutamente necessário à vida gregária e à organização social. Portanto, existem mais garantias de existência de um julgamento justo se ele for guiado por leis, ou seja, por limites, que levam em consideração valores morais, como o inestimável valor da pessoa humana, da liberdade e da responsabilidade, que são sinónimos de dignidade humana – ninguém se lembra de exigir um comportamento responsável a um animal.


“Quando se destroem todos os pesos e medidas, se nega a existência de tabelas ou normas, se destroem as tabelas de cálculo ou os instrumentos de medida que a sabedoria do homem fabricou; sim, é difícil dizer o que é o sexo normal e a perversão; o que é religiosidade e fanatismo. É especialmente difícil quando se começa a dizer: «A única regra é que não há regras».


Isto torna-se especialmente difícil quando se considera que todos os nossos antepassados eram uma corja de idiotas num deserto ululante de ignorância; que os seus ideais eram fetiches e dogmas fantasiosos. Isto torna-se penoso se se deixa sistematicamente de fora a possibilidade de que a humanidade tenha uma experiência de moralidade – sobretudo da má moralidade. Isto parece-me consistir em levar longe demais o princípio de que ninguém tem o direito de apontar qual é o caminho.”


“Ninguém tem o direito de falar de progresso sem antes definir o que é o bem.”









António Campos



1 Talvez seja por isso que Chesterton não obteve reconhecimento no meio literário. Até Harold Bloom - que editou uma colectânea sobre Chesterton - exclui Chesterton da sua classificação dos génios da literatura, muito provavelmente pela mesma razão que criticou T. S. Eliot: A sua opção pelo judaísmo gnóstico e cabalístico afastou-o da compreensão fundamental da sua própria religião revelada, sobretudo ao não aceitar que Deus possa coexistir com o livre arbítrio humano e o problema do mal.


2 É também o mote das sociedades secretas: tudo é relativo, excepto o facto de que tudo é relativo.


3 Chesterton não tinha um sistema demonstrativo que pudesse ensinar e convencer outros da sua validade. Nesse sentido está desligado da filosofia moderna. O seu método é mais ilustrativo, uma aufklarung, um novo aude sapere, ousa saber. Ele não impõe o seu sistema para fazer prova de algo; ele leva-nos lá e deixa-nos contemplar a realidade e retirar as nossas próprias conclusões.

Desse ponto de vista o seu método assemelha-se à dialética de Sócrates. A sua ironia não assume a forma de questionamento formal, mas de paradoxo. Ao expor contradições internas numa afirmação ou num conceito, ao fazê-lo ver de um outro prisma, ele obriga à reformulação – é uma espécie de maiêutica.

Ele mostra-nos uma convergência de probabilidades antes insuspeitas e a direcção certa.

Esse era também o modo que exercia na conversação, mesmo em casa com convidados. Referia sempre algo que alguém tinha previamente afirmado, incluindo a pessoa, e depois levava a conversa numa outra direcção sem expor a pessoa que referira, mas incluindo-a.

Sem comentários:

Enviar um comentário